André Lara Rezende enfrenta os dogmas do mercado, por Luis Nassif

Ontem, em entrevista na TV GGN a mim e ao economista Gabriel Galípolo, viu-se um André Lara Rezende em franco processo de evolução do pensamento, abrindo mão de qualquer dogma em favor da racionalidade e da análise da realidade.

André Lara Rezende foi o economista mais influente do país no pós-redemocratização, graças a seu conhecimento sobre a teoria monetária. Foi o principal economista do Cruzado, a primeira tentativa de mudar a moeda para enfrentar a inflação inercial. Depois, tornou-se o principal formulador do Real. Nos anos seguintes, tornou-se um operador financeiro internacional. 

Tivemos muitos embates nesse período. Questionei a política de juros e câmbio do Real, as formulações esotéricas da macroeconomia, como PIB potencial, taxa de juros de equilíbrio e metas inflacionárias, miragens que garantiram a maior transferência de renda da história para o setor financeiro.

Nos últimos anos, André tornou-se o principal representante de uma elite de economistas incumbida de repensar a economia. E tem praticado esse exercício com uma abertura de cabeça excepcional, revendo antigos dogmas que professava.

Por exemplo, alguns anos atrás, participando de um Roda Viva como entrevistador de Thomaz Piketti, defendeu a concentração de riqueza sob o argumento de que um Bill Gates teria mais condições de fazer investimentos eficientes do que se a riqueza dele fosse distribuída. Foi contestado por Piketti.

Algum tempo atrás, em palestra no Instituto de Estudos Avançados da USP, e já se destacando como defensor da nova política monetária – que não vê a emissão de moeda como fator inflacionário, em si – defendia que o aumento de despesas deveria ser tocada por especialistas, para aumentar a eficácia de gasto. Questionei-o sobre a entrega da decisão a tecnocratas, ele que criticava os tecnocratas do FMI e suas imposições ortodoxas.

Ontem, em entrevista na TV GGN a mim e ao economista Gabriel Galípolo, viu-se um André Lara Rezende em franco processo de evolução do pensamento, abrindo mão de qualquer dogma em favor da racionalidade e da análise da realidade.

Os dogmas monetários

O afrouxamento quantitativo de 2008 – a enorme emissão de moedas pelo FED (o Banco Central americano) para vencer a crise – desmontou a teoria quantitativa da moeda, de que a inflação é consequência da emissão de moedas.

Por que, então, só uma crime global para que economistas abrissem mão de conceitos arraigados?

O mundo é complexo e vive em permanente fluxo de transformações, diz Lara Rezende. O ser humano precisa simplificar o mundo e congelá-lo em determinado arcabouço, que são aproximações do mundo e da sociedade. Quando essa aproximação deixa de ser funcional, porque o mundo muda, há uma enorme resistência em mudar, porque o economista fez nome em cima da teoria que defendia.

No caso dos economistas, diz ele, há uma resistência a mais para abrir mão dos dogmas, devido à enorme relevância do papel que assumiram nas últimas décadas, de ditar o que pode ou não pode ser feito na sociedade, e de estabelecer regras. Esse poder consolida a força extraordinária do conservadorismo na análise econômica.

Tendo uma teoria, que eles pretendem científica – o que é uma impostura, em termos de teoria social, diz ele – quer impor limites ao que pode ser feito. Os limites são muito mais amplos e definidos pela forma como se organizam as sociedades.

Para mudar configuração, é necessário uma intuição poética, criativa, diz Lara Rezende, admitindo a enorme relevância da observação empírica e da capacidade de tirar conclusões.

A padronização da análise econômica

Lara Rezende concorda que a universalização das análises financeiras – criando supostas leis universais aplicadas a todas as economias – se deve à intenção de facilitar as decisões do capital, de pular de um ativo para outro, e de uma economia para outra.

E me deixa aliviado, ao analisar dois dogmas principais desse embuste econômico: a taxa de juros de equilíbrio e o PIB potencial. Ou seja, uma taxa de juros que equilibraria a relação oferta-demanda impedindo a inflação; e um PIB potencial, acima do qual não se poderia crescer, para não provocar inflação.

A ideia de que existe uma taxa de juros de equilíbrio é altamente questionável, diz Lara Rezende. Equilibra o que? Teoria clássica diz que equilibra a oferta de poupança com a oferta de fluxos para investimento. Era teoria prevalecente no início do século 20, desmontada pela crítica de John Maynard Keynes. Taxa de juros não equilibra fluxo de poupança e de investimento porque é determinada no mercado monetário, não na economia real. 

Ponto central de sua análise é confirmar a dissociação entre o capital financeiro e o capital para investimentos. No Brasil, toda decisão de política monetária visa facilitar a vida do capital financeiro. É como se, afagando o capital financeiro, voltasse o investimento na economia.

Lara Rezende mostra o que ele chama de a essência do engano: investimento não depende de poupança. O mercado financeiro não transfere poupança de quem poupa para quem precisa de investimento. Para investir, há a necessidade de crédito. E quem cria crédito é o Estado. O Estado pode criar crédito porque, sendo Estado organizado, é perene e tem capacidade de tributar. Portanto pode criar crédito além do seu ativo, sem risco de default. 

Na crise de 2008, o aumento da liquidez foi feito através do sistema bancário. Com a economia em recessão, não havia demanda de crédito para investimento. O dinheiro foi utilizado, então, para movimentos especulativos de compras de ativos que não trouxeram desenvolvimento e aceleraram a brutal concentração de renda da última década.

Quem tem condições de estimular o investimento é o Estado. O maior equívoco é julgar que banco precisa de depósito para emprestar. Ele empresta depois vai se financiar no Banco Central, que é o braço do Estado.

Daí que o aumento da liquidez precisa, necessariamente, ser acompanhado de aumento dos investimentos públicos. Só assim haverá desenvolvimento e crescimento do emprego, e não a criação de bolhas, domo ocorreu.

Por essa dissociação entre capital financeiro e economia real, a teoria da taxa de juros de equilíbrio é errada, diz ele. A versão recente é a taxa de juros neutra, o BC vai elevar a taxa de juros para taxa de juros neutra, que deve ser 6,5%. De onde tirou esse número, ninguém sabe.

Por exemplo, diz ele, a nova lei de autonomia do Banco Central define como dos objetivos do BC o controle da inflação e manutenção do emprego. Se existe taxa de juros neutra, como equilibra o emprego? Como é possível falar em taxa de juros neutra.

O custo da dívida pública

Um dos principais dogmas da política monetária é a convicção de que o encurtamento de prazos da dívida pública traria risco de default – incapacidade de pagamento.

No ano passado, houve movimento do Banco Central e do Tesouro de encurtamento de prazos. Dizia-se que o mundo iria se acabar, e o tal do mundo não se acabou.

BC e Tesouro encurtaram prazo da dúvida, emitindo títulos de prazo mais curto com juros mais baixo. Foi um ano com um enorme déficit primário, mas a relação dívida/PIB caiu, porque, ao encurtar o prazo da dívida, os juros também caíram reduzindo o custo da dívida pública.

Lara Rezende admite que, nos últimos 30 anos, a taxa de juros extraordinariamente elevadas foi erro. Diz que no início do Real, havia alguma justificativa, mas sua manutenção foi enorme erro. E admite o óbvio: taxa de juros muito alta foi uma das principais razões da deterioração da relação dívida/PIB. Quando sobe a taxa de juros em 4 pontos percentuais – como fez o BC nos últimos meses -, em uma divida de 90%a do PIB, são 3,6% do PIB, mais do que foi transferido o ano passado inteiro pela pandemia.

Enquanto o aumento de gastos com a pandemia dependeu de emenda constitucional aprovada pelo Congresso, o aumento do custo da dívida pública foi uma decisão tecnocrática do Banco Central. Alguma coisa está errada com essa completa assimetria de autorizar gastos púbicos po uma decisão burocrática.

Uma política monetária sem dogmas

O passivo do Estado é composto por moedas e títulos. Moeda é dívida, como como os títulos, é uma dívida do Estado com juros zero e perpetuidade. 

A divida pública denominada em moeda nacional não tem risco em default, de calote, porque Estado sempre pode emitir para pagar. O risco é político, não econômico. Diferente da divida pública denominada em moeda externa, porque o Brasil não emite dólares. Mas pode emitir em reais desde que não impacte contas externas.  

Aí, Lara Rezende desenvolve um raciocínio claríssimo e relevante.

1. A preferência pela liquidez

O mercado prefere títulos líquidos (que podem ser resgatados facilmente) do que títulos de longo prazo. O longo prazo emite riscos futuros, levando o mercado a exigir taxas de juros maiores. Ou seja, não adianta reduzir os juros de curto prazo se o risco futuro leva o mercado a exigir taxas maiores para papéis de prazo mais longo.

A solução, então, seria encurtar a dívida pública o máximo possível.

No estouro do Cruzado, Lara Rezende criou as LBCs (Letras do Banco Central) com títulos atrelados à taxa diária do BC. Imediatamente houve uma queda substancial da remuneração exigida pelo mercado.  O prêmio exigindo pelo mercado caiu de quase 4% para menos de 1%.

Hoje em dia, mudou-se o nome de LBCs para LFTs, mas com o mesmo significado.

2. O aumento artificial da divida

Em ambos os casos – papéis de longo ou curto prazo -, a rolagem da dívida exige a emissão de títulos públicos. Para operações de curto prazo, o Tesouro emite títulos e empresta diariamente ao mercado, com o compromisso de recomprá-los no dia seguinte – são as chamadas operações compromissadas. 

Agora foi aprovada na Câmara os depósitos voluntários no BC, substituindo as operações compromissadas. Acabaria com necessidade do BC ter títulos em carteira para tirar liquidez do sistema, operação compromissada que representa 25% do PIB. A divida pública cairia imediatamente de 90% para 65%, mostrando como se tornou um fantasma meramente contábil.

O mercado sempre tratou com temor reverencial o encurtamento do perfil da dívida. Qual o problema, indaga Lara Rezende? Nenhum.  Quando não havia mercado financeiro longo, até início do século 20, o comprador de titulo longo era final, sem efeito sobre demanda agregada. No mercado financeiro líquido, como o atual, vende-se qualquer titulo de divida pública sem deságio algum. Papel de 10 anos tem mesma liquidez de titulo de curto prazo. Então para que vender titulo mais longo?

A substituição das operações compromissadas por depósitos remunerados, e o encurtamento de prazos, desmontará uma das grandes armadilhas da dívida pública. Hoje em dia, a estrutura a termo de taxa de juros é fixada pelo mercado. Há uma aposta em torno das taxas futuras, que o BC assiste passivamente.  Se cai a demanda por títulos longos, aumenta a remuneração e vice-versa. 

Com o depósito remunerado, o FED e o Banco do Japão passaram a determinar a estrutura a termo da taxa de juros, sem ficar nas mãos do mercado. E deixam que o prazo médio da divida seja determinado pelo mercado, já que irrelevante, devido à enorme liquidez do mercados. 

Apenas dois mecanismos reduziriam o impacto devastador da rolagem da dívida pública. O depósito remunerado retirará 25%% da divida para operação compromissadas. O encurtamento do prazo reduzirá o custo da rolagem de 10% para prazos de 10 anos, para 2 a 4% para rolagem de curto prazo.

A moeda digital e as bolhas financieras

Um ponto fundamental é entender a mesma natureza da moeda e dos títulos públicos. Ambos são dívida pública.  A diferença é que moeda é um título não remunerado com duração perpétua. Mas mesmo a moeda é apenas a representação de um registro contábil.

Com moeda eletrônica, tudo pode ser resolvido eletronicamente, coordenada pelos Bancos Centrais.

Quando ele emite sua própria moeda, porque só banco comercial vai ter direito de ter reserva remunerada no BC? O BC pode fazer liquidação de custódia para toda a economia. Pode estender a reserva remunerada para todo sistema financeiro, empresarial e até para pessoas físicas podendo abrir conta direta no BC.

Na pandemia, o FED foi autorizado a fazer financiamento direto para empresas não financeiras, bypassando sistema financeiro. Em situação de emergência pode ser feita.

A governança dos gastos

A possibilidade de emitir moeda indefinidamente cria possibilidades e riscos. Os riscos estão relacionados à governança dos gastos. Anteriormente, Lara Rezende defendia uma gestão técnica.

Hoje em dia, admite que os sonhos de seu ex-sogro – o grande Hélio Jaguaribe -, baseados em Weber, da necessidade de uma tecnocracia esclarecida para dirigir países, promoveu enormes desastres, como ocorreu na Grécia ou mesmo na atuação do Banco Central Europeu no pós-2008. Os tecnocratas assumiram as rédeas, os políticos perderam a função e houve a desmoralização da democracia.

O grande desafio, portanto, será definir a governança, que terá que ser participativa, e com participação política, para haver controle social.

Sobre os economistas

No final, Lara Rezende faz uma profissão de fé na economia e nos economistas, apontando a nova geração que emerge, despida de dogmas. O problema é a enorme desinformação dos economistas de mercado e do jornalismo econômico, diz ele.

Dois artigos relevantes

A propósito da ideia de que o livre mercado leva ao equilíbrio, leia:

A planilha inconsistente à qual o Brasil se curvou.

Os três brasileiros que refutaram as bases do neoliberalismo

Luis Nassif

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