Fim da neutralidade da rede rompe com a democratização dos direitos digitais

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Da Carta Maior

Por Patricia Fachin (IHU On-Line)  

A decisão da agência norte-americana Federal Communications Commission (FCC), de pôr fim à neutralidade da rede, que evitava que interesses econômicos determinassem o tráfego de pacotes de dados pela internet, demonstra que “há uma disputa política e econômica na esfera pública conforme grupos de interesse”, diz Marcelo Barreira à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Segundo Barreira, a decisão “foi mais política e ideológica do que técnica”e a “visão política vencedora na FCC foi a narrativa em defesa de que as regras de 2015, e implementadas pelo ex-presidente Obama, seriam pesadas para o investimento em banda larga”. O professor explica ainda que de acordo com a legislação que garantia a neutralidade da rede, “a banda larga era vista como um serviço essencial e, portanto, de utilidade pública como água e energia elétrica; assim, independentemente do poder financeiro, todos os consumidores deveriam ser tratados igualmente”.

Com o fim da neutralidade, o serviço de internet passa a ser visto como “um serviço não-essencial de informação”, e “a regulação específica passa a deixar de ser do tipo Title II Order e passa a ser Title I Order. Com essa alteração, retoma-se a Lei de Telecomunicações, de 1996. Lei aprovada por um congresso de maioria conservadora e republicana e promulgada pelo ex-presidente Clinton. Tal Restoring Internet Freedom Order é uma regulação leve (light touch), mas de tão leve acaba se aproximando de uma autoregulação, mesmo que exija em tese maior transparência e mais competitividade”.

A iniciativa, afirma, “funcionará como um elemento político-ideológico de pressão para que outros países adotem as mesmas regulamentações”. Na entrevista a seguir, Barreira também comenta quais serão as implicações da decisão da agência norte-americana para o usuário. “Com a quebra de neutralidade da rede haverá mudanças significativas. A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast, aumentando sua margem de lucro. Além de romper com a democratização dos direitos digitais, o sinal mais eloquente dessa mudança será o encarecimento do acesso à internet pelo usuário-cidadão”, adverte.

Marcelo Barreira – Arquivo PessoalMarcelo Barreira é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre na mesma área pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e doutor também em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor do Departamento de Filosofia e do PPGFil da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o significado da decisão do governo dos EUA de por fim à neutralidade da rede?

Marcelo Barreira – Embora o conceito de “neutralidade da rede” (network neutrality) seja uma elaboração feita em 2003 por Tim Wu, da Universidade de Colúmbia (EUA), seu princípio advém desde a lei federal chamada Pacific Telegraph Act, de 1860. Diante do monopólio de telefonia pela American Bell – que incorporou a AT&T em 1885 como subsidiária -, essa lei determinava uma isonomia na transmissão de mensagens nas linhas telegráficas por cidadãos e empresas, apenas despachos governamentais teriam a prerrogativa de furar a fila. Em resumo: manter a isonomia perante a diversidade de mensagens sintetiza a definição do conceito de neutralidade.

Retomando a posição de Locke em sua “Carta sobre a Tolerância” de 1689, o princípio da neutralidade axiológica do magistrado civil se configurou numa eficaz garantia da diversidade religiosa num contexto europeu de conflitos neste campo. Até hoje, a laicidade do Estado democrático de Direito significa a tentativa de impedir o privilégio de um grupo em detrimento de outros, minoritários ou menos poderosos economicamente. Do mesmo modo, além de a filosofia expressar a cultura democrática liberal estadunidense, a neutralidade da rede contribui para evitar interesses econômicos no tráfego de pacotes de dados pela internet.

Em específico, o mercado, por meio de gigantes comerciais da indústria de tecnologia de telecomunicações, especialmente prestadores de serviço de internet (ISPs) e provedores de banda larga (IBPs), precisa ser domesticado para não inviabilizar pequenas empresas de tecnologia como as startups. A justiça pressupõe neutralidade diante de concepções morais e religiosas, mas pressupõe sobretudo o rompimento com a desigualdade socioeconômica. 

IHU On-Line – Em que contexto político essa decisão foi tomada? O que acha que deve ter motivado a decisão?

Marcelo Barreira – O contexto político por traz dessa tomada de decisão foi a eleição de Trump, que nomeou Ajit Pai como chefe da Federal Communications Commission (FCC), a agência que regula o mercado de telecomunicações. Logo, embora a decisão tenha acontecido na FCC e não monocraticamente por Trump, o presidente dos EUA contribuiu, mesmo indiretamente, para que ela acontecesse. O voto de Pai, republicano sênior na FCC (participa dela desde 2012), foi o último e decisivo voto para que, no último dia 14 de dezembro e por 3 a 2, a Comissão decidisse em favor de uma nova compreensão do serviço de telecomunicações em banda larga. Muitos interesses acarretaram essa decisão. Decisão que foi mais política e ideológica do que técnica. A internet, além de seu óbvio aspecto técnico, também envolve questões jurídicas, políticas e socioeconômicas.

Assim, a visão política vencedora na FCC foi a narrativa em defesa de que as regras de 2015, e implementadas pelo ex-presidente Obama, seriam pesadas para o investimento em banda larga. Eis o principal argumento de Ajit Pai, ex-advogado da operadora Verizon, cujo pressuposto ideológico é o intrínseco dano do Estado para o “livre mercado”. 

IHU On-Line – O que muda no funcionamento da internet a partir dessa medida?

A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast

Marcelo Barreira – Com a quebra de neutralidade da rede haverá mudanças significativas. A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast, aumentando sua margem de lucro. Além de romper com a democratização dos direitos digitais, o sinal mais eloquente dessa mudança será o encarecimento do acesso à internet pelo usuário-cidadão. Com o traffic shaping abandona-se seu oposto, o zero rating, isto é, a gratuidade no acesso a produtos on-line e no tráfego end-to-end de dados, que garante a transmissão de pacotes de dados entre origem e destino sem qualquer manipulação ou diferenciação.

O rompimento com o princípio end-to-end é o principal fator de ruptura com a neutralidade da rede, pois quanto mais fácil o acesso aos produtos na rede, melhor será para a popularidade e o retorno financeiro desses produtos. O traffic shaping não só diferenciará planos por velocidade de transferência (como hoje), mas também possibilitará “bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados”, nos termos em que nosso Marco Civil da Internet proíbe essas ações em seu § 3º, do art. 9º. Na medida em que produtores de conteúdo firmem contratos comerciais com as operadoras de telecomunicações, eles obterão preferência na disponibilidade de seus produtos na rede – como vídeos (YouTube), streaming (Netflix) e Voip (como Skype e WhatsApp). Um exemplo disso é o anúncio de “WhatsApp ilimitado” por operadoras de telefonia. Esses produtores de conteúdo exigirão, por conseguinte, uma cobrança pelo uso de seus serviços. Haverá, então, faixas de preços e categorias de usuários de acordo com quem pode ou não pagar. 

IHU On-Line – Qual deve ser o impacto dessa decisão em termos mundiais?

Marcelo Barreira – A mudança na regulação funcionará como um elemento político-ideológico de pressão para que outros países adotem as mesmas regulamentações. Isso ocorre por dois motivos: no caso brasileiro, como vemos com a Lava Jato, nosso sistema de justiça tem sido crescentemente influenciado pela hermenêutica e jurisprudência estadunidense. Outro motivo é o fato de os EUA ser referência mundial em tecnologia de telecomunicações, tornando, por sua vez, paradigmática a sua legislação sobre o tema. 

IHU On-Line – Em que consistiam as medidas estabelecidas em 2015 para proteger a equidade na internet?

Marcelo Barreira – Nas regras de 2015 a banda larga era vista como um serviço essencial e, portanto, de utilidade pública como água e energia elétrica; assim, independentemente do poder financeiro, todos os consumidores deveriam ser tratados igualmente. Ao alterar para um serviço não-essencial de informação, a regulação específica passa a deixar de ser do tipo Title II Order e passa a ser Title I Order. Com essa alteração, retoma-se a Lei de Telecomunicações, de 1996. Lei aprovada por um congresso de maioria conservadora e republicana e promulgada pelo ex-presidente Clinton. Tal Restoring Internet Freedom Order é uma regulação leve (light touch), mas de tão leve acaba se aproximando de uma autoregulação, mesmo que exija em tese maior transparência e mais competitividade.

Ademais, com tal decisão, a supervisão de serviços de banda larga passou a ser da esfera comercial; logo, suas demandas versam da ordem econômica, será outra autarquia, a Federal Trade Commision (FTC), a agência reguladora de comércio, que sanará demandas acerca dos direitos digitais, interpretadas agora como violação da livre concorrência. De qualquer modo, essa decisão será questionada nos tribunais. Procuradores-gerais de Nova Iorque e deputados do Partido Democrata pretendem restabelecer o Title II Order, de 2015. O Congresso pode ainda apresentar um Congressional Review Act (CRA), ou seja, um recurso para invalidar a decisão da FCC. Junto a essas estratégias, algumas entidades da sociedade civil organizada, como a American Civil Liberties Union e o movimento People Power, proporão a legislativos estaduais projetos de lei que assegurem regionalmente a neutralidade da rede. 

IHU On-Line – Alguns pesquisadores têm dito que a neutralidade garantirá a competitividade na internet, mas que agora a competitividade está ameaçada. O senhor concorda?

Marcelo Barreira – A conjuntura aqui e nos EUA é de crise do sistema político e de desilusão com a democracia formal. Do mesmo modo que a decisão tomada pela FCC não foi apenas técnica, suas consequências também são políticas e talvez o maior peso neste sentido seja a falência doo princípio liberal e democrático à liberdade de informação e à diversidade de opiniões. Mesmo o processo que culminou na decisão da FCC expressou uma ausência de debate público ou seu arremedo – afinal, conforme Jeff Kao, engenheiro de software no site Hackernoon, grande parte dos e-mails favoráveis à quebra da neutralidade teriam como origem a Rússia e eram robôs de spam. 

IHU On-Line – Qual deve ser o impacto dessa medida para o consumidor?

Marcelo Barreira – A variação no preço das franquias de pacotes de dados, colocando como paradigma de preço a telefonia móvel, seja na velocidade seja no acesso aos conteúdos, fará o consumidor, de um lado e de outro, pagar mais caro. Embora a narrativa em defesa do traffic shaping é de que pagará mais quem usar mais pacotes de dados e pagará menos quem usar menos, temos um frustrante exemplo recente quanto à desilusão desse discurso, especialmente em nossas terras. As franquias de bagagens para voos, além de não baratearem os preços das passagens aéreas, aumentaram a margem de lucro das empresas aéreas.

Em nosso país, os monopólios e a ineficiente proteção ao consumidor fazem os custos dos serviços aumentarem sem uma contrapartida em sua qualidade. O mesmo acontece com a notória e ilegal venda casada de serviço de banda larga com telefone fixo pelas operadoras de telefonia. Uma maneira de contornar essa venda casada tem sido o compartilhamento de redes sem fio entre vizinhos, ou as chamadas telefônicas pela internet por aplicativos, possibilidades atuais que seriam provavelmente muito dificultadas, ou até impedidas, com a quebra da neutralidade da rede.  

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Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. Discordo. O erro da esquerda

    Discordo. O erro da esquerda foi acreditar que poderia dominar o espaço político a partir da militância virtual https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-dragao-da-internet-contra-o-pastor-evangelico-guerreiro-por-fabio-de-oliveira-ribeiro. O erro da direita é acreditar que dominando o ciberespaço e empurrando a esquerda para as ruas conseguirá manter o controle do espaço político. 

    O DNA da política moderna tem duas hélices que crescem independentes, mas que são complementares. As ligações e rupturas entre elas definem a totalidade do espaço político.

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