Irlanda: além do ajuste fiscal

Por Ana Claudia Alem e Jose Antônio P. de Souza, no “Valor” de 12/02/2007

Na discussão sobre como acelerar o PIB brasileiro é inevitável a comparação com países de melhor desempenho. Tem sido recorrente a citação da aceleração do crescimento irlandês entre 1991 e 2001 como exemplo de expansão promovida principalmente por um forte ajuste fiscal. Este artigo questiona esta interpretação. O desempenho do “Tigre Celta” realmente impressiona. O desemprego do país caiu de 16,3% da população economicamente ativa em 1988 para 10,3% em 1997 e para 4,3% em 2000. O PIB teve um crescimento médio real anual de mais de 6% de 1991 a 2001. Na época de maior aceleração, de 1994 a 2000, a taxa média real anual de crescimento foi ainda mais alta, de cerca de 9%.

O boom de crescimento que marcou a Irlanda a partir de meados dos anos 1990 decorreu da combinação de uma série de fatores positivos. As evidências mostram, entretanto, que a brilhante performance econômica não decorreu de uma política de contenção fiscal. Destacou-se a combinação virtuosa de políticas de rendas com uma ativa política industrial que visava à estabilidade macroeconômica e ao aumento da competitividade da economia. Além disso, a Irlanda favoreceu-se em grande medida dos recursos recebidos do Fundo de Desenvolvimento Regional da União Européia.

No front macroeconômico, em 1987, o lançamento do Programa para a Recuperação Nacional (PNR) – o primeiro de cinco pactos sociais sucessivos – foi o ponto de partida para recuperação posterior. À época o país passava por uma séria crise econômica, marcada por altos níveis de dívida e déficit públicos, estagnação dos investimentos e do PIB, e elevado desemprego.

Os principais objetivos do PNR foram: restabelecer um ambiente macroeconômico favorável ao crescimento – enfatizando a importância da redução da dívida pública, bem como a manutenção de uma taxa de câmbio competitiva; promover um aumento da competitividade da economia irlandesa, com especial ênfase aos setores comercializáveis da economia; e, diretamente associado ao anterior, reduzir a tributação sobre a renda, simultaneamente à promoção de um aumento da base tributária.

O acordo feito em conjunto entre o governo, empresários e sindicatos de trabalhadores implicava uma fixação dos reajustes salariais para os três anos cobertos pelo programa. Em troca, o governo se comprometia a reduzir os impostos de forma a aumentar a renda disponível. O governo também se comprometia a manter estáveis os benefícios sociais.

Havia, obviamente, uma preocupação com o controle dos gastos públicos. Mas não se pode dizer que o saldo final tenha sido uma política fiscal restritiva, já que, simultaneamente ao corte dos gastos públicos, havia a redução dos impostos. A evolução real dos gastos públicos mostra que apenas nos anos de 1988 e 1989 ocorreu uma queda dos gastos correntes do governo. Nos anos seguintes houve um contínuo crescimento real destes gastos, mas o importante a destacar é que cresceram abaixo do PIB, o que garantiu uma redução considerável da participação das despesas correntes do governo no produto: esta chegou a ser da ordem de 50% do PIB em 1983, caindo para 26% do PIB em 2001.

Na Irlanda, o forte crescimento da economia viabilizou o ajuste fiscal, pois é bem mais fácil realizá-lo em uma economia em crescimento acelerado

Como se vê, o ajuste da participação dos gastos públicos no produto na Irlanda partiu de um patamar inicial extremamente elevado. As altas taxas de crescimento do PIB também levaram a uma redução acelerada da relação dívida pública/PIB: de 96% em 1983, para 31% em 2001. Vale destacar que alguns cortes de gastos públicos foram compensados em larga medida pelas transferências de recursos do Fundo Regional de Desenvolvimento (FRD) da União Européia à Irlanda, que viabilizaram, principalmente, os investimentos em infra-estrutura, essenciais para o aumento da competitividade da indústria irlandesa. Os repasses do FRD, normalmente omitidos nas análises correntes do sucesso irlandês, foram expressivamente elevados de 1991 a 2001, atingindo o máximo de 1,4% do PIB em 1992 e uma média de 0,8% do PIB no período.

A evolução dos juros também contribuiu para a melhora das contas públicas: tanto diretamente, pela redução das despesas financeiras, quanto indiretamente, ao favorecer um crescimento mais rápido do PIB. É clara a tendência declinante dos juros reais a partir dos anos 1990. Entretanto, vale ressaltar que esta queda não esteve associada a um prévio ajuste fiscal do setor público. Esteve, sim, associada a fatores exógenos resultantes da maior integração da Irlanda na União Européia e do ciclo de alta liquidez internacional.

Em relação à política industrial, a adoção de medidas para atração de Investimento Externo Direto (IED) transformou a Irlanda em algo próximo de uma zona franca para as grandes empresas americanas de software. Além da cobrança dos impostos mais baixos da União Européia – de cerca de 10% -, outra vantagem importante eram os baixos custos da mão-de-obra em relação aos outros países europeus. Houve um forte crescimento da produtividade e a tendência de redução real dos custos do trabalho na Irlanda, de 1980 a 2004. A evolução da taxa de câmbio também foi importante fator para o aumento da competitividade da Irlanda: ao longo dos anos 1980 até 1998 (antes da adoção do euro), a moeda irlandesa manteve-se expressivamente depreciada em relação ao dólar.

Podemos tirar muitas lições do sucesso irlandês, mas destacaremos duas. Como vimos, o ajuste fiscal prévio como determinante do crescimento não é uma delas. Uma primeira lição diz respeito à importância da implementação de políticas públicas expansionistas articuladas com o setor privado, visando um desenvolvimento sustentável a longo prazo. Nenhuma novidade: é a “velha e boa” política keynesiana.

Uma outra lição, que a experiência dos EUA já havia demonstrado, é que é muito mais fácil fazer o ajuste fiscal em uma economia em crescimento acelerado. Foi o forte crescimento da economia irlandesa que viabilizou o ajuste fiscal do governo e não o contrário. Quando se recebe recursos extraordinários, como os da União Européia, melhor ainda. Na impossibilidade de ser presenteado com recursos como estes, resta ao Brasil observar, com a devida atenção as verdadeiras lições da experiência irlandesa.

Ana Claudia Alem é economista do BNDES e co-autora do livro “Finanças Públicas: Teoria e Prática no Brasil”, editora Campus. Jose Antônio Pereira de Souza é economista do BNDES.

Luis Nassif

8 Comentários

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  1. Nassif,

    Quantas divisões tem
    Nassif,

    Quantas divisões tem o papa?

    Sei lá porque me lembro dessa cínica pergunta de Stálin a um diplomata francês toda vez que alguém quer tomar a Irlanda como modelo de desenvolvimento para o Brasil. Deve ser porque não concebo que algo tão pequeno possa ser comparado com algo tão grande. É que há coisas que não são confrontáveis. Aquele país tem uma população menor que a metade da população da cidade de São Paulo. Um sub prefeito poderia orientar o país para o caminho certo, se tivesse o mínimo de bom senso. Bolar uma política econômica para o Brasil é algo desmesuradamente mais complexo. O mesmo se aplica ao Chile.

  2. A Irlanda cresceu pelo mesmos
    A Irlanda cresceu pelo mesmos motivos que a Coréia do Sul cresceu e que a China e a Argentina crescem hoje. Eles simplesmente entenderam a realidade do país e formularam a sua própria política econômica, realizando um plano nacional de desenvolvimento. Esses países perceberam que não adianta importar modelos econômicos de outros países, mas sim seguir o que a sua própria realidade os impôem. Eles simplesmente mandaram às favas os dogmas.

    Obs: Os autores desse artigo esqueceram de citar os investimentos em ciências e tecnologia e na educação em geral.

  3. Caro Nassif:

    Mais um
    Caro Nassif:

    Mais um comentário do Mino Carta ( http://z001.ig.com.br/ig/61/51/937843/blig/blogdomino/2007_02.html ):

    – O encontro de Salvador encerrou-se com a denúncia da política de juros até agora adotada pelo governo Lula. O PT aprovou uma resolução que, entre outras coisas, invoca a renovação da equipe econômica, para realizar “os objetivos defendidos durante a campanha eleitoral”. Está claro que se invoca é a substituição Meirelles e da diretoria do Banco Central, aparentemente em contraste com as intenções do presidente da República. Em Salvador, Lula fez um apelo à paz, mas ao BC o partido declara guerra. Há quem diga que desta vez a coisa pode pegar fogo.

    Um leitor brasileiro inteligente de seu blog certamente irá informar ao Mino Carta que você, Luis Nassif (não filiado ao PT), possui os melhores números e argumentos do Brasil para ganhar essa guerra.

    Se alguém quiser usar o tempo para realizar algo útil para si mesmo e para o país, por favor, faça isso!

  4. Caro Nassif:

    Vou contar uma
    Caro Nassif:

    Vou contar uma pequena estória para evitar que os jornalões e mesmo você fiquem “pagando mico” publicando artigos como esse sobre a Irlanda – os brasileiros sequer conhecem o país sobre o qual escrevem. Compare-o, por exemplo, com o artigo sobre o etanol que possui as “impressões digitais” do professor Ignacy Sachs. Como um pode ser tão idiota e outro tão inteligente?

    Existe um filme de um cineasta russo chamado Klimov que possui o sugestivo título “Vá e veja”. Rodado no tempo (1984) em que ainda existia a URSS comunista atéia, o título é inspirado na Bíblia: “E havendo o cordeiro aberto um dos selos, olhei, e ouvi um dos quatro animais, que dizia como em voz de trovão: Vem, e vê” (Apocalipse, capítulo 6, versículo 1)

    Apocalipse significa “revelação” e não “fim do mundo”, como muitos querem fazer crer.

    Essa tradição eslava é forte e influencia mesmo os não-cristãos, como o professor Ignacy Sachs e o escultor Frans Krajcberg, para mencionar duas pessoas conhecidas pelos brasileiros. Essa capacidade de ir pessoalmente nos lugares e observar, conviver e respeitar os outros é a força que sustenta e dá brilho ao trabalho deles e de muitos, como o excelente jornalista Ryszard Kapuscinski, recentemente falecido.

    Será que o Luis Nassif teria que pegar um avião e ir para a Irlanda para poder escrever sobre o assunto para seus leitores? Essa é uma condição necessária, mas insuficiente.

    Onde estão os mapas da Irlanda, qual é a composição de sua terra e de sua gente, que dificuldades enfrentam no dia-a-dia, o que pensam de seu país, qual é a relação entre o povo e o governo, quais são os planos para o futuro?

    O método vale também para o Brasil. A primeira impressão de qualquer visitante é pouco agradável, palavras do Mino Carta ( http://z001.ig.com.br/ig/61/51/937843/blig/blogdomino/2007_01.html ) que também poderiam ser as minhas:

    – Quem sai de Roma vive um belo momento para encher os olhos e revigorar a cultura histórica. Passa ao lado do Capitolio, do Teatro de Marcelo, de Santa Maria in Cosmedin, do Circo Maximo, das igrejas bizantinas do Aventino, de San Paolo Fuori le Mura. Ao cabo, nem percebe que a periferia acabou e pega a estrada do aeroporto ao longo do campo bem penteado. A chegada em São Paulo é opressiva ainda no ar, quando o avião sobrevoa terra inculta a perder de vista e aglomerados urbanos concebidos como favelas mesmo quando são de cal e tijolos, e de concreto até. A marginal do Tietê deprime, a idéia da pobreza intelectual e moral dos senhores fere ainda mais que o panorama miserável, aquele mar de casebres onde se fincam espigões atrozes, sem chance de reflexo no curso de lama do rio. Ou melhor, ex-rio. Me ocorre pensar no projeto de renovação da rua Oscar Freire, em benefício das dondocas e das peruas. Há tanto para fazer nesta cidade, na tentativa de reparar os males da falta de planejamento das últimas quatro ou cinco décadas, a partir do momento em que São Paulo deu para orgulhar-se por ser “a cidade que mais cresce no mundo”. Mas os administradores públicos preferem enterrar os fios elétricos de uma rua que, em outros tempos, foi muito mais charmosa, com postes e tudo.

    Tanta coisa importante a fazer no Brasil e os nativos ficam sonhando com a Irlanda! Pensando bem, chamar o artigo dos brasileiros de idiota é um elogio.

  5. Nassif essa vai ser uma
    Nassif essa vai ser uma critica a muitos que comentam sobre economia. Falam de cambio, juros, previdência. Mas tem medo de colocar o dedo na ferida. A CARGA TRIBUTARIA ALTA e DESIGUAL. Se você puder comente sobre isso. Como diminuir e equalizar(mais justa) a cobrança e os benefícios dela?

  6. A lição é, para mim, muito
    A lição é, para mim, muito mais simples: não se perde uma oportunidade que o mundo lhe oferece para o desenvolvimento. Esta oportunidade foi dada à Europa e ao Japão após a 2a guerra, foi dada aos tigres asiáticos após a guerra da Coréia, foi dada à China na década de 90, quando os EUA abriram mão de parte substantiva de sua indústria, e foi finalmente dada a todos os países emergentes desde 2003. Tudo o que você tem que fazer é capitalizar em cima da oportunidade. O que a economia brasileira fez de julho de 2003 até o início de 2005 foi algo extraordinário: a combinação do desempenho das exportações, do agronegócio em particular, do boom de crédtio de pessoa física, impulsionando a idústria e viabilizando um início de recuperação da massa salarial, foi a oportunidade de ouro da economia brasileira. Capitalizamos? Não, seguimos políticas econômicas 100% equivocadas… Agora é bem mais difícil: o Brasil tem que crescer com dois pés no freio – desindustrialização pelo câmbio e um juro de 50% sobre os empréstimos PF – e 8 malucos no BC…

    Ruben

    PS: Nassif, vc sabe desde qdo Brasil não pratica juro nominal (livre)abaixo de 12%?

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