Numa tacada, projeto ameaça futuro da educação, do SUS e do BNDES, por Lauro Veiga Filho

PEC Emergencial já define caminhos para governo financiar gastos com o enfrentamento da pandemia, sem necessidade de desmonte da saúde e da rede pública de ensino

Numa tacada, projeto ameaça futuro da educação, do SUS e do BNDES

por Lauro Veiga Filho

Sob pressão da equipe econômica e movido por interesses não revelados, mas inferidos, o Senado deverá votar na quinta-feira, 25, a chamada “PEC Emergencial”, a proposta de emenda constitucional que ameaça desmontar o Sistema Único de Saúde (SUS), atingir seriamente a educação pública e afetar dramaticamente o financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A “moeda de troca”, delineada nitidamente na verdadeira chantagem promovida pelo senhor Paulo Guedes, será a aprovação da volta de um auxílio emergencial mitigado às famílias mais atingidas pela pandemia.

O caráter impróprio e suspeito da negociação entre o Ministério da Economia e a base de sustentação do governo no Congresso surge já no parecer protocolado na terça-feira, 23, pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC. Uma constatação se impõe, entre outras: o projeto de emenda cria as condições necessárias para que o governo retome o auxílio emergencial e possa ainda realizar outros tipos de despesas exigidas para o enfrentamento da Covid-19, sem que para isso fosse necessário atacar os recursos destinados à educação, à saúde e ao financiamento de longo prazo no País.

Entre outras providências, o projeto cria o “estado de calamidade pública de âmbito nacional”, a ser decretado pelo Congresso por iniciativa da Presidência da República, autorizando a União a “adotar regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes, somente naquilo em que a urgência for incompatível com o regime regular”. Uma das consequências é que o teto de gastos não precisará ser observado enquanto perdurar a calamidade e as despesas realizadas para seu enfrentamento não serão consideradas no cálculo do resultado primário (quer dizer, a diferença entre receitas e despesas, excluídos gastos com juros).

A medida abole ainda limites para a contratação de operações de crédito pela União, que poderá aumentar sua dívida para fazer frente àquelas despesas (como já ocorreu no ano passado, não só no Brasil, mas em todos os países). Adicionalmente, a União poderá utilizar sobras de receitas e de despesas autorizadas, mas não desembolsadas, para cobrir aqueles gastos. Essas “sobras” ajudam a compor o que a contabilidade pública classifica como “superávit financeiro” e, sem a PEC, deveria ser destinado exclusivamente para o pagamento de juros e de amortizações da dívida pública federal. A emenda permite, assim, que uma parte do saldo seja destinada aos gastos emergenciais contra a pandemia.

Conta única

Em dezembro do ano passado, as disponibilidades de recursos do Tesouro no Banco Central (BC), alocados na conta única da entidade, atingiram recorde de R$ 1,452 trilhão, algo como 19,6% do Produto Interno Bruto (PIB) – a relação mais elevada na série histórica recente do BC, iniciada em 2006. Entre dezembro de 2019 e julho do ano passado, o saldo daquela conta havia sofrido baixa de 45,0%, saindo de R$ 1,439 trilhão para R$ 790,889 bilhões (R$ 647,868 bilhões a menos). Mas o Tesouro recompôs a conta rapidamente nos cinco meses seguintes, estacionando mais R$ 661,722 bilhões em sua conta no BC, mais do que compensando os “saques” realizados nos meses anteriores exatamente para cobrir despesas iniciais geradas pela necessidade de enfrentar a pandemia.

Segundo o economista Bráulio Borges, da LCA Consultores, com autorização do chamado “orçamento de guerra”, que permitiu a abertura de créditos extraordinários em 2020, o BC pôde aportar na conta única do Tesouro parte do ganho cambial obtido em reais com o impacto da alta do dólar sobre as reservas internacionais (próximas de US$ 350,0 bilhões). Isso ajudou a recompor o saldo da conta única, assim como, nos últimos dois meses de 2020, a venda de títulos públicos pelo Tesouro em valor muito superior à dívida que venceria no período e ao déficit primário realizado em novembro e dezembro. As disponibilidades financeiras do Tesouro são igualmente afetadas, lembra Borges, pelos pagamentos de dívida por Estados e prefeituras, receitas de privatizações e dinheiro devolvido pelo BNDES ao Tesouro.

Por que todos esses detalhes muito técnicos são importantes? Porque eles mostram que o governo tem condições de continuar bancando o auxílio emergencial e mesmo outros tipos de despesas relacionadas à pandemia sem a necessidade de submeter o setor público como um todo a um arrocho inédito e, mais grave, inscrito na Constituição, caso a PEC Emergencial seja aprovada sem alterações. E reafirmam ainda o caráter essencialmente disfuncional do teto de gastos.

Desmonte avança

As ameaças mais evidentes, salvo outros “truques” embutidos na PEC, estão relacionadas ao fim da vinculação de recursos orçamentários para a saúde e para a educação, além da autorização, em princípio excepcional, para suspender o repasse de 28% das contribuições do Programa de Integração Social (PIS) e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP) “ao financiamento de programas de desenvolvimento econômico, através do BNDES”.

Entre outras medidas, a proposta revoga o parágrafo 2º e o inciso I do parágrafo 3º do artigo 198 da Constituição Federal, que definem a vinculação de despesas para saúde e educação. Hoje, a União é obrigada a reservar 15% e 18% dos recursos para aqueles dois setores, respectivamente. Nos Estados, os pisos para financiamento de ações e serviços públicos de saúde e para a educação estão fixados em 12% e 25%, pela ordem.

Sem esses limites, saúde e educação terão que brigar no Congresso por sua fatia no orçamento federal, enfrentando setores e interesses muito mais fortes e lobbies poderosos. A medida representa uma clara ameaça ao Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo atendimento a milhões de brasileiros atingidos pelo Sars-CoV-2.

O ajuste atingirá também o funcionalismo público, sem qualquer gradação ou distinção entre faixas de rendimentos. No caso da União, sempre que as operações de crédito ameaçarem superar os gastos de capital (a chamada “regra de ouro”), o que inclui investimentos, serão bloqueadas as promoções e progressões funcionais e reajustes salariais. Para que isso, nem será preciso que ocorra de fato a quebra da “regra de ouro”. Bastará que o governo inclua uma estimativa naquela direção no projeto da lei orçamentária a vigorar no exercício seguinte.

Redação

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