Os 6 anos que abalaram os bancos

Do Esquerda.net

Bancos contra povos: os bastidores de um jogo manipulado!

por Eric Toussaint

Parte 1 : 2007-2012: 6 anos que abalaram os bancos

Desde 2007-2008, os grandes bancos centrais (BCE, Banco da Inglaterra, a Fed nos EUA, o Banco da Suíça) têm como prioridade absoluta tentar evitar o colapso do sistema bancário privado. Contrariamente ao discurso dominante, a principal ameaça para os bancos não é a suspensão do pagamento da dívida soberana pelo Estado |1| soberano. Desde 2007, nenhuma das falências bancárias foi causada por essa falta de pagamento. Nenhum dos resgates bancários levados a cabo pelos Estados teve como causa a suspensão de pagamentos por parte de Estados sobreendividados. Desde 2007 o que ameaça os bancos são as dívidas privadas que os bancos foram gradualmente fomentando devido à grande desregulação iniciada em finais dos anos setenta e concluída nos anos noventa. Os balanços dos bancos privados estão sempre contaminados por ativos |2| duvidosos: desde ativos tóxicos que são bombas ao retardador até ativos ilíquidos (que não podem ser vendidos, nem passados, nos mercados financeiros), passando por ativos cujo valor é bastante superestimado nos balanços bancários. A venda e a depreciação de ativos que os bancos têm inserido nas suas contas, com o objectivo de reduzirem o peso desses ativos explosivos, não são suficientes. Uma parte significativa desses ativos depende de um financiamento a curto prazo (concedido ou garantido pelos poderes públicos, com base no dinheiro dos contribuintes) para se manter à tona |3| e para fazer face às dívidas de curto prazo. Foi o que aconteceu com o banco franco-belga Dexia, um verdadeiro hedge fund de grande dimensão, que, em quatro anos, esteve três vezes à beira da falência: em outubro de 2008, em outubro de 2011 |4| e em outubro de 2012 |5|. Durante o episódio mais recente, que teve início em novembro de 2012, os estados francês e belga concederam uma ajuda de 5,5 mil milhões (53% do valor foi garantido pela Bélgica) para recapitalizar o Dexia SA, sociedade financeira moribunda, que viu desaparecer os seus próprios fundos. De acordo com Le Soir: «os capitais próprios do Dexia-casa-mãe passaram de 19,2 mil milhões para 2,7 mil milhões de euros entre o final de 2010 e o final de 2011. E a nível de grupo, o total dos fundos próprios foi negativo (-2,3 mil milhões em 30 de junho de 2012)» |6|. No final de 2011, as dívidas a exigir de imediato ao Dexia SA ascendiam a 413 mil milhões de euros e os montantes devidos em termos de contratos de derivados eram superiores a 461 mil milhões de euros. A soma desses dois valores era superior a mais de duas vezes e meia o PIB da Bélgica! No entanto, os dirigentes do Dexia, o belga vice-primeiro-ministro Didier Reynders e os principais meios de comunicação social ainda alegam que o problema do Dexia SA é em grande parte causado pela crise da dívida soberana no sul da zona do euro. A verdade é que os créditos do Dexia SA em relação à Grécia não excediam 2 mil milhões de euros em Outubro de 2011, ou seja, duzentas vezes menos do que a dívida a pagar de imediato. Em outubro de 2012, as ações do Dexia valiam cerca de 0,18 euros ou 100 vezes menos do que em setembro de 2008. Apesar de tudo, os estados francês e belga decidiram, mais uma vez, salvar esse « mau banco», aumentando de repente a dívida pública dos seus países. Em Espanha, a quase falência do Bankia foi também causada por acordos financeiros duvidosos e não por qualquer tipo de incumprimento por parte do Estado. O cenário repetiu-se pelo menos trinta vezes na Europa e nos Estados Unidos desde 2008: os poderes públicos estiveram sempre (e sistematicamente) ao serviço dos bancos privados, financiando o seu resgate através do endividamento público.

De volta ao início da crise em 2007

A construção gigantesca de dívidas privadas começou a ruir com a explosão da bolha especulativa no mercado imobiliário dos Estados Unidos (seguido pelo mercado imobiliário da Irlanda, do Reino Unido e de Espanha,…). A bolha imobiliária explodiu nos Estados Unidos quando o preço das habitações construídas em grandes quantidades começou a cair, porque cada vez mais as casas não tinham compradores.

As explicações truncadas e enganadoras sobre a crise que eclodiu nos Estados Unidos em 2007, que teve um enorme efeito de contágio principalmente na Europa Ocidental, prevaleceram nas explicações dadas pelos principais meios de comunicação social. Com regularidade, em 2007 e durante boa parte de 2008, explicou-se à opinião pública que a crise tinha começado nos Estados Unidos, porque os pobres estavam muito endividados por terem comprado casas que não eram capazes de pagar. O comportamento irracional dos pobres foi apontado como tendo sido o causador da crise. A partir de finais de setembro de 2008, após a falência do Lehman Brothers, o discurso dominante mudou e começou-se a apontar o dedo às ovelhas negras que no mundo das finanças tinham pervertido o funcionamento virtuoso do capitalismo. Mas mantêm-se as mentiras ou as explicações truncadas, que continuaram a circular. Passou-se dos pobres responsáveis pela crise para as maçãs podres da classe capitalista: Bernard Madoff, que montou um golpe 50 mil milhões de dólares, ou Richard Fuld, o patrão do Lehman Brothers.

As premissas da crise remontam a 2006, quando se inicia nos Estados Unidos a queda dos preços do imobiliário, causada pela superprodução que foi provocada pela bolha especulativa, que, inflacionando os preços do imobiliário, levou o sector da construção a aumentar exageradamente a sua actividade em relação à procura existente. Foi a queda dos preços do imobiliário que levou a um aumento do número de famílias incapazes de pagarem as mensalidades das suas hipotecas subprimes. De facto, nos Estados Unidos, as famílias têm a oportunidade e o costume, quando os preços dos imóveis sobem, de refinanciar as suas hipotecas, após dois ou três anos, a fim de obterem condições mais favoráveis (em particular no sector subprime, a taxa inicial a dois ou três anos é baixa e fixa e ronda os 3%, mas depois dispara e torna-se variável no terceiro ou quarto ano). Dado que os preços do imobiliário começaram a cair em 2006, as famílias que utilizaram empréstimos subprime deixaram de ser capazes de refinanciar a sua hipoteca favoravelmente. Os incumprimentos começaram a aumentar de forma acentuada a partir do início de 2007, o que provocou a falência de 84 empresas de hipotecas nos Estados Unidos, entre janeiro e agosto de 2007.

Apesar de a crise ser explicada com frequência de forma simplista pela explosão de uma bolha especulativa, na realidade, a causa deve ser procurada tanto no sector produtivo como ao nível da especulação financeira. É certo que o facto de a bolha ter sido criada, e de acabar por rebentar, apenas multiplica os efeitos da crise que começou no sector produtivo. Todos os empréstimos subprime e produtos estruturados, criados desde meados dos anos noventa, entraram em colapso, o que teve efeitos terríveis sobre a produção em vários sectores da economia real. As políticas de austeridade ampliaram ainda mais o fenómeno que gera depois o período depressivo e de recessão, que se arrasta e mantém como refém a economia dos países industrializados.

A crise do imobiliário nos Estados Unidos e a crise bancária que se lhe seguiu provocaram um enorme efeito de contágio a nível internacional, levando muitos bancos europeus a investirem de forma massiva em produtos estruturados e derivados norte-americanos. Desde os anos noventa, o crescimento dos Estados Unidos e de várias economias europeias foi apoiado por uma hipertrofia do sector financeiro privado e um aumento muito grande das dívidas privadas: endividamento das famílias |7|, dívida das empresas financeiras e não-financeiras. Ao contrário, as dívidas públicas tenderam a diminuir entre a segunda metade dos anos noventa e os anos de 2007-2008.

Hipertrofia do sector financeiro privado, portanto. O volume de ativos dos bancos privados europeus, em relação ao produto interno bruto, cresceu de maneira exponencial a partir da década de noventa, atingindo, na União Europeia, três vezes e meia o PIB dos 27 países membros da UE em 2011 |8|. Na Irlanda, em 2011, os ativos dos bancos representavam oito vezes o produto interno bruto do país.

As dívidas dos bancos privados |9| da zona euro representam também três vezes e meia o PIB da zona. As dívidas do sector financeiro britânico atingem máximos em relação ao PIB: chegam a ser onze vezes superiores, representando a dívida pública cerca de 80% do PIB.

A dívida bruta dos Estados da zona do euro representava 86% do PIB dos 17 países em 2011 |10|

. A dívida pública grega representava 162% do PIB grego em 2011. Por seu turno, as dívidas do sector financeiro representam 311% do PIB, ou seja, o dobro. A dívida pública espanhola atingiu 62% do PIB em 2011. No entanto, as dívidas do sector financeiro atingiram 203%, ou seja, o triplo da dívida pública.

Um pouco de história: a criação de uma regulação financeira rigorosa, na sequência da crise de 1930

O colapso de Wall Street em outubro de 1929, a enorme crise bancária de 1933 e o prolongado período de crise económica nos Estados Unidos e na Europa, na década de trinta, levaram o presidente Franklin Roosevelt, e de seguida a Europa, a regular fortemente o sector financeiro para evitarem a repetição de graves crises bolsistas e bancárias. Consequência: durante os 30 anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, o número de crises bancárias foi mínimo. É o que mostram dois economistas neoliberais norte-americanos, Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, num livro publicado em 2009, intitulado Desta Vez É Diferente. Oito Séculos de Loucura Financeira. Kenneth Rogoff foi economista-chefe do FMI e Reinhart Carmen, professor universitário, é conselheiro do FMI e do Banco Mundial. De acordo com esses dois economistas, que são tudo menos favoráveis a questionar o capitalismo, a quantidade muito reduzida de crises bancárias explica-se principalmente «pela repressão dos mercados financeiros nacionais (em diferentes níveis), e por um recurso massivo ao controlo de capitais, durante os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial» |11|.

Uma das medidas fortes tomadas por Roosevelt e pelos governos da Europa (nomeadamente sob a pressão de mobilizações populares na Europa, que surgiram após a libertação) consistiu em limitar e regular, de forma estrita, o uso que os bancos podiam fazer do dinheiro das pessoas. Esse princípio de protecção dos depósitos levou à distinção entre bancos comerciais e bancos de investimento, criados pela lei norte-americana Glass-Steagall Act, que foi a mais conhecida, tendo sido aplicada, com algumas variações, nos países europeus.

Devido a essa separação, só os bancos comerciais podiam receber depósitos do público, que beneficiavam de uma garantia do Estado. Paralelamente, o seu campo de atividade tinha ficado limitado à concessão de empréstimos a particulares e a empresas e excluía a emissão de títulos, de ações e de outros instrumentos financeiros. Os bancos de investimento deviam, por sua vez, ir buscar os seus recursos aos mercados financeiros, para poderem emitir títulos, ações e outros instrumentos financeiros.

A desregulação financeira e a viragem neoliberal

A viragem neoliberal de finais da década de setenta pôs em causa essas regulações. Após cerca de vinte anos, a desregulação bancária e financeira ficou concluída. Como revelam Kenneth Rogoff e Reinhart Carmen, as crises bancárias e bolsistas multiplicaram-se a partir dos anos oitenta e atingiram níveis cada vez mais preocupantes.

Segundo o modelo tradicional, herdado do período em que existia regulação, os bancos avaliam e assumem o risco, ou seja, analisam os pedidos de crédito, decidem ou não satisfazê-los e, uma vez os empréstimos concedidos, registam-nos nos seus balanços até ao final do prazo do empréstimo (estamos a falar do modelo originate and hold – «originar e manter»).

Aproveitando a tendência de profunda desregulação, os bancos abandonaram o modelo «originar para manter» com o objectivo de aumentarem o rendimento dos fundos próprios. Nesse sentido, os bancos inventaram novos procedimentos, em especial, a titularização, que significa transformar os créditos bancários em títulos financeiros. A finalidade era simples: consistia em não registar nas contas dos bancos os créditos e os respectivos riscos. Os bancos transformaram esses créditos em títulos, os denominados produtos financeiros estruturados, que vendiam a outros bancos e a outras instituições financeiras privadas. Estamos falar de um novo modelo bancário designado originate to distribute, «originar para distribuir», também chamado originate repackage and sell, que consiste em conceder o crédito, titularizá-lo e vendê-lo. Para o banco, a vantagem é dupla: reduz o risco porque os créditos concedidos baseiam-se em ativos e, por outro lado, dispõe de meios suplementares para poder especular.

A desregulação permitiu ao sector financeiro privado, nomeadamente aos bancos, acionar com frequência o chamado efeito de alavancagem. Xavier Dupret descreve, com clareza, o fenómeno: «O mundo bancário envididou-se muito, nos últimos anos, devido ao chamado efeito de alavancagem. A alavancagem significa recorrer ao endividamento para aumentar a rentabilidade sobre o capital próprio. E para funcionar, é necessário que a taxa de rentabilidade do projeto selecionado seja superior às taxas de juro a pagar sobre o montante que se pediu emprestado. Os efeitos de alavancagem tornaram-se cada vez mais importantes ao longo do tempo. É evidente que isso gerou problemas. Na primavera de 2008, os bancos de investimento de Wall Street desencaderam efeitos de alavancagem que oscilavam entre 25 e 45 (para um dólar de fundos próprios, pediam emprestado entre 25 e 45 dólares). O Merrill Lynch, por exemplo, tinha um efeito de alavancagem de 40. Essa situação tornou-se obviamente explosiva, porque uma instituição que tem uma alavancagem de 40 para 1 vê os seus fundos próprios caírem 2,5% (1/40) do valor dos ativos adquiridos.» |12|

Devido à desregulação, os bancos puderam desenvolver atividades que envolviam grandes volumes de financiamento (e, portanto, de dívida), sem registarem isso nos seus balanços. As operações fora do balanço atingiram tal dimensão que, em 2011, o volume da atividade em causa excedia os 67 biliões de dólares (o que equivale aproximadamente à soma do PIB de todos os países do mundo): é o que se chama sistema de bancos-sombra, o shadow banking |13|. Quando as operações fora do balanço provocam perdas avultadas, isso afeta, mais cedo ou mais tarde, a saúde dos bancos que levaram a cabo essas operações. São, sobretudo, os grandes bancos que dominam essa atividade sombra. A ameaça de falência leva os Estados a irem em seu socorro, procedendo a recapitalizações. Apesar de os balanços oficiais dos bancos registarem uma diminuição de volume, desde o início da crise em 2007-2008, o volume das operações fora de balanço, o shadow banking, não seguiu a mesma tendência. Depois de ter caído entre 2008 e 2010, voltou em 2011 e 2012 ao nível de 2006-2007, o que é um sintoma claro da perigosidade da situação das finanças privadas mundiais. De repente, o raio de ação nacional e internacional das instituições públicas, que têm a obrigação, para usar o vocabulário deles, de levar a finança a assumir um comportamento mais responsável, é muito limitado. Os reguladores não disponibilizam os meios necessários para que se conheça a actividade real dos bancos que eles têm o dever de controlar.

O Conselho de Estabilidade Financeira (CEF), o órgão instituído pelo G20 e encarregue de supervisionar a estabilidade financeira mundial, divulgou os números de 2011. «A dimensão do shadow banking, escapando a todo tipo de regulação, é de 67 biliões de dólares, de acordo com o relatório que estuda 25 países (90% dos ativos financeiros mundiais). São mais 5-6 biliões do que em 2010. Esse sector “paralelo” equivale, por si só, a metade do volume dos ativos totais dos bancos. Tomando por referência o Produto Interno Bruto dos países, a banca sombra prospera em Hong Kong (520%), Holanda (490%), Reino Unido (370%), Singapura (260%) e Suíça (210%). Mas, em termos absolutos, os Estados Unidos continuam em primeiro lugar com um sector paralelo de 23 biliões de ativos em 2011, seguido da zona euro (22 biliões) e do Reino Unido (9 biliões).» |14|

Uma grande parte das transações financeiras escapa totalmente ao controlo oficial. Como foi referido anteriormente, a dimensão da actividade dos bancos sombra representa metade do volume dos ativos totais dos bancos! É preciso também avaliar o mercado fora de bolsa (OTC*) – isto é, o mercado que não é controlado pelas autoridades reguladoras dos mercados – os produtos financeiros derivados. O volume de produtos derivados cresceu de forma exponencial entre os anos noventa e os anos 2007-2008. Tendo diminuído ligeiramente no início da crise, o valor nocional dos contratos de derivativos no mercado fora de bolsa atingiu, em 2011, a soma astronómica de 650 biliões de dólares (650 000 000 000 000 $), cerca de 10 vezes o PIB mundial. O volume do segundo semestre de 2007 foi ultrapassado e o do primeiro semestre de 2008 está em vias… os swaps de taxas de juros representam 74% do total, os derivados sobre os mercados de divisas representam 8%, os Credit default swaps (CDS) 5%, os derivados sobre os mercados de ações de 1%, o resto reparte-se por múltiplos produtos.

Após 2008 os resgates bancários não geraram comportamentos mais responsáveis

A crise financeira de 2007 viu os bancos, ainda que culpados por má conduta e por assumirem posições arriscadas e imprudentes, receberem injeções maciças de fundos por intermédio de vários e caros planos de resgate. Num estudo bem documentado |15|, dois investigadores tentaram verificar «se as operações públicas de resgate foram seguidas de uma maior redução do risco na concessão de novos empréstimos pelos bancos resgatados, comparativamente aos bancos que não foram resgatados». Com esse objectivo, os autores analisaram os balanços e os empréstimos sindicalizados (trata-se de créditos concedidos a uma empresa por vários bancos) relativos a 87 grandes bancos comerciais internacionais. Os autores verificaram que «os bancos ajudados continuaram a conceder empréstimos sindicalizados mantendo o risco», adiantando que «os empréstimos sindicalizados dos bancos que receberam ajuda eram, depois do resgate, mais arriscados do que antes da crise, comparando com as instituições que não receberam ajuda». Em vez de serem um remédio e uma proteção eficaz contra os caprichos dos bancos, os planos de resgate dos Estados tornaram-se, pelo contrário, muitos deles, um forte incentivo à continuação e intensificação das práticas pecaminosas. Na verdade, «a perspectiva de um apoio por parte do Estado pode constituir um álibi moral e pode levar os bancos a aumentarem o risco».
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Em suma, a grave crise das dívidas privadas, provocada pelo comportamento irresponsável dos grandes bancos, levou os dirigentes norte-americanos e europeus a irem em seu socorro, utilizando fundos públicos. A sirene lancinante da crise das dívidas soberanas pôde, então, ser acionada para impor sacrifícios brutais aos povos. A desregulação financeira dos anos noventa foi terreno fértil para esta crise com consequências sociais dramáticas. Enquanto não regularem a finança internacional, os povos continuarão subjugados. A luta deve ser intensificada o mais depressa possível.

Trad. Maria da Liberdade

O autor agradece a Patrick SaurinDaniel MunevarDamien Millet e Virginie de Romanet pela ajuda que deram na elaboração do parte.

Parte 2 : O BCE e o Fed ao serviço dos grandes bancos privados

A atividade do Banco Central Europeu e do Fed |17|

Os bancos europeus entraram numa fase crítica a partir de junho de 2011. A situação era quase tão grave como após a falência do Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008. Muitos deles estavam à beira da asfixia, porque as suas enormes necessidades de financiamento a curto prazo (alguns milhares de milhões de dólares) deixaram de ser satisfeitas pelos money market funds americanos, que consideravam que a situação dos bancos europeus era cada vez mais arriscada |18|. Os bancos foram confrontados com a ameaça de não conseguirem pagar as dívidas. Foi então que o BCE, na sequência de uma cimeira europeia, que se realizou de urgência a 21 de julho de 2011 para fazer face a uma série de possíveis falências bancárias, recomeçou a comprar, em grandes quantidades, títulos de dívida pública grega, portuguesa, irlandesa, italiana e espanhola, para fornecer liquidez aos bancos e aliviar o peso de uma parte dos títulos que tinham comprado avidamente no período anterior. Mas não foi suficiente. A derrocada do preço das ações dos bancos na bolsa continuava. Para os patrões dos bancos, agosto foi o mês de todos os perigos. A abertura pelo BCE, em setembro de 2011, de uma linha de crédito ilimitada, em concertação com o Fed, o Banco de Inglaterra e o Banco da Suíça, foi decisiva para manter à tona os bancos europeus: os bancos com falta de dólares e de euros foram colocados sob observação. Começaram a respirar outra vez, mas a medida foi insuficiente. A descida aos infernos continuava. Entre 1 de janeiro e 21 de outubro de 2011, a atividade da Société Générale caiu 52,8%, a do BNP Paribas, 33,3%, a do Deutsche Bank, 28,8%, a do Barclays, 30,5%, a do Credit Suisse, 36,7%. O BCE teve de utilizar a sua bazuca LTRO (Long Term Refinancing Operation): emprestou mais de um bilião de euros, a um prazo de três anos e a um juro de 1%, a mais de oitocentos bancos, entre dezembro de 2011 e fevereiro de 2012.

O Fed fez praticamente o mesmo, desde 2008, a uma taxa oficial ainda menor: 0,25%. Na verdade, como revelou, em julho de 2011, um relatório do GAO (equivalente nos Estados Unidos ao Tribunal de Contas), o Fed emprestou 16 biliões de dólares a uma taxa de juro inferior a 0,25% |19|. O relatório mostra que, ao agir desse modo, o Fed não respeitou as suas próprias regras prudenciais e não informou o Congresso sobre o sucedido. De acordo com uma comissão de inquérito do Congresso dos Estados Unidos, o conluio entre o Fed e os grandes bancos privados era evidente: «O diretor-geral do JP Morgan Chase era membro da Reserva Federal de Nova Iorque, na altura em que o “seu” banco recebia ajuda financeira do Fed, no valor de 390 mil milhões de dólares. Além disso, o JP Morgan Chase servia também de intermediário para o crédito de urgência concedido pelo Fed |20|». De acordo com Michel Rocard, ex-primeiro-ministro francês, e Pierre Larrouturou, economista, que se baseiam numa investigação realizada pela agência financeira nova-iorquina, Bloomberg, o Fed teria emprestado parte da quantia acima mencionada a um juro ínfimo: 0,01%. Michel Rocard e Pierre Larrouturou afirmam no jornal Le Monde: «Depois de ter desbravado 20.000 páginas de vários documentos, a Bloomberg mostra que a Reserva Federal emprestou secretamente a bancos em dificuldades a quantia de 1,2 biliões, a juros incrivelmente baixos, de 0,01%» |21|. Os autores perguntam: «É normal que, em caso de crise, os bancos privados, que habitualmente se financiam a juros de 1% junto dos bancos centrais, possam beneficiar de taxas de 0,01%, quando alguns estados em plena crise são obrigados a pagar juros 600 ou 800 vezes mais elevados?»

Os principais bancos europeus também tiveram acesso a empréstimos do Fed até ao início de 2011 (o Dexia recebeu 159 mil milhões de dólares de empréstimos |22|, o Barclays recebeu 868 mil milhões de dólares, o Royal Bank of Scotland, 541 mil milhões de dólares, o Deutsche Bank, 354 mil milhões de dólares, o UBS, 287 mil milhões de dólares, o Credit Suisse, 260 mil milhões de dólares, o BNP Paribas, 175 mil milhões de dólares, o Dresdner Bank, 135 mil milhões de dólares, a Société Générale, 124 mil milhões de dólares). O facto de o financiamento dos bancos europeus, via Fed, ter secado (nomeadamente sob pressão do Congresso norte-americano) foi uma das razões que levou também os money market funds norte-americanos a fecharem a torneira dos empréstimos aos bancos europeus, a partir de maio-junho de 2011.

Quais as consequências da entrega de 1 bilião de euros aos bancos pelo BCE?

Em 2012, os bancos, a nadarem em liquidez, compraram, em grandes quantidades, títulos de dívida pública dos seus países. Vejamos o exemplo de Espanha. Os bancos espanhóis pediram emprestado ao BCE 300 mil milhões de euros, a três anos, com um juro de 1%, no âmbito do LTRO |23|. Com uma parte desse montante, aumentaram drasticamente as suas compras de dívida, emitida pelas autoridades espanholas. A evolução é impressionante: em finais de 2006, os bancos espanhóis detinham títulos públicos do seu país no valor de apenas 16 mil milhões de euros. Em 2010, aumentam as compras de títulos públicos espanhóis. Detinham 63 mil milhões. Em 2011, a compra volta a aumentar. Os títulos espanhóis, na posse dos bancos, atingem o montante de 94 mil milhões. E devido ao LTRO, as aquisições explodem literalmente. O montante duplica no prazo de alguns meses, alcançando os 184,5 mil milhões de euros, em julho de 2012 |24|. Convém dizer que se trata de uma operação muito rentável para os bancos. Pedindo emprestado a 1%, compram títulos espanhóis, a 10 anos, com juros que variam entre 5,5 e 7,6%, no segundo semestre de 2012.

De seguida, vejamos o exemplo de Itália. Entre finais de dezembro de 2011 e março de 2012, os bancos italianos pedem emprestado ao BCE 255 mil milhões de euros no âmbito do LTRO |25|. Em finais de 2010, os bancos italianos detinham títulos públicos do seu país no valor de 208,3 mil milhões de euros, mas o montante aumenta para 224,1 mil milhões no final de 2011, poucos dias após o início do LTRO. Logo de seguida, utilizam a enorme quantidade de créditos que recebem do BCE para comprarem títulos italianos. Em setembro de 2012, os bancos detêm títulos italianos no valor de 341,4 mil milhões de euros |26|. Como no caso espanhol, trata-se de uma operação muito rentável: pedem emprestado a 1% e comprando títulos italianos a 10 anos conseguem um juro que varia entre 5 e 6,6% no segundo semestre de 2012.

O mesmo fenómeno aconteceu na maioria dos países da zona euro. Houve relocalização de uma parte dos ativos dos bancos europeus para os países de origem. Em concreto, constata-se em 2012, em cada país, um aumento significativo da fatia de dívida pública na posse de instituições financeiras desse mesmo país. Essa evolução tranquilizou os governos da zona euro, em especial os de Itália e de Espanha, porque descobriram que enfrentavam menos dificuldades vendendo aos bancos os títulos públicos que emitiam. O BCE parecia ter descoberto a solução – emprestando grandes quantias aos bancos privados, salvava-os de uma situação crítica e poupava alguns Estados a lançarem-se em novos planos de resgate bancário. O dinheiro emprestado aos bancos era, em parte, utilizado na compra de títulos de dívida pública de Estados da zona euro, o que fez parar a subida das taxas de juro dos países mais frágeis e até provocou uma diminuição das taxas de juro nalguns países.

É fácil de ver que, do ponto de vista do interesse da população dos países em questão, teria sido necessário adoptar uma abordagem completamente diferente: o BCE deveria emprestar diretamente aos Estados a menos de 1% (como acontece com os bancos privados desde maio de 2012) ou mesmo sem juro. Dever-se-ia também socializar os bancos, sob controlo cidadão.

Em vez disso, o BCE resolveu proteger os bancos privados, abrindo uma linha de crédito ilimitada, a taxas de juro muito baixas (entre 0,75 e 1%). Os bancos privados deram diferentes usos a esse maná de financiamento público. Como acabamos de ver, por um lado compraram títulos soberanos de países que, sob pressão dos próprios bancos, aceitaram pagar juros altos (entre 5 e 7,6%, a 10 anos), como aconteceu em Espanha e Itália. Por outro lado colocaram uma parte do crédito concedido pelo BCE… no BCE…! Entre 300 e 400 mil milhões são depositados pelos bancos, todos os dias, no BCE, a uma taxa de 0,25%, no início de 2012, e a 0%, desde maio de 2012. E por que fazem isso? Porque querem mostrar aos outros banqueiros e aos outros prestadores privados de crédito (money market funds, fundos de pensões, companhias de seguros) que têm cash, em permanência, para fazerem face à explosão de bombas ao retardador que se encontram nas suas contas. Porque se não tivessem esse cash disponível, os potenciais credores afastar-se-iam ou imporiam taxas muito elevadas. Com o mesmo objectivo de tranquilizar os credores privados, compram também títulos soberanos de Estados que não representam risco a curto ou médio prazo: Alemanha, Holanda, França… Os bancos privados são a tal ponto sôfregos que esses Estados podem dar-se ao luxo de lhes vender títulos a dois anos, a uma taxa de 0% ou até mesmo com um rendimento ligeiramente negativo (sem ter em conta a inflação). Os juros pagos pela Alemanha e pelos outros países considerados financeiramente sólidos caíram significativamente, devido à política do BCE e ao agravamento da crise nos países da periferia. Houve uma fuga de capital da periferia europeia para o centro. Os títulos alemães são tão fiáveis, que, no caso de ser necessário cash, podem ser vendidos, de um dia para o outro, sem perdas. Os bancos adquirem-nos, não com o objetivo de ganharem dinheiro, mas para terem permanentemente, no BCE ou sob a forma de títulos com liquidez, quantidades de dinheiro disponíveis a fim de darem uma impressão (muitas vezes falsa) de solvência e de estarem prontos para qualquer eventualidade. Os bancos obtêm lucro emprestando a Espanha e a Itália e isso compensa as perdas que possam ter com os títulos alemães. É muito importante notar que os bancos não aumentaram os seus empréstimos a famílias e empresas, apesar de um dos objetivos oficiais dos empréstimos do BCE ser fazer crescer esses créditos para relançar a economia.

Qual o balanço a fazer da atividade do BCE na perspectiva das elites?

Coloquemo-nos, por um instante, no lugar do 1% mais rico, para avaliarmos a atividade do BCE. O discurso oficial considera que o BCE foi bem sucedido na transição do seu antigo presidente, o francês Jean-Claude Trichet, para o novo presidente, Mario Draghi |27|, ex-governador do Banco de Itália e antigo vice-presidente da Goldman Sachs Europa. O BCE e os dirigentes dos principais países europeus conseguiram negociar uma redução da dívida grega, convencendo os bancos privados a aceitarem uma diminuição de cerca de 50% dos seus créditos e assegurando que o governo grego implementaria um novo plano radical de austeridade, que incluísse privatizações em massa, e que concordaria em abrir mão de boa parte da soberania do país. Desde março de 2012, os membros da Troika instalaram-se nos ministérios de Atenas para acompanharem de perto as contas do Estado. Os novos empréstimos concedidos à Grécia passam agora diretamente por uma conta controlada pelas autoridades europeias, que a podem, portanto, bloquear. Cereja no topo do bolo, os novos títulos de dívida grega deixaram de ser competência dos tribunais gregos. As novas obrigações emitidas ao abrigo desse programa são regidas por lei inglesa e os conflitos entre o governo grego e os credores privados são arbitrados no Luxemburgo |http://fr.wikipedia.org/wiki/Crise_…. Ver também Alain Salles e Benoït (…)” href=”http://cadtm.org/Bancos-contra-povos-os-bastidores#nb5-28″ rel=”footnote”>28|.

Mas não é tudo: sob pressão do BCE e de dirigentes europeus, o governo Pasok, de George Papandreou, muito submisso, mas cada vez mais impopular, foi substituído por um governo não eleito de unidade nacional, Nova Democracia-Pasok, sendo os lugares-chave entregues a ministros provenientes da banca.

Pode-se completar o quadro com mais três boas notícias para o BCE e para os dirigentes europeus: 1. Silvio Bersluconi foi forçado a demitir-se e foi substituído por um governo de técnicos, aparecendo à cabeça Mario Monti, antigo comissário europeu, muito próximo da banca e capaz de impor aos italianos um aprofundamento das políticas neoliberais |29|. 2. Em Espanha, o presidente do governo, Mariano Rajoy, do Partido Popular, há alguns meses no cargo, está também pronto a radicalizar as políticas neoliberais do seu antecessor, o socialista José Luis Zapatero. 3. Os dirigentes europeus |30| chegaram a acordo sobre um pacto de estabilidade, que vai deixar para a posteridade a austeridade fiscal, a perda de soberania nacional por parte dos Estados-membros e uma dose extra de obediência à lógica do capital privado. Finalmente, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) vai, em breve, ser acionado, permitindo ajudar mais os Estados e os bancos |31| nas próximas crises do sector bancário, que vão continuar a ocorrer, e dos Estados-Membros que lutam para se financiarem.

Os diferentes exemplos mostram que os líderes europeus, ao serviço do grande capital, conseguem marginalizar o poder legislativo, ignorando as escolhas das eleitoras e dos eleitores. Além disso, onde fica a democracia, quando as eleitoras e os eleitores que pretendem recusar em massa a austeridade já não têm oportunidade de expressar o seu voto, ou quando veem o seu sentido de voto ser anulado, porque a escolha dos eleitores não coincide com a dos governantes, como em 2005, em França e na Holanda, após o «não» ao Tratado Constitucional Europeu, como na Irlanda e em Portugal após as eleições de 2011 e como em França e na Holanda de novo, após as eleições de 2012. Tudo é feito para que a margem de manobra dos governos nacionais e dos poderes públicos seja limitada por um enquadramento europeu cada vez mais restritivo. Trata-se de uma tendência muito perigosa, a menos, é certo, que os governos, apoiados pela população, decidam desobedecer.

Se nos colocarmos, por um instante, na posição de Mario Draghi, dos principais dirigentes europeus e dos bancos, podemos concluir que, em março-abril de 2012, tinham motivos para sorrir. Tudo decorria como previsto.

Os entraves ao sucesso do BCE e dos governos europeus

As nuvens negras chegam depois. A situação complica-se, a partir de maio de 2012, quando o Bankia, o quarto banco espanhol, dirigido pelo ex-diretor-geral do FMI, Rodrigo de Rato, entra em falência técnica. Segundo as fontes, as necessidades dos bancos espanhóis em termos de recapitalização variam entre 40 e 100 mil milhões de euros e Mariano Rajoy, que não quer recorrer à ajuda da Troika, está numa posição muito difícil. A juntar a isso, o facto de se sucederem vários escândalo bancários a nível internacional. O caso da manipulação da taxa Libor, a taxa interbancária londrina, é o mais sonante e envolve uma dúzia de grandes bancos. Acrescente-se ainda o caso da conduta danosa do HSBC, que envolve lavagem de dinheiro da droga e outros negócios criminosos.

Em França, a maioria dos eleitores afasta Nicolas Sarkozy. François Hollande é eleito em 6 de maio de 2012, mas a mudança não preocupa as instituições financeiras internacionais, que contam com o pragmatismo dos socialistas franceses e dos outros partidos socialistas europeus para darem continuidade à austeridade. Embora convenha ter sempre presente que o povo francês é muito propenso a excessos e susceptível de acreditar que é preciso uma verdadeira mudança.

Na Grécia, a situação é mais tensa para o BCE, pois o Syriza, coligação de esquerda radical que promete revogar as medidas de austeridade, suspender o pagamento da dívida e desafiar as autoridades europeias, está à beira duma vitória eleitoral. Para os defensores da austeridade europeia é preciso impedir a situação a todo custo. Na noite de 17 de junho de 2012 respira-se de alívio no BCE, na sede dos governos europeus e nos conselhos de administração das grandes empresas: o partido de direita, a Nova Democracia, passa à frente da Syriza. Até o novo presidente socialista francês saúda o resultado da eleição. E no dia seguinte os mercados respiram – vão poder manter a via da austeridade, da estabilização da zona euro e do saneamento das contas dos bancos privados.

Tradução Maria da Liberdade, revisão de Rui Viana Pereira

Parte 3 : A maior ofensiva contra os direitos sociais levada a cabo desde a Segunda Guerra Mundial à escala europeia

Não subestimemos a capacidade de os governantes tirarem partido de uma situação de crise

Os grandes meios de comunicação abordam regularmente a questão do possível desmembramento da Zona Euro, o falhanço das políticas de austeridade em matéria de relançamento económico, as tensões entre Berlim e Paris, entre Londres e os membros da Zona Euro, as contradições no seio do BCE (Banco Central Europeu), as enormes dificuldades para alcançar um acordo orçamental para a UE, as crispações de certos governos europeus em relação ao FMI a propósito da dosagem da austeridade. Tudo isto é verdade, mas não podemos esquecer um ponto fundamental: a capacidade de os governantes, que se colocam docilmente ao serviço dos interesses das grandes empresas privadas, gerirem uma situação de crise, para não dizer de caos, com o objectivo de agirem no sentido exigido por essas grandes empresas. Os laços estreitos existentes entre os governos e o grande Capital nem sequer são dissimulados. À cabeça de vários governos, em lugares ministeriáveis importantes e na presidência do BCE, encontramos pessoas vindas directamente da alta finança, a começar pelo banco de investimento Goldman Sachs. Certas figuras políticas de primeiro plano são recompensadas com lugares em grandes bancos ou empresas, depois de terem fielmente cumprido serviço público às ordens do grande Capital. Embora isto não seja novidade, é mais evidente e comum do que nos últimos 50 anos. Estamos em presença de verdadeiros vasos comunicantes.

Considerar que a política dos dirigentes europeus é um falhanço por não se ver o regresso do crescimento económico é, em parte, um erro de critério de análise. Os objectivos perseguidos pelo BCE, pela Comissão Europeia, pelos governos das economias mais fortes da UE, pelas direcções dos bancos e das outras grandes empresas privadas não visam a retoma rápida do crescimento nem a redução das assimetrias da Zona Euro e da UE a fim de se alcançar um conjunto europeu mais coerente e mais capaz de regressar à prosperidade.

Entre os objectivos principais há que destacar dois: 
1.evitar um novo crash financeiro e bancário que poderia revelar-se pior que o de Setembro de 2008 (as duas primeiras partes desta série abordaram este objectivo, que será retomado na quarta parte);
2.2. utilizar várias armas (aumento acentuado do desemprego, reembolso da dívida pública, a procura de equilíbrio orçamental, o chicote da melhoria da competitividade entre estados-membros da UE e entre estes e os seus concorrentes comerciais de outros continentes) para avançar com a maior ofensiva levada a cabo desde a Segunda Guerra Mundial à escala europeia pelo Capital contra o Trabalho. Para o Capital, trata-se de aumentar ainda mais a precarização dos trabalhadores, reduzir radicalmente a sua capacidade de mobilização e resistência, reduzir drasticamente os salários e os diversos benefícios sociais, mantendo, no entanto, as enormes disparidades entre os trabalhadores da UE, a fim de aumentar a competição entre eles. Logo à partida, encontramos disparidades salariais entre trabalhadores do mesmo país: entre mulheres e homens; entre contratados a prazo e sem prazo; entre trabalhadores a tempo parcial e a tempo inteiro. Por iniciativa do patronato e com o apoio de sucessivos governos (nos quais os partidos socialistas europeus tiveram um papel activo), estas disparidades aumentaram no decurso dos últimos 20 anos. Além disso, existem as disparidades entre trabalhadores de diferentes países da UE. As disparidades entre os trabalhadores do centro e os da periferia, dentro da UE, vêm agravar as que se verificam dentro das fronteiras nacionais.

As profundas disparidades entre trabalhadores de diferentes países da UE

Os salários dos trabalhadores dos países mais fortes (Alemanha, França, Países Baixos, Finlândia, Suécia, Áustria, Dinamarca) são o dobro ou o triplo dos salários dos trabalhadores da Grécia, Portugal ou Eslovénia; são 10 vezes mais elevados do que os salários dos trabalhadores da Bulgária; 7 a 9 vezes superiores aos salários romenos, lituanos ou letões |32|. Na América do Sul, embora haja grandes diferenças entre as economias mais fortes (Brasil, Argentina, Venezuela) e as mais fracas (Paraguai, Bolívia, Equador, etc.), a diferença entre salários mínimos legais é da ordem de 1 para 4 – ou seja, uma disparidade nitidamente menos pronunciada do que no seio da UE. Por aqui se vê a força da concorrência entre os trabalhadores europeus.
As grandes empresas dos países europeus mais fortes, no plano económico, tiram grande proveito das disparidades salariais no seio da UE. As empresas alemãs optaram por fazer crescer fortemente a sua produção nos países da UE onde os salários são mais baixos. Estes bens intermédios são de seguida repatriados para a Alemanha, sem pagarem taxas de importação/exportação, onde são montados e seguidamente reexportados principalmente para outros países da Europa. Isto permite diminuir os custos de produção, colocar os trabalhadores alemães em concorrência com os de outros países e aumentar a rentabilidade das empresas. Além disso, os produtos montados na Alemanha e vendidos nos mercados externos aparecem como exportações alemãs, embora em grande parte resultem da montagem de produtos importados. As empresas de outros países fortes da UE procedem da mesma forma, claro está, mas proporcionalmente a economia alemã é a que mais benefícios extrai dos baixos salários e da precarização laboral dentro da Zona Euro (incluindo dentro das fronteiras da Alemanha |33|) e da União Europeia. Em 2007, 83% dos excedentes da Alemanha deviam-se ao seu comércio externo com outros países da UE (145 mil milhões de euros face a outros países da Zona Euro, 79 mil milhões face à Europa fora da Zona Euro e 45 mil milhões em relação ao resto do Mundo) |34|.

O modelo alemão como produto da ofensiva neoliberal

Os patrões alemães, ajudados pelo governo socialista de Gerhard Schröder, em 2003-2005, conseguiram impor sacrifícios aos trabalhadores. O estudo En finir avec la compétitivité, publicado conjuntamente pela ATTAC e pela Fondation Copernic, resume assim as grandes etapas dos atentados aos direitos sociais e económicos: «As leis Hartz (nome do ex-director dos recurso humanos da Volkswagen e conselheiro de Gerhard Schröder) foram escalonadas entre 2003 e 2005. I – Hartz obriga os desempregados a aceitarem o emprego que lhes seja proposto, ainda que o salário seja inferior ao subsídio de desemprego. II – Hartz institui mini-empregos por menos de 400 euros mensais (isentos de contribuições sociais). III – Hartz limita a um ano a prestação de subsídio de desemprego a trabalhadores mais velhos e endurece as condições de atribuição do subsídio. IV – Hartz funde o subsídio de desemprego de longa duração e os subsídios sociais e estabelece para ambos um tecto máximo de 345 euros mensais. Às leis Hartz vêm juntar-se sucessivas alterações das pensões de reforma e do sistema de segurança social para a saúde: reforma por capitalização (reformas Riester), subida das contribuições, subida da idade legal de reforma (objectivo: 67 anos em 2017)». Os autores deste estudo destacam o seguinte: «O conjunto destas reformas produziu um impressionante aumento das desigualdades sociais. Trata-se de um aspecto frequentemente ignorado do “modelo alemão” e por isso vale a pena fornecer alguns números pormenorizados. A Alemanha tornou-se um país muito desigual: um anteprojecto de relatório parlamentar sobre a pobreza e a riqueza |35| acaba de revelar que a metade mais pobre da sociedade possui apenas 1% dos activos, contra 53% que está na posse dos mais ricos. Entre 2003 e 2010, o poder de compra do salário médio baixou 5,6%. Mas esta diminuição foi repartida muito desigualmente: 12% recai sobre mais de 40% dos assalariados menos bem pagos; 4% sobre 40% dos assalariados mais bem pagos. |36| Os dados oficiais mostram que a proporção de baixos salários passou de 18% em 2006 para 21% em 2010 e esta progressão de baixos salários – há que sublinhá-lo – ocorre, sobretudo, na Alemanha Ocidental».

Segundo o mesmo estudo, em 2008 o número de assalariados aumentou 1,2 milhões em relação a 1999, mas esta evolução resulta de um aumento de 1,9 milhões no número de precários e, portanto, corresponde a uma perda de meio milhão de empregos com contrato sem termo, a tempo inteiro. Um quarto dos assalariados encontra-se hoje em situação precária e esta proporção (semelhante à dos EUA) eleva-se a 40% no caso das mulheres. «Os empregos de assalariados precários são maioritariamente (70%) destinados às mulheres |37|. A proporção de desempregados subsidiados caiu de 80% em 1995 para 35% em 2008 e todas as pessoas desempregadas há mais de um ano tiveram de recorrer à assistência social».
Como faz notar Arnaud Lechevalier, esta evolução inscreve-se «num contexto mais geral de erosão da protecção dos assalariados pelas convenções colectivas: a fracção dos assalariados abrangidos baixou de 67% para 62% em 10 anos – em 2008 os contratos colectivos apenas abarcavam 40% das empresas alemãs. Além disso os sindicatos tiveram de abrir várias excepções à aplicação da contratação colectiva sectorial ao nível das empresas» |38|.

O fito dos dirigentes e dos patrões europeus

Para explicarmos a atitude actual dos dirigentes alemães face à crise da Eurozona, podemos pôr a hipótese de que uma das lições que eles extraíram da absorção da Alemanha de Leste, no início dos anos noventa, foi a de que as disparidades muito pronunciadas entre trabalhadores podem ser exploradas para impor uma política fortemente pró-patronal. As privatizações massivas da Alemanha de Leste, a degradação da segurança de emprego dos trabalhadores da ex-RDA, combinadas com o aumento da dívida pública alemã, resultante do financiamento dessa absorção (que serviu de desculpa para impor as políticas de austeridade), permitiram impor recuos importantes aos trabalhadores da Alemanha, fossem eles de leste ou oeste. Os actuais dirigentes alemães estão convencidos de que a crise da Eurozona e os ataques brutais ao povo grego e a outros povos da periferia constituem uma oportunidade para ir mais longe: reproduzir de certa forma, à escala europeia, o que já fizeram na Alemanha. Quanto aos outros dirigentes europeus dos países mais fortes e aos patrões das grandes empresas, não se deram ainda por satisfeitos mas congratulam-se com a criação duma zona económica, comercial e política comum, onde as multinacionais europeias e as economias do norte e da Zona Euro se aproveitam do desmoronamento do sul para reforçarem o lucro das empresas e marcarem pontos em termos de competitividade face aos seus concorrentes norte-americanos e chineses. O seu objectivo, na etapa actual da crise, não é relançar o crescimento económico e reduzir as assimetrias entre economias fortes e fracas da UE. Consideram, sim, que o desmoronamento do sul irá oferecer a oportunidade de realizar privatizações em massa de empresas e de bens públicos, a preços de saldo. A intervenção da Troika e a cumplicidade activa dos governos da periferia ajudam à festa. O grande Capital dos países da periferia é favorável a estas políticas, pois conta obter uma parte do bolo que há muito tempo ambicionava. As privatizações na Grécia e em Portugal permitem antever o que se vai passar em Espanha e na Itália, onde os bens públicos são ainda mais importantes, atendendo à dimensão dessas duas economias.

A vontade de baixar os salários

Regressemos à questão dos salários. Segundo Michel Husson, na Alemanha, o custo salarial unitário real caiu quase 10% entre 2004 e 2008. |39| No resto da Europa, durante o mesmo período, caiu igualmente, mas numa proporção bem menor do que na Alemanha. É a partir da crise de 2008-2009, que afecta duramente a Eurozona, que se verifica uma queda muito nítida dos salários reais dos países mais afectados. Isto mesmo sublinha Patrick Artus: «Verifica-se nos países em dificuldades da Zona Euro (Espanha, Itália, Grécia, Portugal) uma forte queda dos salários reais» |40|. Patrick Artus faz notar que a diminuição dos salários corresponde a uma política deliberada dos dirigentes europeus e acrescenta que tudo aponta para que essa política não permita relançar o investimento nos países mencionados, nem tornar mais competitivas as exportações desses países. Patrick Artus escreveu que os efeitos favoráveis «da queda salarial sobre a competitividade, logo sobre o comércio externo ou sobre o investimento das empresas, não estão presentes». Acrescenta que a queda salarial tem dois efeitos claros: por um lado, aumenta a rentabilidade das empresas (logo, em termos marxistas, o aumento da taxa de lucro através de um aumento da mais-valia absoluta – ver caixa «ABC da mais-valia absoluta, da mais-valia relativa e dos salários»); por outro lado, provoca a queda da procura interna, o que reforça a contracção da economia |41|. Um estudo realizado por Natixis vem confirmar que o objectivo dos dirigentes europeus nem é relançar a actividade económica, nem melhorar a posição económica dos países da periferia em relação ao centro. A queda dos salários visa reduzir a capacidade de resistência dos trabalhadores dos países afectados, aumentar a taxa de lucro do Capital e levar mais longe o desmantelamento do que resta do welfare state, construído ao longo dos 35 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial (período a que se seguiu a reviravolta neoliberal de finais dos anos setenta, início dos anos oitenta).

No «Relatório Mundial sobre os Salários 2012-2013», publicado pela Organização Internacional do Trabalho, em Dezembro de 2012, os autores revelam que nos países desenvolvidos, entre 2008 e 2012, «os salários registaram uma dupla queda» (ou seja, em 2008 e em 2011) |42|. É a única região do Mundo, além do Médio Oriente, onde os salários baixaram desde 2008. Na China, no resto da Ásia, na América Latina, os salários aumentaram. Na Europa de Leste tiveram uma certa recuperação após o afundamento dos anos noventa. Este relatório permite confirmar que o epicentro da ofensiva do Capital contra o Trabalho se deslocou para os países mais desenvolvidos.

ABC da mais-valia absoluta, da mais-valia relativa e dos salários |43|

No início da jorna, quando o operário (ou operária) começa a trabalhar na fábrica, incorpora um valor nas matérias-primas (ou nos bens intermédios que processa). Ao fim de um certo número de horas, já reproduziu um valor exactamente equivalente ao seu salário diário ou semanal. Se parasse de trabalhar nesse preciso instante, o capitalista não obteria um tostão de mais-valia. Mas nesse caso o capitalista não teria qualquer interesse em comprar a sua força de trabalho. Tal como o usurário ou o mercador da Idade Média, ele «compra para vender». Compra força de trabalho para, graças a ela, obter um produto mais valioso do que o montante que pagou para a comprar. Este «suplemento» é precisamente a mais-valia, o seu lucro. É portanto evidente que, se o operário ou a operária produzir o equivalente ao seu salário em 4 horas de trabalho, trabalhará não 4 mas 6, 7, 8 ou 9 horas. Durante essas 2, 3, 4 ou 5 horas «suplementares», estará a produzir mais-valia para o capitalista, nada recebendo em troca. A origem da mais-valia é portanto um trabalho extra, gratuito, apropriado pelo capitalista. «Mas isso é um roubo!», dirão vocês. A resposta tem de ser: «sim e não». Sim, do ponto de vista do operário ou da operária; não, do ponto de vista capitalista e das leis de mercado. De facto o capitalista não comprou no mercado «o valor produzido ou a produzir pelo operário ou pela operária». Não comprou o trabalho, ou seja, o trabalho que o operário ou operária vai efectuar (se o fizesse, estaria a cometer um roubo puro e simples; estaria a pagar 25€ por uma coisa que vale 50€). Ele compra a força de trabalho do operário ou da operária. Essa força de trabalho tem um valor próprio, como todas as mercadorias. O valor da força de trabalho é determinado pela quantidade de trabalho necessária para a reproduzir – quer isto dizer, para a subsistência (no sentido lato do termo) dos operários e respectiva família. A mais-valia é originada no facto de haver um excedente entre o valor produzido pelo operário/operária e o valor das mercadorias necessárias para assegurar a sua subsistência.

O valor da força de trabalho tem uma característica particular em relação ao das outras mercadorias: inclui, além de um factor estritamente mensurável, um factor variável. O factor estável é o valor das mercadorias necessárias à reconstituição da força de trabalho do ponto de vista fisiológico (de modo a permitir ao operário/operária recuperar as calorias, as vitaminas, a capacidade de gerar uma certa quantidade de energia muscular e nervosa, sem a qual seria incapaz de trabalhar ao ritmo normal previsto pela organização capitalista do trabalho num dado momento). O factor variável é o valor das mercadorias, numa dada época e num dado país, que não faz parte do mínimo vital fisiológico. Marx chama a esta parte da força de trabalho a sua fracção histórico-moral. Quer isto dizer que ela não é fortuita. Resulta duma evolução histórica e de uma dada relação de forças entre Capital e Trabalho. Neste preciso ponto de análise económica e marxista, a luta de classes, o seu passado e o seu presente, torna-se um factor co-determinante da economia capitalista.

O salário é o preço de mercado da força de trabalho. Como todos os preços de mercado, ele oscila à volta do valor da mercadoria em questão. As flutuações salariais são determinadas nomeadamente pelas flutuações do exército de reserva industrial, isto é, o desemprego.

Para obter o máximo de lucro e desenvolver o mais possível a acumulação de capital, os capitalistas reduzem ao máximo a parte do valor criado (produzido pela força de trabalho) que é entregue aos trabalhadores/trabalhadoras sob a forma de salário. Os dois meios principais pelos quais os capitalistas procuram aumentar a sua parte, ou seja a mais-valia, são: O prolongamento da jornada de trabalho, a redução dos salários reais e a descida do mínimo vital. É a isto que Marx chama o aumento da mais-valia absoluta.
O aumento da intensidade e da produtividade do trabalho sem aumento proporcional do salário. É o aumento da mais-valia relativa.

Uma perspectiva sobre a ofensiva do Capital contra o Trabalho

A situação dos assalariados na Grécia, em Portugal, na Irlanda e em Espanha, hoje em dia, foi imposta aos trabalhadores dos países em desenvolvimento em benefício da crise da dívida nos anos 1980-1990. Durante os anos oitenta, a ofensiva visou igualmente os trabalhadores na América do Norte a partir da presidência de Ronald Reagan, na Grã-Bretanha sob o pulso de Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, e os seus émulos nos países do Velho Continente. Os trabalhadores do ex-Bloco de Leste foram igualmente submetidos, durante os anos noventa, a políticas brutais impostas pelos seus governos e pelo FMI. Segundo o «Relatório Mundial sobre Salários 2012-2013», publicado pela OIT (mencionado mais acima): «Na Rússia, por exemplo, o valor real dos salários caiu nos anos noventa para menos de 40% do valor que tinha e foi preciso mais uma década para regressar ao valor inicial.» |44|

A seguir, embora de forma menos brutal do que a sofrida pelos povos do Terceiro Mundo (dos países mais pobres até às economias ditas emergentes), a ofensiva incidiu sobre os trabalhadores da Alemanha a partir de 2003-2005. Os efeitos nefastos para uma parte da população alemã fazem-se sentir ainda hoje, apesar de o sucesso das exportações alemãs |45| ter reduzido o número de desempregados e de uma parte da classe trabalhadora não sentir directamente as consequências. Por conseguinte, a ofensiva que se agravou desde 2007-2008 começou a nível mundial no início dos anos oitenta. |46| A OIT centra a sua análise num período mais curto (1999-2011) e os dados são claros: «Entre 1999 e 2011, o aumento médio da produtividade do trabalho nas economias desenvolvidas foi mais de duas vezes superior ao aumento médio dos salários. Nos EUA, a produtividade horária real do trabalho aumentou 85% desde 1980, enquanto a remuneração horária real apenas aumentou 35%. Na Alemanha, a produtividade do trabalho aumentou quase um quarto nas duas últimas décadas, enquanto os salários reais se mantiveram inalterados» |47|. Isto corresponde ao que Karl Marx designou aumento da mais-valia relativa (ver caixa).

E mais adiante: «A tendência mundial implicou uma mudança no rendimento nacional: a parte dos Trabalhadores diminuiu, enquanto a parte do Capital no rendimento aumentou na maioria dos países. Mesmo na China, país onde os salários aumentaram aproximadamente para o triplo, durante a última década, o PIB aumentou mais rapidamente do que a massa salarial total – portanto a quota do Trabalho diminuiu» |48|. Esta pronunciada tendência mundial é a manifestação do aumento da mais-valia extraída ao Trabalho pelo Capital. É importante notar que durante boa parte do século XIX a forma principal de aumento da mais-valia passou pelo aumento da mais-valia absoluta (redução salarial, aumento das horas de trabalho). Progressivamente, nas economias mais fortes, no decurso da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX (excepto durante o nazismo, o fascismo e outros regimes ditatoriais que impuseram baixas salariais), essa via foi substituída ou ultrapassada pelo aumento da mais-valia relativa (aumento da produtividade do trabalho sem que os salários sigam a mesma proporção). Após algumas décadas de ofensiva neoliberal, o crescimento da mais-valia absoluta volta a ser uma forma importante de extracção da mais-valia e vem somar-se à mais-valia relativa. Enquanto durante décadas os patrões aumentaram essencialmente a mais-valia relativa, principalmente graças à subida da produtividade do trabalho, a partir de 2009-2010 conseguem aumentar a mais-valia absoluta: através da redução dos salários reais e, em certos casos, aumentando o tempo de trabalho. Utilizam a crise para combinar o aumento da mais-valia relativa com o aumento da mais-valia absoluta. Isto dá-nos uma ideia da amplitude da ofensiva em curso.

Cada vez mais trabalhadores na mira

Num documento da Comissão Europeia intitulado «O Segundo Programa de Ajustamento para a Grécia», com data de 2012 |49|, põe-se claramente em destaque que é preciso continuar na via das reduções salariais. O quadro 17 da página 41 mostra que o salário mínimo legal na Grécia é o quíntuplo do salário mínimo médio na Roménia e na Bulgária (países vizinhos da Grécia), o triplo da Hungria e das repúblicas bálticas, mais do dobro do salário mínimo na Polónia e na República Checa; é superior ao salário mínimo em Espanha e em Portugal. O objectivo é aproximar a Grécia dos países onde os salários são mais «competitivos», ou seja, mais baixos. Evidentemente, se os salários continuarem em queda radical na Grécia, como pretendem a Troika e o patronato, será necessário que os salários em Espanha, Portugal, Irlanda e também nos países mais fortes sigam a mesma tendência, de forma acelerada.

Quem comanda os destinos da Europa segue uma lógica graças à qual os patrões europeus conseguem aumentar a quantidade de mais-valia extraída do trabalho dos assalariados europeus e procuram marcar pontos na batalha comercial contra os concorrentes asiáticos ou norte-americanos.

Estes dirigentes estão prontos a dar a machadada final nos sindicatos europeus, reduzindo fortemente a margem de negociação de que estes dispuseram durante décadas.

O Capital marca pontos suplementares contra o Trabalho

Em diversos países da UE, no decurso da sua ofensiva contra as conquistas sociais, os governantes e a Comissão Europeia conseguiram reduzir radicalmente o âmbito dos acordos colectivos sectoriais. É o caso dos países do ex-Bloco de Leste, bem como da Grécia, Portugal, Espanha, Itália, Irlanda, etc. Em muitos países conseguiram também baixar o salário mínimo legal e o montante das pensões de reforma. Conseguiram reduzir drasticamente a protecção contra os despedimentos [e respectiva indemnização] e aumentar a idade de reforma.

O agravamento da crise nos países da periferia da Zona Euro

Ao longo de 2012, a crise agravou-se na Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha, em consequência das políticas brutais de austeridade aplicadas por governos cúmplices das exigências da Troika. Na Grécia, a queda acumulada do PIB desde o início da crise chega a 20%. O poder de compra de uma grande parte da população caiu 30 a 50%. O desemprego e a pobreza exorbitaram. Enquanto em Março/2012 todos os grandes meios de comunicação social reproduziam o discurso oficial que afirmava que a dívida tinha sido reduzida para metade |50|, segundo as estimativas oficiais tornadas públicas em fins de Outubro/2012, a dívida pública, que representava 162% do PIB na véspera da redução da dívida (Março/2012), irá chegar aos 189% em 2013 e aos 192% em 2014. |51| Esta informação não consta dos títulos da imprensa de massas. Em Portugal as medidas de austeridade atingem uma tal violência e a degradação económica é tão grave, que um milhão de portugueses se manifestou espontaneamente a 15/Setembro/2012 – um número de manifestantes que apenas tinha sido alcançado no 1º de Maio de 1974 para festejar a Revolução dos Cravos. Na Irlanda, de quem os meios de comunicação falam bastante menos, o desemprego atingiu proporções gigantescas, levando 182.900 jovens, entre os 15 e os 29 anos, a abandonarem o país desde a crise de 2008 |52|. Um terço dos jovens que tinha emprego antes da crise foi parar ao desemprego. O resgate dos bancos representa actualmente mais de 40% do PIB (cerca de 70 mil milhões de euros, sendo o PIB 156 mil milhões em 2011) |53|. O recuo da actividade económica chegou aos 20% desde 2008. O governo de Dublin reafirmou que irá suprimir 37.500 postos de trabalho no sector publico até 2015. Em Espanha, a taxa de desemprego dos jovens chega aos 50%. Desde o início da crise, 350.000 famílias foram expulsas das suas casas por falta de pagamento de dívidas hipotecárias |54|. Num ano, o número de famílias em que todos os membros estão no desemprego aumentou de 300.000 para um total de 1,7 milhões, ou seja, o equivalente a 10% de todas as famílias espanholas |55|. A situação degrada-se continuamente nos países do antigo Bloco de Leste membros da UE, a começar pelos países que aderiram à Eurozona.

Em suma, por toda a parte no mundo, o Capital lançou uma ofensiva contra o Trabalho. É na Europa que, desde 2008, a ofensiva assume uma forma mais sistemática, a começar pelos países da periferia. Embora os bancos (e o capitalismo enquanto sistema) sejam responsáveis pela crise, são sistematicamente protegidos. Por toda a parte, o reembolso da dívida pública serve de pretexto para os governos justificarem uma política de ataque aos direitos económicos e sociais da esmagadora maioria da população. Se os movimentos sociais, incluindo os sindicatos, quiserem enfrentar vitoriosamente esta ofensiva devastadora, têm de atacar a questão da dívida pública, a fim de retirarem ao poder o seu argumento principal. A anulação da parte ilegítima da dívida e a expropriação dos bancos, para os integrar num serviço público de poupança e crédito, são medidas essenciais num programa alternativo à gestão capitalista da crise.

Tradução Rui Viana Pereira, revisão Maria da Liberdade

Luis Nassif

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