PEC Emergencial: para quem?, por Márcio Gimene e Andre de Melo Modenesi

Esses direitos fundamentais foram uma das maiores conquistas do processo de redemocratização brasileiro. Sua inclusão na chamada Constituição Cidadã representou enorme avanço civilizatório.

PEC Emergencial: para quem?

por Márcio Gimene[1]

e Andre de Melo Modenesi[2]

O substitutivo à Proposta de Emenda à Constituição nº 186/2019 (PEC Emergencial), apresentado nesta terça (23/02) pelo Senador Marcio Bittar, se fundamenta na crença de que a redução dos gastos públicos é o mais urgente e importante dos nossos desafios. No entanto, caso o substitutivo venha a ser aprovado, os direitos sociais fundamentais inscritos no art. 6º da Constituição Federal (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados) ficarão condicionados a um conceito que, além de abstrato, é absolutamente fictício e descabido: o “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.

Antes de tudo, duas ressalvas são necessárias. Primeiro, esses direitos fundamentais foram uma das maiores conquistas do processo de redemocratização brasileiro. Sua inclusão na chamada Constituição Cidadã representou enorme avanço civilizatório.

 Segundo, é preciso compreender o conceito macroeconômico de gasto público: um dos componentes da demanda agregada, realizado pelo setor público. Essa observação é importante pois gasto tem sido usado como sinônimo de desperdício. O gasto público, de forma alguma, tem essa conotação. Pelo contrário, o custeio dos direitos fundamentais não implica, necessariamente, em uma perda. Pelo contrário, eles geram bem-estar à população e, portanto, constituem um ganho. O que seria de nós se não fosse a Fiocruz e o Butantan? Isso também vale para o investimento realizado pelo setor público, por exemplo, na construção de escolas, hospitais etc.

Mas o que significa de fato esse “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”? Como mensurá-lo? Alguma nação se desenvolveu incluindo esse suposto direito em sua Constituição? Enquanto os defensores da PEC nº 186 não apresentarem respostas minimamente consistentes essas perguntas, não faz sentido o Senado Federal aprovar, a toque de caixa, uma alteração constitucional tão fundamental e que, fatalmente, resultará em graves perdas na prestação de serviços públicos.

O mesmo pode ser dito em relação a diversos outros dispositivos que constam no substitutivo. Para citarmos apenas dois:

  1. Revogação dos pisos de saúde e de educação. Segundo o substitutivo, não será mantida nem mesmo a atualização inflacionária dos valores mínimos federais aplicados na saúde e na educação, prevista pela Emenda Constitucional nº 95/2016 (teto de gastos). Como é politicamente indefensável a revogação completa desses pisos, é provável que isso não passe de um artifício para negociar, como um suposto “mal menor”, a aprovação da proposta original da PEC nº 188/2019 (“Pacto Federativo”): a unificação dos pisos da saúde e da educação; o que, na prática, resultará na redução em pelo menos um desses gastos públicos (quiçá em ambos).
  • Redução dos salários reais de servidores públicos. As PEC nº 186 e nº 188 previam a redução nominal de até 25% nos salários de servidores públicos, com redução proporcional nas jornadas de trabalho e, consequentemente, na prestação de serviços públicos. De acordo com o substitutivo da PEC nº 186, a redução do poder aquisito dos servidores públicos ficará por conta da inflação. No caso dos servidores federais, que desde 2010 vêm recebendo reajustes abaixo da inflação, a perda real de salários sofrida apenas entre janeiro de 2019 e dezembro de 2023 é de 21% (medida pelo IPCA). Como a Lei Complementar nº 173/2020 proibiu a aprovação de reajustes salariais de servidores que resultem em pagamento no mandato seguinte, apenas em 2024 será possível repor parte dessas perdas inflacionárias. Para amenizar o problema, o Executivo federal precisará enviar os projetos de lei de diretrizes orçamentárias e de lei orçamentária da União para 2022 prevendo algum reajuste salarial. Mas não há até o momento nenhum indicativo de que isso irá ocorrer. Isso a despeito do total de gastos federais com pessoal (ativo e aposentado, civil e militar) ter atingido 4,3% do PIB em 2020, abaixo dos 4,5% do PIB verificados 20 anos atrás! Nos estados e municípios a situação não é muito diferente. Ao invés de se buscar a ampliação da arrecadação tributária sobre o patrimônio dos ricos e super ricos – a exemplo dos países desenvolvidos –, os esforços fiscais recentes têm se concentrado na redução de gastos públicos, como o congelamento ou a reposição dos salários dos servidores abaixo da inflação. Se for aprovado o substitutivo da PEC nº 186 apresentado nesta terça, a situação será ainda pior: a União, os estados e os municípios ficarão submetidos a gatilhos concebidos para congelar ou mesmo reduzir gastos públicos hoje obrigatórios, dentre eles os salários dos servidores.

Sejamos claros: o governo brasileiro, como qualquer outro que se financie via emissão de dívida denominada na moeda nacional, por definição, não pode quebrar. É preciso chamar atenção para o fato de que o setor público é um agente macroeconômico singular: ele dá curso forçado e emite sua própria moeda. Assim, a lógica da gestão orçamentária do governo Federal é absolutamente distinta da lógica de qualquer empresa, ou família. Estes últimos podem quebrar; o governo nunca quebra (salvo se estiver endividado em moeda externa, como nos anos 1980)! Em suma, é completamente falacioso comparar o orçamento público com o orçamento familiar ou doméstico.

Ademais, os três principais grupos de despesas da União estão sob controle. As despesas com pessoal estão estáveis em relação ao PIB há duas décadas. O gasto com juros e encargos da dívida pública está contido pela queda histórica da Selic. Os gastos previdenciários estão contidos pela sucessão de reformas previdenciárias dos últimos anos, cujo efeito pleno ainda está por se materializar.

Assim, o que impede a expansão dos serviços públicos não é a suposta “falta de dinheiro”; mas sim, a sobreposição de restrições fiscais autoimpostas pela legislação vigente (regra de ouro, teto de gastos e meta de resultado primário). Regras essas que ficarão ainda mais restritivas caso o substitutivo da PEC nº 186 seja aprovado.

Pode-se argumentar que apesar de não ser necessária para a União, a “PEC Emergencial” seja do interesse de governadores e de prefeitos que se encontrem em dificuldade para ajustar suas contas. De fato, por não terem a prerrogativa de emitir moeda, os entes subnacionais dispõem de margens mais estreitas para gerir seus orçamentos. Isso exige esforços permanentes de melhorias de gestão, mas também disposição para ampliar a arrecadação tributária, contrariando interesses dos segmentos sociais mais abastados.

E aí chegamos aos reais beneficiários da aprovação do substitutivo da PEC nº 186: aquela parcela da sociedade que lamenta não dispormos de serviços públicos de primeiro mundo, mas que se recusa a apoiar reformas estruturais (tributária, administrativa, agrária, urbana etc.) que contribuam efetivamente para a promoção de um país socialmente inclusivo, economicamente funcional e ambientalmente sustentável. Em uma permanente inversão de valores, apresentam-se como defensores de “reformas” cujo resultado óbvio será a ampliação da pobreza, do desemprego e da concentração de riqueza e poder, ao mesmo tempo em que interditam o debate e a cooperação necessária para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, como determina a cada vez mais desfigurada Constituição Federal. 

Em suma, a obsessão pela redução permanente dos gastos públicos só irá reduzir ainda mais a demanda agregada, ampliando o desemprego e a pobreza, além de diminuir a arrecadação tributária em um círculo vicioso que tem no corte de gastos um remédio tão eficaz para a dinamização econômica quanto a cloroquina para o Covid-19.


[1] Presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor)

[2] Professor associado ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq.

Redação

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