Autoritarismo, violência e ódio no Brasil atual: reflexões a partir de uma obra de Leandro Karnal

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Reprodução da obra de Antonio Berni

Por Walace Ferreira

Autoritarismo, violência e ódio no Brasil atual: reflexões a partir de uma obra de Leandro Karnal

O momento político brasileiro exige uma reflexão que está ligada às próprias características sociais que constituem a nossa história. No livro “Todos contra Todos”, de 2017, o historiador Leandro Karnal se vale de uma linguagem acessível a todos que pretendem observar questões históricas e atuais da sociedade brasileira, nos oferecendo uma leitura embasada em referências da Sociologia, da História do Brasil e da Psicanálise. “Faz muito tempo que penso sobre o ódio, especialmente o que existe no Brasil”, diz o autor no primeiro parágrafo do Prólogo. Nada mais atual diante do acirramento de ataques ocorridos antes das eleições recentes, e que infelizmente continuam acontecendo, principalmente nas redes sociais, mas não só nela.

Karnal apresenta diversos exemplos da historiografia brasileira nos quais a violência foi excluída do discurso oficial, identificando a influência do pensamento maniqueísta do “Nós X Eles” em situações históricas nas quais a violência foi proeminente, como no caso da Intentona Comunista, em 1935, e no golpe militar de 1964. O “Nós” seria constituído pela população brasileira, avessa à violência e arraigada aos valores cristãos, ao passo que o “Eles” seria representado pela invasão de doutrinas estrangeiras ditas maléficas à saúde do país.

Numa inspiração claramente psicanalítica, Karnal aponta que a nossa dificuldade em lidar com o ódio nos leva muitas vezes a uma transferência desse sentimento aos outros. O ódio cria uma zona de conforto ao se caracterizar como um autoelogio. Ao vociferar contra o outro estou reafirmando não ser igual àquela pessoa, que sou superior e melhor do que ela. Porém, o ódio, quando manipulado por pessoas de poder, serve como elemento de união e controle de grandes populações. Nesse sentido, o ódio se configura como elemento definidor do nosso narciso infantil, de modo que a aproximação da realidade se daria por meio de uma adaptação ao próprio ego. É como uma necessidade de que o mundo concorde conosco. Se isso não ocorre ele está errado. Tendemos a seguir quem concorda conosco, a ouvir apenas as opiniões que nos agradam. Selecionamos os fatos da realidade por meio de uma satisfação psicológica e não através da aproximação crítica. As redes sociais demonstram claramente esse argumento, em que posicionamentos passionais têm deixado de lado aspectos fundamentais para o amadurecimento da democracia brasileira, cujo diálogo e visão crítica são fundamentais.

A violência, tão negada, é marca do nosso cotidiano. O pacifismo nacional, salienta o autor, representa a projeção de um desejo. Assim como o ódio, a violência só possui sentido nos outros e nunca em nós mesmos. É como o debate acerca da flexibilização do porte e da posse de armas, no qual os defensores atribuem aos outros a violência legitimadora de um pretenso direito à legítima defesa.

Diante do mito do paraíso pacifista, Karnal traça um panorama das origens da sociedade brasileira e como, desde o princípio, forjamos nossa identidade nacional com sangue, embora tenhamos pintado um quadro idílico de que somos pacíficos e comedidos. Não tivemos guerras civis ou cometemos genocídios. Não somos violentos, preconceituosos ou racistas. A realidade histórica, porém, não sustenta nenhuma dessas afirmações. Entre 1824 e 1845 tivemos várias guerras civis (Abrilada; Cabanagem; Sabinada; Balaiada; Revoltas Liberais; e Revolução Farroupilha). Fomos o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão (Lei Áurea, 1888). Violência e tortura marcaram tanto o Brasil Colônia (decapitação de Zumbi dos Palmares em 1695; esquartejamento de Tiradentes em 1789) quanto o Brasil independente (massacre de Canudos em 1897; a degola como prática comum durante a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul entre 1893 e 1895). Técnicas de tortura foram aplicadas a presos políticos durante os regimes ditatoriais brasileiros, Estado Novo de 1937 a 1945 e Regime Militar de 1964 a 1985.

A violência se difunde pela cultura. O nosso racismo é exemplo claro desse aspecto. O modelo de racismo existente no Brasil é apontado por Karnal como menos explícito do que em outros países, aos moldes do que foi abordado por Oracy Nogueira ao comparar o Brasil com os Estados Unidos, características que dificultam a reflexão sobre a nossa questão racial e abre espaço para práticas controversas, como a “carnavalização do preconceito”, que tenta, através de paródias, transformar a discriminação em comédia, numa evidente tentativa de “colocar panos quentes” numa ferida histórica que se perpetua com a negação do problema. O “mito da democracia racial” esboçado por Gilberto Freyre ainda é uma marca constante do imaginário social brasileiro e recorrentemente usado pelos críticos das cotas raciais.

Após desenhar o nosso quadro social pretérito e atual, Karnal defende que os conflitos seriam mais facilmente tratáveis se admitíssemos a nossa realidade. Somos preconceituosos, intolerantes, violentos no trânsito, na política e até no convívio, pois o número de mortes e atos violentos, tanto pelo instinto de preservação ou pelas divergências quanto pelo descaso social ou pela passionalidade, supera o de muitas guerras. Enquanto a violência não for encarada como algo real em seus diversos aspectos, viveremos o disfarce e a representação do “paraíso tropical” e do “homem cordial”, mesmo à beira de uma guerra civil que não pode ser detectada graças à rejeição da nossa realidade histórica.

Conhecer a própria história é o caminho para qualquer intervenção exitosa, principalmente quando falamos de cultura. Romper a cadeia do ódio e da violência são fundamentais para o avanço democrático da sociedade brasileira, que infelizmente tem nutrido práticas de legitimação do autoritarismo, de choque de opiniões e de desavenças e que tem encontrado na política seu sustentáculo mais preocupante. 

 

Walace Ferreira

Professor de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

Redação

6 Comentários

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  1. Nassa, eu não estou

    Nassa, eu não estou transgredindo as regras do blog.Mas como não há Fora de Pauta, quero trancrever uma coluna que gostei muito.—-e acredito que todo cinéfilo também gosta.

            ”Entre sem bater” é fenomenal.

                

    Ninguém é perfeito (a não ser Billy Wilder)

                             

    Marcos Lisboa

                “Eu gostaria de acreditar em Deus para Lhe agradecer, mas eu só acredito em Billy Wilder. Então, muito obrigado, senhor Wilder.”

    Foi assim que Fernando Trueba discursou ao receber o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1994. No dia seguinte, ele recebeu um telefonema. “Fernando, aqui fala Deus”, disse Billy Wilder.

    Quase 18 anos depois, Michel Hazanavicius prestou sua homenagem ao receber o Oscar de melhor filme por “O Artista”. “Quero agradecer a três pessoas. Agradeço a Billy Wilder, agradeço a Billy Wilder e agradeço a Billy Wilder.”

    Todos têm direito à sua versão da Santíssima Trindade.

    Billy Wilder nasceu na Áustria em 1906. Fugiu do Nazismo e escapou do Holocausto. O mesmo não ocorreu com muitos de seus parentes judeus, incluindo sua mãe.

    Em 1934, ele foi ao consulado americano no México na tentativa de imigrar. Estava preocupado. Fugira às pressas de Berlim para evitar ser preso e carregara consigo poucos documentos. O cônsul perguntou-lhe o que fazia e respondeu que era roteirista. Obteve o visto com a recomendação: “Escreva alguns bons filmes”.

    Eram tempos em que a Alemanha perseguia minorias e os EUA acolhiam imigrantes.

                  ​​Billy Wilder não decepcionou. O imigrante que aprendeu inglês já adulto se tornou o talvez melhor roteirista da história do cinema americano. Ele foi um dos autores do clássico “Ninotchka”, dirigido por Ernst Lubitsch, a quem admirava pela elegância inesperada com que contava suas histórias.

    Poucos anos depois, passou a dirigir seus roteiros e deixou-nos filmes memoráveis pela carpintaria surpreendente e diálogos inesquecíveis. Em seu escritório, havia uma frase emoldurada: “Como Lubitsch faria?”.

    Foi o responsável pelo melhor noir, “Pacto de Sangue”, assim como pela sacrossanta comédia, “Quanto Mais Quente Melhor”. “Stalag 17” é uma vingança bem-humorada ao pesadelo das prisões na Segunda Guerra. Deixou-nos ainda “Testemunha de Acusação”, “A Montanha dos Sete Abutres” e “Se meu Apartamento Falasse”. Seu Dom Quixote é o trágico “Sunset Boulevard”.

    Billy Wilder transformou o luto decorrente da opressão em entretenimento para os vivos, adaptando para o cinema o prazer do melhor teatro. A sua generosidade encontrou virtudes nos pecadores cotidianos, permitindo-nos rir de nós mesmos. Ele retribuiu em arte o que recebera em violência.

    Rever seus filmes lava a alma nesta época de ânimos exaltados, em que sobram inquisidores à procura de demônios e faltam santos que concedam a graça aos diferentes.

    Pena que Billy Wilder não tenha conhecido o Barão de Itararé. Depois de ser sequestrado e tomar uma surra em 1934, escreveu na porta da Redação do seu jornal: “Entre sem bater”.

  2. Autoritarismo, violência e ódio no Brasil atual: reflexões….
    No texto Autoritarismo, violência e ódio no Brasil atual: reflexões a partir de uma obra de Leandro Karnal, falta referência à relação com o elemento indígena, talvez porque talvez não tenha sido abordada pelo autor Leandro Karnal. Mas basta ler Duas Viagens ao Brasil, do Hans Staden, escrito logo após a descoberta em 1500,para se ter o registro da violência: praias inteiras de corpo de índios mortos, configurando um verdadeiro genocídio. Não pode ter sido sem ódio.

  3. Elemento indígena – Autoritarismo, violência e ódio no Brasil…
    No artigo feito a partir do livro de Leandro Karnal, falta referência à violência contra o elemento indígena. Talvez porque o próprio Karnal não a tenha registrado em seu livro.
    Mas não se pode esquecer do verdadeiro genocídio que ocorreu aqui. Basta ler o livro do alemão Hans Staden, que esteve aqui uns 20 anos após o descobrimento do Brasil, para se conhecer o relato de praias inteiras repletas de corpos mortos em suas areias… Muito triste!

  4. No post, a elite mais cruel

    No post, a elite mais cruel do mundo ficou de fora. Os milhões de miseráveis e milhares de vítimas de assassinatos devem sentir muito ódio.

  5. Estado mãos limpas
    Karnal fala do racismo nos EUA, mas, inocentemente, não declina o modelo de estado brutal do apartheid sul africano. Culpar o cidadão, enquanto sociedade, deixando o estado com as mãos limpas é a marca dos pensadores de esquerda. Dou apenas um exemplo, este usado por Karnal. O trânsito violento decorre de acidentes com feridos e mortos. A maioria ocorre nas estradas de mão dupla, cheias de buracos, de engenharia reprovável, e mal sinalizadas. Mas…O estado é inocente.

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