Carta para o meu amigo Rubem Alves, por José Pacheco

Por José Pacheco* – Colunista colaborador do Portal Aprendiz

Querido amigo,

Eu já havia publicado as vinte e cinco cartas para educadores ausentes, quando Tu, o Manoel e o Ariano também partiram para o lugar etéreo onde, um dia, todos nos reencontraremos.  Cumpriu-se o meu desejo de não te incluir numa lista de defuntos apenas por escassos meses.

Falando de tempo, essa humana invenção de que te libertaste, reparo que já decorreram quinze anos sobre um remoto dia de Abril, em que, pela primeira vez, partilhaste o cotidiano da Ponte e me convidaste a conhecer educadores do teu (e, agora, nosso) país. Desde então, a minha peregrinação pelo Brasil das escolas não cessa, como não cessa o meu aprender com educadores para os quais és inspiração e que conservam na memória e nas práticas as tuas sábias palavras: Educar não é ensinar matemática, química, português, que essas coisas podem ser aprendidas nos livros e nos computadores. A primeira tarefa da educação é ensinar a ver. A coisa mais deletéria na relação do professor com o aluno é dar a resposta (…) Se os reitores das universidades fizessem o vestibular, seriam reprovados… Poéticas e cruéis sentenças escreveste, meu amigo. A tua vida foi coerente com o que escreveste.

A tua obra – extensa, diversificada, pautada numa complexa simplicidade – suscita múltiplas leituras. A tua visão sobre o Brasil das escolas instigou-me a penetrar mais fundo em contraditórias realidades, observadas por um desarmado olhar europeu, que se surpreendia perante o ostracismo a que alguns pedagogos brasileiros são remetidos. Deste-me a conhecer facetas inesperadas de um Freire, sobre cuja integração numa ortodoxa universidade redigiste um “não-parecer”. Como ele, sofreste o exílio, no período negro dos governos militares, que marcou o desaparecimento das escolas vocacionais e de outros projetos, que poderiam alçar a educação brasileira ao nível da excelência.

Sei que te fará feliz o saber que uma nova geração de educadores emerge, operando rupturas e não prescindindo do património que tu e outros pedagogos nos legaram. Valeu a pena teres vivido “na contramão da História”, aprendendo a surfar o dilúvio de lixo educacional em que a sociedade e a escola se afundaram. Valeu a pena viver a sina de “romântico-conspirador”, pois confirmaste a existência de seres (que o Brecht diria serem indispensáveis), numa carta, de que ouso transcrever um pequeno excerto: “O bom é sentir que a “pia conspiratio” é muito maior do que se imagina. Há milhares de irmãos e irmãs desconhecidos sonhando o mesmo sonho”.

Na tua derradeira entrevista, reiteraste a afirmação de que a educação no Brasil deveria passar por profundas mudanças. Pois fica sabendo, querido amigo, que o gigante parece ter despertado. Quem nos governa proclamou que seremos uma “pátria educadora”. Talvez os governantes tenham, finalmente, reconhecido o dito de Mandela: A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo. Resta saber qual é a educação que os governantes têm em mente. Resta saber se a proclamação é um grito do Ipiranga educacional, ou um prenúncio de morte, porque o sistema já não aguenta mais promessas, adiamentos, paliativos.

Requiescat in pace, amigo Rubem. E, se o teu estatuto de pastor presbiteriano te confere crédito junto do Pai, pede misericórdia para as crianças do Brasil e o perdão para os nossos governantes.

* José Pacheco é educador e fundador da Escola da Ponte (Portugal) e do Projeto Âncora (Cotia), instituições reconhecidas por terem projetos pedagógicos baseados na autonomia e na democracia estudantil. Colabora com a Rede Românticos Conspiradores, que reúne educadores em torno de propostas para transformar a educação pública brasileira.

Redação

5 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Grandes ídolos meus

    Conheci ambos.

    Fiz o curso com os educadores da Ponte.

    Assisti a debates, palestras etc. tanto com um quanto com outro, e em todas as vezes saí maiúscula, robusta profissionalmente.

    Grandes, grandes mestres.

    Pacheco agora cada vez mais brasileiro!

    Que bom!

  2. A arte de Rubem Alves

    Durante muito tempo li as crônicas de Rubem Alves publicadas em jornal. Sempre tinha algo nelas que me deixava contemplativa.

    “…se a gente contar para um adulto que a casa da gente é branca, de janelas vermelhas, flores no  jardim e pássaros no telhado, eles ficam olhando, cara espantada, como se fôssemos de um outro mundo. Agora, se a gente disser que mora numa casa que custou trezentos mil reais, eles sorriem e dizem:”mas que linda casa”! Aprenda: os adultos são uns tolos… »

    E esse texto simples, que nos deixa ao final com um gosto bom na boca de que envelhecer pode e deve ser bom.

    “Abaixo está uma carta deliciosa da Dina. Minha vontade era publicá-la! Uma mulher de 86 anos com a leveza, o humor e a vontade de viver como a Dina merecia voar para envergonhar e ressuscitar os mais jovens! Mas não pude fazê-lo, por razões que vocês compreenderão. Mas agora ela morreu. Ela e suas cartas estão livres, além de quaisquer punições. Enquanto viva ela me autorizou a publicar o que quisesse depois da sua morte”.

    ***

    Rubem, sempre você, fazendo com que eu recorde, relembre o passado…

    Você escreveu no Correio Popular no seu espaço, sobre o sexo dos idosos, você citou Davi com a jovem bonita para aquecê-lo. E ele, moita. Você se esqueceu de Salomão, que possuía trezentas concubinas no serralho (1), no Harem, que quer dizer: lugar proibido. E fora elas, ainda tinha as esposas que residiam no palácio. Será que ele podia com tanta mulher? Eram muitas, e ele precisava de homens para cuidá-las; ajudá-las no banho e no vestir. Mas Salomão mandava castrá-los, e daí, os eunucos, que quer dizer: castrados.

    Então, vamos ao fatos, no começo citado. Uma estorinha vivida e presenciada por mim. Era o ano 47. Eu tinha que trabalhar muito para sustentar meus filhos, ajudar, porque o pai deles, não gostava de trabalhar em fábricas, era oleiro, e ganhava pouco.

    Até quarta-feira, eu lavava roupas para fora. Passava-as a ferro de carvão. O resto da semana ia fazer limpeza nas casas, onde moravam ingleses e alemães. Trabalhava às sextas-feiras para uma inglesa, ela tinha oitenta anos, o marido 82. Ela se chamava Miss Carr e ele Mister Carr. O nome eu nunca perguntei, eram “Miss e “Mister”.

    Ele ainda trabalhava na cidade, sempre muito bem vestido, estatura média, e ela também. Ele vinha almoçar, naquela pontualidade britânica, ½ dia.

    Ela fazia o almoço. Eu limpava a casa e lavava a roupa, que ela passava sentadinha numa cadeira. Eu arrumava a mesa, guardanapos em argolas de prata e coisas que tais e sempre flores na mesa.

    Ele chegava, tirava o paletó, e o colarinho sobressaliente duro qual papelão. Se lavava e os dois iam para a mesa. Depois eu tirava a mesa, isto é, o que havia em cima, servia o cafezinho, e quando ia levá-lo, ela estava sentada no colo d’ele, e ele a beijava no rosto e em seus cabelos, cabelos que ela os trazia sempre azulados e ficavam assim agarradinhos como se fossem dois jovens. Eu achava lindo, e me perguntava: Será? Ele ia para o trabalho e ela ficava no portão, ele se voltava e acenava-lhe com a mão, até virar a esquina.

    E um dia de manhã, eu arrumando o quarto d’ele, cada um dormia no seu. Aí encontrei dois chinelos, mas um era o d’ela.

    Eu lhe disse: Miss, aqui tem um chinelo seu e outro do mister. E ela, com aquela carinha engraçada e de quem fôra bonita me disse, no seu português arrevezado: “Nós ainda trocamos chinelos…”

    Eu arregalei os olhos e sorri, e vi n’aquela frase tão natural e tão bela, que o amor, entre aqueles que se amam de verdade, nunca morre. Eu fiquei feliz com a felicidade e o amor que irradiava no rosto d’aquela velhinha simpática. (21-5-2001). Dina.

    Faça disto o que lhe aprouver.

    Aí está Rubem, o meu comentário e a sinopse do seu escrito.

    ***

    1. Serralho: Era o Palácio do sultão, na Turquia; parte desse palácio habitado pelas mulheres do sultão; harém.

    Coisa estranha: asilos evangélicos que são prisões…

  3. Muito, muito especial.Era

    Muito, muito especial.Era pastor prebiteriano e na tese de doutorado , em teologia, na Universidade de Princenton virou a teologia de cabeça para baixo. A banca examinadora recusou por umas tres vezes a sua apresentação de tese até que finalmente foi aceita sem muitos louvores. Essa tese foi transformada em livro com o título Teologia da Esperança, livro essencial e que me libertou das amarras da teologia como um todo. Livro muito difícil de encontrar nas prateleiras de livrarias e sebos.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador