Como a ditadura foi sendo tratada nos livros de história

Da Revista de História

Hoje revolução, amanhã golpe
 
Nos livros didáticos, narrativas sobre a ditadura mudaram de acordo com o contexto
 
Helenice Aparecida Bastos Rocha
 
Ao longo das últimas cinco décadas, escrever sobre a ditadura militar brasileira nos livros didáticos tem sido uma missão espinhosa, cercada de desafios. A partir de 1964, e durante 21 anos, os autores que ousassem contar uma história que não agradasse ao regime estavam sujeitos a censuras e ameaças de penalização. Com a abertura política ao final desse período, vieram a público obras pautadas em memórias da ditadura, expondo seus horrores. Muitos livros didáticos passaram então a se posicionar criticamente em relação à ditadura e aos militares, evocando uma literatura de denúncia. Finalmente, na virada do século XXI, entra em cena o debate sobre a participação social de outros segmentos no regime, além dos militares. Vem daí a ampliação do termo para ditadura civil-militar, o que ainda é objeto de discussão.

 
Os livros didáticos precisam fazer uma síntese abrangente de temas e períodos, o que exige consultas e adaptações a partir de uma historiografia diversificada. Os autores dessas obras enfrentam dificuldade para constituir a narrativa do tempo imediato. No caso da ditadura, eles vão em busca de fontes primárias, como jornais e documentos produzidos por jornalistas, políticos e militares, além de recorrerem a estudos sociológicos e da ciência política. Essas memórias e estudos formam a base de uma primeira historiografia escolar sobre o tema, para atender à exigência de atualidade.  
 
Em um conjunto aleatório de livros didáticos publicados entre 1969 e 1995, percebem-se algumas peculiaridades. Quanto mais recuados no tempo – e próximos da implantação da ditadura – mais econômicos são os livros em suas narrativas sobre o golpe e o início do governo ditatorial. Especialmente nos 15 primeiros anos do regime, todo tipo de publicação esteve sob ameaça de censura. Muitas delas, como jornais e revistas, chegaram de fato a ter seu conteúdo vetado ou controlado. Os livros didáticos da época não fugiram à regra: claramente demonstram cuidado com as palavras. Em um deles, o contexto e o golpe que depôs João Goulart são descritos em menos de uma página. Em outros, há uma cautela que leva até ao silêncio e à inversão de sentidos no uso de denominações e adjetivos. 
Ao longo da década de 1970, autores de diferentes tendências historiográficas estabeleceram uma continuidade para narrar o período republicano, sem discriminar governos autoritários e chamando o momento em que viviam de “República Nova” (como fazem Ilmar Rohloff de Mattos e Sérgio Buarque de Hollanda), “República Contemporânea” (em livro de Francisco de Assis Silva) ou “A República depois de 1945” (em obra de Olavo Leonel Ferreira). Nenhum deles menciona a ditadura ou usam o termo golpe, preferindo chamar aquele episódio de “Deposição de João Goulart pelas Forças Armadas” ou “O Movimento de 31 de março de 1964”. Na obra de Armando Souto Maior, o período militar é apresentado no capítulo “A redemocratização do país”, e o golpe é denominado “Revolução Gloriosa”. É evidente que a proximidade dos acontecimentos e as interdições impostas pelo próprio regime de exceção desafiaram os autores quanto ao que e como dizer em seus textos. 
 
A inflexão veio a partir de 1979, momento em que se iniciava a abertura política. Livros do 2º Grau (atual Ensino Médio), como os de Francisco Alencar e outros, passam a dialogar com contribuições de intelectuais engajados, como Octavio Ianni. A continuidade histórica apresentada pelas obras anteriores é agora problematizada, e propõe-se uma peculiaridade para o período pós-1964, resultante da “crise do populismo”, explicação teórica para aquele momento feita pelo sociólogo e apropriada pelos autores. 
 
Octavio Ianni, representante de um grupo de intelectuais que se dedicaram à história política brasileira e à busca de razões para o golpe civil-militar de 1964, publicou O colapso do populismo no Brasil em 1968. Situa o fenômeno entre os anos de 1945 e 1964, período da “democracia populista”. Para ele, o golpe civil-militar de 1964 representou o fim de um modelo de desenvolvimento econômico conduzido pelo Estado, em um período de transição do capitalismo.  O autor entende que essa política de massas seria uma forma de organização e controle sobre a força dos trabalhadores que, com seu atraso cultural e inexperiência política, não teriam uma “consciência de classe”.
 
As narrativas sobre o assunto continuam se transformando ao longo da década de 1980. Os livros didáticos começam a afirmar, alguns ainda de forma tímida, a existência de um período ditatorial e a mencionar o golpe militar. A denominação “Ditadura Militar” passa a ser utilizada nos títulos e nas menções presentes nos livros didáticos de história. A obra de Sonia Irene do Carmo, de 1989, usa como título de um de seus capítulos, para o período anterior ao regime, “O populismo a caminho do fim”, ainda na chave explicativa de Ianni, utilizada por Francisco Alencar. Depois vem “A ditadura e a transição”, referindo-se ao golpe, às tropas militares e à sua vitória. A escolha das palavras contrasta com a interdição de sentidos imposta aos livros da década de 1970.    
 
Nesta breve pincelada em obras da década de 1980, nota-se o movimento para estabelecer uma linha divisória entre o presente e o passado, deslocando a dolorosa – ou ao menos desconfortável – experiência social do regime militar para um tempo que já passou. A percepção de que o antecedente do golpe foi uma “crise do populismo”, marco estabelecido apenas a partir de 1979 na obra citada, não foi confirmada pelos livros a partir da década de 1990.
 
Passados 51 anos do início da ditadura e 30 de seu fim, temos em 2015 um contexto instigante para o olhar crítico sobre o tratamento do tema nos livros didáticos de história. As obras atuais enfrentam o desafio da polêmica historiográfica sobre a participação da sociedade durante aquele período, o que dá novo significado à expressão “movimento” e gera o termo adotado em muitas obras: “ditadura civil-militar”. Por outro lado, a atribuição de uma aura heroica e vaga para a resistência social ao autoritarismo é substituída atualmente por uma nova delimitação, como reação localizada, restrita às ações de intelectuais e da luta armada.    
 
Apesar de se manterem sob a chave do passado x presente, os livros didáticos atuais são produzidos em outro contexto. Especialmente o da relação entre Estado e mercado editorial. A partir da década de 1990, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) elege um conjunto de obras à categoria de aprovadas para uso nas escolas públicas. Isto contribui para o fortalecimento ou a fragilização das editoras que se voltam para a publicação dessas obras. Há também exigências aos autores em relação aos temas sensíveis, sujeitos à evocação de direitos e deveres de memória, tais como a história da África e da cultura indígena, hoje obrigatórias nos livros submetidos ao PNLD.  
 
Depois da redemocratização, ocuparam o cargo de presidente da República personagens que tiveram participação ativa na vida política daquele período. Em posições diversas, alguns estiveram ao lado do poder constituído, enquanto outros lhe fizeram oposição. A abertura dos arquivos da ditadura tem tornado públicos depoimentos de pessoas que viveram aqueles acontecimentos e suas repercussões. Eles mobilizam lembranças de outros tantos da mesma geração que viveram a ditadura de diferentes formas. Nos parâmetros colocados para a produção dessa história, as narrativas tratam de um tema traumático e recente e são construídas a partir de elementos históricos diversos, dos quais sobressai a memória social.
 
O tortuoso tratamento desse tema é um exemplo de como é difícil produzir narrativas históricas de períodos recentes em livros didáticos. Essas obras precisam construir um caminho que sintetize a ditadura civil-militar e a inclua em uma narrativa maior sobre a nação. O currículo da disciplina história nas escolas, base para a seleção e a organização desses conteúdos, responde às finalidades sociais de transmissão de um legado vinculado ao passado, pactuado socialmente como parte dos conhecimentos e dos valores necessários à formação de identidades. Apesar de criticada por ser uma pretensão um tanto anacrônica – no que se refere à formação humana a partir de grandes narrativas – essa finalidade segue orientando a constituição do currículo escolar e estabelecendo exigências ao ensino da história.    
 
Um desafio precisa ser considerado pelos professores e alunos do Ensino Básico: a crença na “verdade” que as obras didáticas afirmam ao dialogar com a memória social muitas vezes oculta a sua historicidade. Como toda escrita, é uma narrativa presa às restrições e às possibilidades de seu tempo. Faz-se a crítica ao livro didático como desatualizado, mas o que ocorre é que ele atende a uma demanda do presente, incorporando um passado que não está encerrado, e continua reverberando. O que se escreve é a verdade possível a cada momento. 
 
Helenice Aparecida Bastos Rocha é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e organizadora de Ensino de História: usos do passado, memória e mídia (FGV, 2014). 
 
Saiba Mais
 
CARRETERO, M. Documentos de identidade: a construção da memória histórica em um mundo globalizado. Porto Alegre: Artmed, 2010. 
FICO, C. “História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso brasileiro”. Vária História, vol. 28, nº 47, p. 43-59, 2012.
MIRANDA, S. & LUCA, T.R. de. “O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD”. Revista Brasileira de História, vol. 24, nº 48, p. 123-144, 2004.
ROLLEMBERG, D. Esquecimento das memórias. In: FILHO, J.R.M.F. O golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: Ed.UFSCar, 2006. p. 81-91.   
 
Redação

1 Comentário

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  1. Verdades móveis

    Verdade possível é um conceito que a Globo vai gostar…..

    Com o atual recrudescimento direitista, já deve estar arrependida de ter considerado um erro apoiar a ditadura.

    Vai soltar novo editorial considerando um erro o editorial anterior………..

    O “brasileiro” aceita qualquer coisa….

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