Filantropia, pilantropia e o evangelho da educação, por Reginaldo Moraes

filantropia

Artigo do Brasil Debate

Por Reginaldo Moraes*

Em um de seus últimos livros, a educadora americana Diane Ravitch conta uma estória instrutiva. A secretaria de educação do estado americano de Iowa convidou um bem-sucedido empresário para uma palestra a professores e administradores da rede pública. Ele fora premiado por produzir “o melhor sorvete de morango do país”.

Durante mais de uma hora, o homem de negócios relatou entusiasmado os métodos pelos quais sua empresa alcançara o sucesso: estritos controles de qualidade e prêmios e bônus para os empregados que atingiam metas. E recomendou que esses fossem os mandamentos na administração da rede escolar.

Terminada a conversa – com farta distribuição de sorvetes, claro – uma professora pediu a palavra. Pediu a ele que respondesse, direta e brevemente, o que fazia com os morangos “menos bons” que chegassem a sua fábrica.

Ele vacilou, mas não tinha outra resposta: disse que eram rejeitados. Ele só trabalhava com o melhor. A professora retomou a palavra e disse: essa é uma das razões pelas quais nossas escolas não devem imitar seus métodos de administração. Nós não podemos refugar nossos morangos menos bons.

O leitor (e eleitor) brasileiro deve ter lido ou ouvido arengas como a desse empresário a todo o momento. Nos últimos 20 anos, sobretudo, banqueiros, industriais e donos de redes de comunicação criaram dezenas e dezenas de ONGs para “melhorar” a educação e disseminar o que chamam de “boas práticas”.

São todos muito bem-intencionados. Quando saem de suas fábricas, lojas e bancos, até empresários selvagens viram anjos de ternura. Por alguma coincidência, essas ONGs e OSs floresceram mais quando o Estado privatizou serviços, inclusive de educação – e terceirizou muitas atividades.

Elas viraram prestadoras de serviços e comedoras de verbas. O setor público não pode contratar pessoal, por conta da lei de responsabilidade fiscal, então… repassa tarefas a uma dessas organizações, com contrato de serviços e nota fiscal.

Já ouvimos muitas estórias de empresários mundo afora criando programas de bolsas para estudantes carentes. Nossos empresários não são bem assim.

Uma famosa banqueira, por exemplo, criou uma dessas ONGs. Ela não distribui doações: ela caça. Caça dinheiro de secretarias estaduais e municipais de cultura e de educação, de agências federais ou estaduais de apoio à pesquisa, à cultura e à educação. Ela é uma caçadora incansável.

Sempre em busca do bem comum e do avanço da educação, claro. Enquanto isso, seu banco é processado por sonegação – a bagatela de 18 bilhões de reais. Ela tem advogados para eternizar a cobrança.

Nossos empresários bondosos de ONGs educativas costumam usar o discurso do sorveteiro americano: controle de qualidade, bônus e prêmios de desempenho para as “boas práticas” e “avaliação por resultados”.

O problema deles é saber o que fazer com os morangos menos bons que uma sociedade desigual como a brasileira produz. Os mesmos bondosos empresários que rezam pela educação são em geral aqueles que ladram contra os programas de redução da pobreza. Será por acaso?

Não, não é acaso. Talvez não haja lugar mais confortável para os conservadores do que o “evangelho da educação”, isto é a crença subliminar que difundem, segundo a qual as pessoas são pobres ou estão pobres porque não são educadas adequadamente.

Daí, a educação vira santo redentor e, ao mesmo tempo, culpada do fracasso.  O mercado de trabalho e as relações de exploração nas empresas são detalhe. Assim como a desigualdade provocada pelo sistema tributário regressivo – pobres pagam mais imposto do que ricos, trabalhadores pagam mais do que empresários.

E muitas empresas que sonegam solenemente são também empresas patrocinadoras dessa filantropia (ou pilantropia) educativa: Natura, Itaú, Globo. Tudo gente boa.

O que quer dizer isso? Que não devemos investir na melhora de nossas escolhas e sistemas educativos? Que isso não tem importância para reduzir a desigualdade e criar um país mais justo, desenvolvido e soberano? Não, nada disso.

Mas devemos ficar alertas com esses profetas perfumados do “evangelho pedagógico”. A crença na reforma da escola e pela escola pode se transformar em um novo “ópio do povo”, ou como dizia o conhecido texto no qual surgiu tal expressão: um grito do espírito em um mundo sem espírito, mas, ao mesmo tempo, um instrumento de consolo geral que torna suportável o vale de lágrimas.

Como a condição para abandonar as ilusões sobre sua condição é abandonar uma condição que necessita de ilusões, o círculo parece fechado, sem possibilidade de ruptura. Mas não é assim.

Para começar, nossos empresários fariam melhor se pagassem seus impostos ao invés de mobilizar seus advogados. E se deixassem de mobilizar seus capangas legisladores para impedir reformas tributárias progressivas.

E se deixassem de tentar retirar a política econômica do controle do povo – com essas propostas indecentes de “banco central independente” e ‘comissão de bons’ para reger a política fiscal.

Tudo isso está no programa que a banqueira do Itaú e o banqueiro do Citibank redigiram para a candidata verde. Nada surpreendente para gente tão bem-intencionada.

Crédito da foto: Jornal GGN

*Reginaldo Moraes é professor da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo

Conheça a página do Brasil Debate, e siga-nos pelo Facebook e pelo Twitter.

Redação

13 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. A mãe de todas as reformas
    … não eh a política nem a tributária. Sem reforma judicial, sem uma justiça que JULGUE e rapidamente, pilantras não terão motivos para mudar.

  2. Excelente questão

    O que fazer com os “menos bons”.

    Aliás, o Brasil não sabe o que fazer com os melhores, também.

    Não existe um programa para identificar superdotados.

    E as universidades brasileiras precisam se mexer, também.

    A fama de Harvard e do MIT não vem dos ricaços que mandam os filhos estudar lá. Esses são fontes de recursos úteis.

    Nem Harvard nem o MIT tem os melhores professores do planeta.

    Harvard e MIT tem fama proque eles saem à caça de bom alunos. Um bom aluno identificado no ensino médio terá bolsa garantida nessa instituições. Outra grandes universidades nos EUA fazem o mesmo.

    NENHUMA universidade brasileira faz isso.

    vai saber porque…

    1. Não apenas oferecem vaga como
      Não apenas oferecem vaga como pagam pro cara estudar, e obviamente, dar aulas.
      Um amigo meu formado pela.PUC rj teve diversas propostas.
      Aceitou o MT que além de ser quem é, deu carro, casa e bom salário.
      Já concluiu o pós, pós, pós doutorado.

  3. Gente, é fácil.

    Os muito bons farão parte do governo Marina.

    Os apenas bons ficarão na oposição.

    Os menos bons passarão pelo mesmo treinamento que a Neca* deu a ela.

    Os menos bons ainda serão encaminhados aos pastores Malafaia e Everaldo, para serem convertidos.

    E os menos menos bons… irão conversar com o Ministro Bolsonaro e a PM do Alckmin.

     

     

    * palavra proveniente do latim hipotético “petra nera sonecare tributum est”

  4. Falta caráter de honestidade na nossa imprensalona

    Como diz Brito no site Tijolaço, se existisse jornalismo não precisaria que houvesse essas denúncias. Se existisse justiça independente, não seria preciso que homens de bem se expusessem ao expor os Pilântropos.

  5. parabéns,
    este texto contém o

    parabéns,

    este texto contém o fulcro essencial

    para uma série de desdobramentos

    sobre a falácia de que a educação resolve tudo

    sem distribuição de renda.

    tem muita gente com mérito

    por aí que ganha baixos salários.

    os profetas perfumados qyerem é engambelar os trouxas.

    profetas perfumados da pilantropia

    vasculhando seus putrefatos

    patrimonialismos para justificar

    suas vilipendiosas sonegações

    e arrancar do tesouro do estado

    mais dinheiro para a falaciosa

    teceirização de tudo através

    de suas ongs poderosíssimas.

    se esses sonegadores de impostos

    aí da grande elite burguesa

    são os “bons da candidata marina silva,

    definitivamente estamos

    ferrados,

    né mesmo?

     

  6. Que saudade dos bons tempos
    Que saudade dos bons tempos de de desvio de dinheiro da merenda escolar, lembram?
    Criaram o serviço, colocaram dinheiro, o os corruptos pularam em cima.

    Bons tempos que não voltam mais….

  7. O que será que vem por aí ?

    O que será que vem por aí ? Pelo “andar da carruagem” se essa turma vingar, o Brasil será literalmente “enxugado”: banco central independente; meta inflacionária maior; terceirização da mão-de-obra; entrega do pré sal aos gringos; governar só com “anjos”…eita ..vou começar a estocar vela …pois acho que voltaremos a idade das trevas.. Desmonte da Petrobrás e entrega da Vale do Rio Doce no governo do FHC…será nada ..em comparação com o que vem por aí…

  8. “A Alemanha tem 7,5 milhões

    “A Alemanha tem 7,5 milhões de analfabetos adultos no país, segundo pesquisa da Universidade de Hamburgo, divulgada na semana passada. O problema estaria no sistema educacional alemão que favorece os melhores e oferece menos oportunidades para os alunos mais fracos, com isso quem não conseguiu aprender a ler e a escrever até o primeiro ano escolar pode chegar à vida adulta analfabeto.”

     

    http://opiniaoenoticia.com.br/internacional/alemanha-tem-75-milhoes-de-adultos-analfabetos/

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador