Qual o legado da ditadura civil-militar na educação básica brasileira?

Para estudiosos, regime criou a prática de expandir matrículas sem pensar na qualidade, agudizando as desigualdades sociais e educacionais que persistem até os dias de hoje

Por Caio Zinet, do Centro de Referências em Educação Integral

“Na ditadura militar a escola era boa”. Essa frase, repetida inúmeras vezes, pode soar como verdade para alguns. Os fatos, porém, não parecem corroborar essa tese. Diversos estudos e especialistas que se debruçam sobre o tema apontam que a Ditadura Civil-Militar (1964-1988) deixou marcas profundas na educação brasileira entre elas, a prática de expandir sem qualificar.

 

No período, houve um aumento significativo do número de matrículas na educação básica, mas com poucos recursos e pouca formação docente, ou seja, sem se preocupar com a qualidade ofertada.

Constituição de 1967, aprovada pelo Regime Civil-Militar, promoveu duas alterações importantes na política educacional brasileira. Primeiro, desobrigou a União e os estados a investirem um mínimo, alterando um dispositivo previsto na Lei de Diretrizes e Bases, aprovada em 1961.

A legislação anterior, aprovada pelo Congresso Nacional durante o governo João Goulart, previa que a União tinha que investir ao menos 12% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação e também obrigava estados e municípios a alocarem 20% do orçamento na área.

No artigo “O legado educacional do regime militar”, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)Dermerval Saviani, cita estudo que mostra que o governo federal reduziu sucessivamente as verbas. Em 1970, esse percentual foi de 7,6%, caindo para 4,31% em 1975 e recuperando um pouco em 1978, quando foram gastos 5% do PIB na área.

Uma segunda mudança importante introduzida pela Carta de 1967 foi a abertura do ensino para a iniciativa privada.

“Sempre que possível, o Poder Público substituirá o regime de gratuidade pelo de concessão de bolsas de estudo, exigido o posterior reembolso no caso de ensino de grau superior”, previa o artigo 168.

Em 1969, o Regime reforçou esse caráter por meio da Emenda Constitucional nº1, considerada por muitos como uma nova Constituição, que previa em seu artigo 176 que “Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive mediante bolsas de estudos”.

Mudanças na estrutura

Paralelamente, a ditadura civil-militar também transformou radicalmente a estrutura de educação básica no país. O modelo prévio, aprovado em 1939 durante a vigência do Estado Novo e mantido pela Lei de Diretrizes e Bases de 1961, dividia o ensino em pré-primário (maternal e jardim de infância), primário com duração de quatro anos, com opção de mais dois em caso de cursos de artes aplicadas, e médio com 7 ou 8 anos anos divido em ginasial (4 anos) e colegial (mínimo de 3 anos).

Apesar de mantida a essência da estrutura anterior, a LDB de 1961 tornava o ensino obrigatório apenas nos 4 primeiros anos (equivalente ao Fundamental I). Apesar disso, a legislação previa que em casos de pobreza dos pais, insuficiência de escolas e doença ou anomalia grave da criança, as famílias não eram obrigadas a realizar as matrículas de seus filhos.

A constituição de 1967 alterou essa estrutura, instituindo a Educação Básica como obrigatória durante 8 anos, influenciando uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação aprovada em 1971 que implementou um modelo mais próximo com o que existe atualmente.

Essas alterações tiveram como efeito um aumento significativo no número de matriculados nas escolas, uma vez que a ditadura tornou o ensino obrigatório. A expansão que se seguiu a tal medida, entretanto, não foi acompanhada por aumento das verbas.

“Os gastos do Estado com a educação foram insuficientes e declinaram, o que interferiu: na estrutura física das escolas, que apresentaram condições precárias de uso; no número de professores leigos, que aumentou entre 1973 e 1983, fato que se mostrou mais grave na região Nordeste, onde 36% do quadro docente tinha apenas o 1º grau completo; e nos salários e condições de trabalhos dos professores, que sofreram um crescente processo de deterioração”, escreveu a professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Renata Machado de Assis em seu artigo “A Educação brasileira durante o período militar: a escolarização dos 7 aos 14 anos“.

A docente conclui que apesar da ampliação do contingente de estudantes, a política educacional promovida no período serviu para reforçar as desigualdades educacionais, até hoje, um dos grandes desafios a serem superados na educação brasileira. “Esse quadro demonstra que, embora significativos contingentes das camadas populares tenham tido acesso à escola, foi ofertada a esse público uma educação de baixa qualidade e de segunda categoria. Isso manteve as taxas de evasão e repetência em níveis elevados”, conclui a docente.

O professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar)Amarilio Ferreira Júnior, afirmou que a política de expansão da educação promovida pela ditadura também teve impactos diretos na formação docente.

Um dos exemplos foi a criação de uma modalidade de graduação conhecida como Licenciatura curta. Os cursos das mais diversas áreas tinham duração de dois anos e meio e davam condições formais para milhares de profissionais lecionarem nas salas que estavam sendo abertas.

“O Brasil não tinha o números de professores necessários para sustentar a expansão da escolarização no ritmo e na dimensão que ocorreu. O resultado foi o rebaixamento cultural e a precarização das condições de trabalho dos professores que continua sendo a realidade de inúmeras redes de ensino até hoje”, avalia o professor.

Saiba + Glossário: formação docente

Infraestrutura

O espaço físico também é algo essencial para uma educação de qualidade, comprometida com o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Locais para alimentação, prática esportiva e desenvolvimento de outras atividades são essenciais na formação do aluno dentro de uma perspectiva integral.

A expansão veloz e sem recursos, no entanto, produziu prédios escolares precários e sem os recursos necessários para o desenvolvimento da educação, o que se tornou outra herança perversa do regime militar.

A precarização da escola pública e a queda na qualidade do ensino, combinada com a abertura do país ao ensino privado, fortaleceu a migração dos filhos das elites para colégios particulares.

Essa migração fortaleceu as desigualdades sociais e educacionais. A partir desse momento, cria-se a lógica de que os filhos dos ricos têm acesso a uma educação de qualidade e, portanto, mais chances de chegar ao ensino superior, enquanto aos filhos dos pobres resta uma educação pública e precarizada que praticamente impossibilita sua entrada na universidade.

Qualificar mão de obra

O ex-ministro do PlanejamentoRoberto Campos (1964-1967) afirmou durante o seminário “A educação que nos convém”, realizado em 1968, que a intenção do governo era formar os filhos dos pobres até o ensino médio, apenas para qualificar a mão-de-obra. A universidade era um local destinado para as elites.

“A educação secundária de tipo propriamente humanista devia, a meu ver, ser algo modificada através da inserção de elementos tecnológicos e práticos, baseados na presunção inevitável de que apenas uma minoria, filtrada no ensino secundário ascenderá à universidade; e para a grande maioria, ter-se-á que considerar a escola secundária como uma formação final”, afirmou Campos.

Para Amarilio, porém, é uma leitura simplista colocar toda responsabilidade da situação atual da educação nas costas da ditadura militar, uma vez que o país já tinha uma história de 450 anos de privilégios das elites, em detrimento da garantia de direitos para as maiorias sociais. Entretanto, ele afirma que o Regime agudizou algumas tendências.

“A ditadura não criou, mas acentuou a dualidade entre o ensino público e o privado, da pré-escola ao ensino superior. A consequência é que as escolas públicas perderam a qualidade e passou a ser destinada aos mais pobres, enquanto o ensino privado começou a ser uma alternativa para os mais ricos e para as elites que secularmente governaram o país”, afirmou o docente.

Currículo

Durante a ditadura militar também foram introduzidas mudanças curriculares com a inclusão da matéria Educação Moral e Cívica para os alunos do 1º e 2º grau. Também foi alterado o objetivo da disciplina Organização Social e Política do Brasil (OSPB).

A OSPB foi pensada pelo ex-ministro da educação do governo João Goulart, Anísio Teixeira, como forma de formar dos estudantes conhecerem melhor a legislação. A ditadura mudou o caráter da disciplina, tornando-a um espaço que previa o culto à pátria e aos valores do Regime. A matéria se tornou, portanto, uma forma de exaltar o nacionalismo presente.

Eram abordados, também, conteúdos que “aprimoravam o caráter do aluno por meio de apoio moral e dedicação tanto à família quanto à comunidade”. Outra herança importante da ditadura civil-militar no Brasil é o recorrente uso de livros didáticos que serviam a um duplo proposito: uniformizar o discurso dos professores na sala de aula, evitando que saíssem do discurso imposto pelo regime militar e servir como guia para os professores que foram levados à sala de aula com pouca formação.

Juliana Miranda Filgueiras estuda o tema e escreveu um artigo chamado “O livro didático de educação moral e cívica na ditadura militar de 1964: a construção de uma disciplina” e explica que durante a o período, a educação básica tinha um papel importante em difundir as noções de cultura brasileira que se pretendia instaurar.

“Das diversas maneiras possíveis de divulgar os padrões de conduta pretendidos pelo Regime Militar, o livro didático de Educação Moral e Cívica pode ter tido um papel de suma importância. Antigos livros didáticos foram reestruturados e novos livros foram publicados”, afirmou Juliana no artigo.

A lógica de padronização do ensino e do currículo por meio de livros didáticos ainda é uma constante em muitas redes de ensino hoje. Dentro da perspectiva da educação integral, o currículo deve ser pensado para contemplar o desenvolvimento de todas as potencialidades do sujeito.

Alterações curriculares

Ao mesmo tempo, foram excluídas as aulas de Sociologia e Filosofia do currículo básico dos estudantes e também foram promovidas alterações importantes em outras disciplinas, notadamente as de humanas, como História e Geografia. A Campanha de Assistência ao Estudantes (Cases), nascida em 1958 durante o governo Juscelino Kubitschek, organizou a coleção História Nova do Brasil (HNB) que tinha como proposta redefinir o programa e o currículo de história ensinado nas escolas.

Os signatários da coleção, Joel Rufino dos Santos, Maurício Martins de Mello, Nelson Werneck, Pedro de Alcântara Figueira, Pedro Celso Uchoa e Rubem César Fernandes, elaboraram várias monografias que foram compiladas em um material distribuído pelo então Ministério da Educação e Cultura (MEC) aos professores.

Em artigo, o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)Cléber Santos Vieira, diz que um das primeiras medidas do golpe militar foi proibir a circulação da publicação e promover inquéritos contra alguns de seus autores. A ditadura militar decidiu manter o nome da publicação, mas fazer uma nova versão onde foram apresentadas três monografias.

O objetivo era consolidar outra visão de História, na qual o nacionalismo era ressaltado. “Por esta lógica, as monografias ‘Conceituação de Estudos Brasileiros’ nos três níveis de ensino, ‘Feriados Nacionais’ e ‘A Educação Cívica e o Trabalho’ teriam sido parte do ensaio geral da obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica nos estabelecimentos escolares de todos os níveis, estabelecida pelo Decreto-Lei 869/1969 e toda enxurrada de livros didáticos publicados após sua edição, cujos conteúdos buscaram interromper a reforma de base no ensino de história”, afirmou o professor no artigo “Da História Nova do Brasil à Coleção de Educação Cívica: Histórias da Divisão de Educação Extra-Escolar do MEC (1963-1966)”.

A Educação Moral e Cívica deixou de ser obrigatória em 1992 e foi abolida em 1993.

Gestão Democrática 

Outro princípio importante para educação integral é a gestão democrática, prevista na atual legislação brasileira. Nesse ponto a ditadura foi desastrosa, fomentando uma organização hierarquizada e vertical do ambiente escolar. Além disso, impedia a ação política dos estudantes. O Regime perseguiu e matou alunos da educação básica e jogou na ilegalidade grêmios estudantis e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) pela Lei nº 4.464, de 6 de abril de 1964, conhecida como Suplicy de Lacerda.

Um dos marcos mais importantes foi o assassinato do secundarista Edson Luis por um soldado durante manifestação contra o preço do restaurante estudantil, no Calabouço, Rio de Janeiro.

O velório na capital fluminense levou mais de 50 mil pessoas para as ruas e se tornou um ato de resistência à ditadura, transformando o jovem em um grande símbolo da luta contra a opressão. A liberdade de organização dos estudantes secundaristas voltou a ser garantida somente em 1985, durante a presidência de José Sarney, com a aprovação da lei Nº 7.398.

“Aos estudantes dos estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus fica assegurada a organização de Estudantes como entidades autônomas representativas dos interesses dos estudantes secundaristas com finalidades educacionais, culturais, cívicas esportivas e sociais”, previa o artigo 1º da lei.

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Com a redemocratização, a discussão sobre a importância da gestão democrática das escolas volta com força. Segundo o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jamil Cury, durante a elaboração da constituinte voltou a se discutir o tema.

“Uma das primeiras movimentações em prol de uma educação democrática ocorreu no âmbito da constituinte e, posteriormente, na montagem do capítulo da educação da Constituição”, afirmou o professor no vídeo Princípios e Bases da Gestão Democrática (ver abaixo).
De acordo com o Erasto Fortes Mendonça, a discussões sobre gestão democrática continuaram e influenciaram na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1995 que começou a aprofundar uma visão de que a democracia na escola não se limita apenas a eleger diretores.

“Esse princípio se expande um pouco mais com algumas características, como a formação de conselhos escolares, participação dos professores na formulação do Plano Político Pedagógico da escola. A concepção de gestão democrática se amplia para além da eleição de diretores”, afirmou no mesmo vídeo.

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Redação

13 Comentários

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  1. A Ditadura arrebentou com a

    A Ditadura arrebentou com a educação pois claramente estabeleceu uma educação meritocrática em prejuízo da educação civilizatória, como queriam pensadores como Aluízio de Azevedo. Outro documento que está arrebentando com nossa educação é o Estatuto da Criança e do Adolescente, que do jeito que está favorece o surgimento de marginais mirins.

    Ao meu ver o grande um dos grande erros do Governo petista está em não modificar drasticamente nosso sistema educacional. Do jeito que está não vamos muito longe.

    1. A ditadura não inventou a meritocracia

      A ditadura não estabeleceu a educação meritocrática em detrimento à educação civilizatória, seja lá o que isso quer dizer. A meritocracia é inerente à educação, pois trata-se de um interesse geral: os melhores alunos se tornam os melhores profissionais, e o trabalho bem feito é mais benéfico ao país inteiro do que o trabalho mal feito. Mesmo onde há cotas a meritocracia não deixa de existir, pois somente se qualificam às cotas os que tiram a melhor nota.

      Quanto aos maus efeitos do Estatuto da Criança e do Adolescente, eu concordo totalmente. Esse estatuto foi feito apenas com o propósito de jogar os marginais mirins nas ruas e assim desobrigar o governo de construir mais febem´s.

  2. O Governo Militar entregou o

    O Governo Militar entregou o poder aos civis em 1985, são portanto 31 anos de distancia. Imagine se na Alemanha em 1986, 31 anos após o fim do nazismo, o Chanceler Helmuth Smith alegasse que não podia fazer nada por causa da pesada herança do nazismo de tres decadas antes.

    Houve tempo para os civis fazerem uma revolução na educação e nada foi feito, só piorado e agora vem essa da culpa dos militares.

    O Governo Militar tentou expandir a educação superior por causa do problema dos “excdentes” aqueles que não conseguiam entrar nos dificeis vestibulares da poucas faculdades. Na gestão Passarinho no MEC trocou-se então qualidade por quantidade, que é uma visão esquerdizante da educação, “”todos devem ter direito”” contraria ao sistema europeu-americano

    onde se entende que a educação superior é seletiva, não é para todos, porque o sistema economico não precisa de tantos diplomados. Nos produzimos nos governos civis posteriores a 1985 a aberração de termos 1.380 faculdades de direito mais

    que a União Europeia, EUA, Canada e Japão somados, temos mais faculdades de medicina que os EUA, é muito diplomado para pouco emprego de nivel superior e é porisso que temos gente bacheralada em direito guiando taxi.

    Essa educação “inclusiva” se aprofundou no governo FHC e muito mais nos governos do PT, temos hoje milhões de pessoas

    com pseudo diplomas e sem nenhuma qualificação, na linha “meu filho será douto””, o sistema está todo disfuncional e

    produz uma falsa educação para nada alem de estatisticas tipo “todos os brasileiros estão na escola”.

     

    1. Você provavelmente não leu e,

      Você provavelmente não leu e, se leu, não entedeu.

      O texto é bem claro em demonstrar como a Ditadura aprofundou a precarização do ensino público e abriu caminho para as ‘fábricas de diplomas’ que, como você bem apontou, hoje dominam o ensino no país.

    2. Exato

      O governo militar apenas deu continuidade a um processo de massificação do ensino que já vinha em curso então e que prosseguiu após o fim do regime. Realmente não adianta ter duas ou três boas escolas públicas se só servem a uma parcela ínfima da população, como era no tempo do império. O preço a pagar é esse: trocar qualidade por quantidade.

    3. Os militares não entregaram nada

      Os militares chantagearam os Civis: ou aceitavam a “anistia”, ou eles continuariam a barbarizar o país.

      25/04/2014  –   BRASILIA –   Os reflexos da ditadura civil militar sobre a educação foram tão nocivos e profundos que até hoje, 30 anos após o início da redemocratização, impedem o país de alavancar a qualidade e democratizar o acesso a este que deveria ser um direito de todo brasileiro.  Em audiência pública especialistas foram unânimes em apontar as heranças do regime como principais responsáveis pela má qualidade da educação pública e pela vergonhosa falta de acesso a ela para os pelo menos 14 milhões de analfabetos, além de número maior ainda de analfabetos funcionais.

      Em 14 de abril de 1964, um dia antes do Castelo Branco assumir, foi extinto o Programa Nacional de Alfabetização, que vinha sendo implantado no país pelo educador Paulo Freire e seria inaugurado oficialmente em maio. A decisão já havia sido tomada um ano antes, quando Castelo Branco ouvira Paulo Freire em um evento no interior paulista. “Vocês estão engordando cobras”, teria diagnosticado o futuro ditador.

      O Presidente do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti ressaltou também a introdução do caráter mercantilista da educação, trazido dos EUA, que a transforma em negócio, ao invés de direito. “Havia uma lógica de privatizar”. Ele criticou a reforma universitária, que promoveu a “departamentalização”, como estratégia para fragmentar o conhecimento. E também a forma autoritária como eram impostos os diretores, selecionados não pelo desempenho acadêmico, mas pelo perfil gerencial. “A reforma universitária visava reformar para desmobilizar”, resumiu.

      Sobraram críticas também à reforma do ensino básico, feita de modo a impedir o crescimento intelectual dos alunos. Segundo ele, em uma época que até o Banco Mundial preconizava que os trabalhadores tinham que ter uma formação generalista, a ditadura obrigou todas as escolas de ensino médio a introduzir a formação técnica compulsório, sem nenhum preparo para isso, e o resultado foi um fracasso.

      Outro fracasso registrado foi o do Mobral, criado para alfabetizar jovens e adultos e extinto no governo Sarney. Em quase 20 anos, o programa, que prometia acabar com o analfabetismo em 10, conseguir reduzir a taxa apenas de 33% para 25%. (…) No inventário dos prejuízos causados pela ditadura à educação brasileira, ele incluiu também o desmantelamento dos movimentos sociais e populares, a eliminação da representação estudantil e a perda da capacidade dos educadores de influir nos rumos da educação. Como exemplo, ele citou o quanto ainda é difícil implantar um conselho de escola ou mesmo difícil discutir política na escola, o que considera salutar para o país.
       
      “Estamos formando gerações sem discutir que país queremos”, afirmou. Gardotti lembrou que Paulo Freire já dizia que educar é politizar sim. “Não podemos formar estudantes na velha teoria do capital humano: estude, trabalhe e ganhe dinheiro. Paulo Freire respondeu claramente a esta teoria na época: a educação que não é emancipadora faz com que o oprimido queira se transformar em opressor”, concluiu.

      O sociólogo Emir Sader, lembrou que o arrocho salarial foi tão importante para a sustentação da ditadura quanto a repressão sistemática, o que acabou comprometendo a qualidade dos serviços públicos, inclusive a educação. “O santo do chamado “milagre econômico” foi o arrocho salarial”, afirmou. Até então, a escola pública era um espaço de convivência entre a classe pobre e a classe média, um espaço de socialização. “A classe média, a partir daquele momento, passou a se bandear para escola particular, fazendo um esforço enorme, colocando no orçamento os gastos de escola e deixando a escola pública como um fenômeno social de pobre”, observou.

      Sader avalia que a ruptura causada foi tão significativa que a escola pública, até hoje, não recuperou seu vigor. ”Isso está sendo feita a duras penas na última década, mas com uma herança acumulada brutal. Já tem reflexos no ensino universitário, mas não em toda a educação: a escola pública nós perdemos”, ressaltou. E’ a reconquista da qualidade da educação primária e média que deve ser tema fundamental e urgente à democracia brasileira. “Estamos muito atrasados. Até a saúde pública, apesar do viés duríssimo da perda da CPMF, nós conseguimos melhorar agora com o programa Mais Médicos. Mas a educação, não. A estrutura de poder herdada da ditadura só se consolidou, inclusive a da educação privada”, observou Sader, lembrando que os oito anos de governo FHC aprofundaram ainda mais o processo de privatização deflagrado pelos militares.

      Texto completo: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Reflexos-da-ditadura-na-educacao-impedem-pais-de-avancar/13/30792

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      Educação Moral e Cívica: pensada para sustentar valores dos gorilas

      Para além de toda a violência, a ditadura provocou grande prejuízo sobre a educação e isso permanece ate hoje. A disciplina Educação Moral e Cívica foi um dos projetos para inocular valores na sociedade, adequados à lei de segurança nacional.  No início da década de 1960 havia muitos projetos de educação adulta popular como o ”De pé no chão também se aprende a ler”, com ideal participativo e cidadão, que foram destruídos para implementação de um modelo semelhante ao que existe hoje na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Os idealizadores desses projetos acabaram presos e banidos.  ”Foi um projeto sistemático e bem pensado para destruir a estruturação do ensino e projetos que estavam em curso”, afirmou Vieira.

      Anísio Teixeira, ministro da Educação do governo Goulart, incluiu a Organização Social e Política do Brasil (OSPB) no currículo, em 1962. A proposta de Teixeira era dar conhecimento de leis e questões políticas para que o povo pudesse interferir com melhores condições nas decisões da sociedade. ”A ditadura sugou a ideia e a colocou a serviço da doutrina de segurança nacional”, afirmou o professor Cleber Santos Vieira, do Departamento de Educação de Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. O pesquisador lembra que o projeto de educação da ditadura buscava ainda esvaziar o conteúdo crítico do currículo brasileiro. E apesar do apoio do órgão americano de desenvolvimento da época – a Usaid –, não se apropriou de ideários como o a formação cidadã da população, comum nos Estados Unidos e na França, por exemplo.

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      ”O que me impressionou de saída foi a intimidade que se criou entre funcionários americanos do embaixador Lincoln Gordon e a equipe tecnocrática incumbida de planejar o governo Castelo Branco, dirigida por Roberto Campos. Talvez tenha sido uma das primeiras tentativas de engenharia social para reconstruir um país desde zero. Chegava-se à ingenuidade de discutir em telegrama qual seria o salário das professoras primárias.”  Fonte: Rubens Ricupero, Minha história de 1964, Folha de S.Paulo, 31/3/2014.

      1. Mas 30 anos é muito tempo

        30 anos é mais que uma geração. Como é que os supostos efeitos nefastos dos militares na educação não foram revertidos? Por que é que qundo Paulo Freire retornou do exílio ele não deu continuidade a seu projeto? Aliás, em que lugar do mundo o método Paulo Freire foi um sucesso? Com certeza, chances de aplica-lo ele já teve em muitos locais que não estavam sob ditdura e o prestigiaram.

        O que houve foi a massificação do ensino, a troca da qualidade pela quantidade, processo que já estava em curso quando os militares chegaram a poder e que continua até hoje. Como a escola pública deixou de ter qualidade, a classe média abandonou o que era até então um raro espaço de convivência com os pobres.

  3. O declínio da escola pública vem de longe

    O declínio da escola pública vem de antes do governo militar. Eu me lembro que naquele tempo, para o pessoal da classe média, a norma era fazer o primário em uma escola pública e o secundário em uma boa escola particular. Hoje em dia nem pobre mais quer fazer primário em escola pública, a filha da empregada da minha mãe estudou um tempo em escola particular.

    De modo que, se alguém afirmar que no tempo dos militares a escola era melhor, não estará mentindo, pois no passado a escola pública era mesmo melhor. Só que isso não tem nada a ver com os militares, pois trata-se de um processo de massificação do ensino já em curso quando eles chegaram ao poder, e que prosseguiu após eles abandonarem o poder. Antigamente a escola pública podia ser boa porque havia poucas, já que a grande maioria da população não frequentava escolas, pois morava no interior e tinha que trabalhar desde cedo. A única solução para universalizar o ensino, com recursos limitados, era trocar qualidade por quantidade, e então chegamos ao ponto onde estamos. A única coisa que importa agora é apresentar estatísticas mostrando que todos estão na escola, mesmo que seja preciso aprovar quem não aprendeu nada e inventar esquitices como quotas em um país onde jamais existiu discriminação racial em escolas.

    De resto, leis que estabelecem percentual mínimo de recursos a ser aplicado na educação nunca foram cumpridas, e se o fossem, levariam os estados à falência. Aliás, se os recursos destinados à educação já são tão mal gastos, que razão há para aumentar ainda mais esses recursos? Não seria melhor fazer uma auditoria e verificar onde está havendo desperdício? Mas destrambelhado mesmo foi o argumento de que os militares fizeram mal à educação aumentando o número de escolas privadas. Não fosse assim, a concorrência às escolas públicas seria hoje ainda maior.

  4. Massificação (insuficiente)

    Massificação (insuficiente) com baixo custo. Esse é o saldo, em qualquer nível de ensino. No ensino superior, uma casta de qualidade foi criada nas universidades públicas e, especialmente, na pós-graduação. Que é, também, uma herança da ditadura.  

  5. Independente de buscar um
    Independente de buscar um culpado pela péssima qualidade da educação primária e secundária em boa parte do sistema público de ensino, a massificação e a inclusão dos mais pobres no ensino superior é um caminho sem volta. Direito adquirido não se tira mais.
    O Chile hoje está criando o ensino público superior e gratuito algo inimaginável há dez anos atrás a custa de aumento de impostos.
    Entendo também que valores individuais são forjados dentro de casa tanto para o bem quanto para o mal. Então a ambição sem destruir o próximo e atuando com decencia é algo que se adquire no seio familiar.
    Em um ambiente familiar todo deturpado e corrompido somente em uma escola de excelência poderá tirar esse jovem desse futuro nebuloso.
    E parabens pela discussão porque é dificil achar um espaço onde os comentàrios não acaba em agressões verbais e gratuitas.

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