Gambito da Rainha, uma declaração de amor ao xadrez, por Luis Nassif

O melhor do filme, além do desenho do personagem principal  -uma atriz marcante, Anya Taylor -, é o profundo respeito pela figura do jogador e a desvinculação do jogo da guerra fria dos anos 60.

Atenção: contém spoiler

O nome usual é Gambito da Dama. É uma das aberturas clássicas do xadrez. A série “O Gambito da Rainha”, da Netflix, série em 7 capítulos, é uma declaração de amor ao xadrez.

Conta a história de uma órfã que aprende a jogar xadrez no porão do orfanato, ensinado por um funcionário. Pelas datas, pelas características, parece se espelhar na vida de Roberto Fischer, o lendário enxadrista americano, menino prodígio, de vida complicada como nossa heroína, que tornou-se campeão mundial no início dos anos 70, vencendo o campeão russo Boris Spassky.

O Departamento de Estado transformou a disputa em mais um capítulo da guerra fria. Era o individualista americano vencendo os soviéticos em um campo amplamente dominado pelos russos, desde que o lendário Alexander Alekine conquistou a Copa do Mundo, vencendo o cubano José Raúl Capablanca. Depois, surgiu Mikhail Botvinik, responsável pela formação de uma brilhante geração de enxadristas russos que dominaram o cenário mundial até recentemente, com o breve interregno de Fischer.

Fischer venceu o campeonato e teve a maturidade de renunciar ao título antes de enfrentar a nova e brilhante geração russa que surgia, com Karpov e Kasparov.

A personagem principal é retratada como um fenômeno mirim, como foram próprio Fischer, o espanhol Arturo Pomar, o brasileiro Henrique Mecking. Pelo roteiro desfilam todas as grandes lendas do xadrez, mencionados respeitosamente, os gênios que nunca chegaram a campeão, como Samuel Reshevsky, os gênios do início do século, como Akiba Rubinstein, os campeões dos anos 50, como Mikhail Botvinnik, e as lendas integrais, como Alekhine, o polonês-argentino Miguel Najdorf. E, entre as cenas, aparecem os livros referenciais, a autobiografia de Capablanca, os livros clássicos de abertura, de final. Faltou o clássico live de aberturas de Vasily Smyslov, popularíssimo nos anos 60.

Compreensivelmente, não entram os que se formaram nos anos 60 e se tornariam lendas depois, como os russos Mikhail Thal, o maior gênio que fio campeão por apenas um ano, sendo derrotado por Botvinik na revanche, os campeões Petrossian e Spassky, Petrossian, o húngaro Portisch, o dinamarquês, Bent Larsen, o argentino Oscar Panno.

Tive a rara oportunidade de conhecer alguns deles, na cobertura do Interzonal de Petrópolis, prévia para a Copa do Mundo, que lançou Mequinho como grande estrela mundial. Conheci meu ídolo Paul Keres, um gênio do ataque, derrotado no campeonato mundial pelo jogo sólido e cuidadoso de Botvinik. E David Bronstein, outro russo com condições de ter se tornado campeão.

O melhor do filme, além do desenho do personagem principal  -uma atriz marcante, Anya Taylor -, é o profundo respeito pela figura do jogador e a desvinculação do jogo da guerra fria dos anos 60.

Quase sem exceção, são todos cavalheiros e que se tornam admiradores das pessoas que os derrotam. Um pouquinho idealizado, mas vale.

A cena magistral é a última. A campeã americana é convidada para um campeonato aberto em Moscou, na qual poderá enfrentar o campeão mundial – que a derrotou em duas partidas anteriores. Rejeita ajuda de uma igreja, que queria transformar o embate em luta religiosa contra o comunismo. Recorre à parte cultural do Departamento de Estado, para poder levar alguns jogadores como assistentes. Aliás, era famosa a cultura soviética de cercar cada campeão com um grupo de grandes mestres, incumbidos de aconselhá-lo no jogos suspensos. O Departamento de Estado recusa ajuda para levar os segundos, mas envia um agente de segurança obcecado pela guerra fria, para monitorá-la.

A campeã americana vence o torneio. Vence um veterano jogador que, segundo o roteiro, tinha vencido o próprio Alekhine quando era criança. E recebe um abraço emocionado do veterano, pela beleza do jogo.

Finalmente, enfrenta o campeão mundial. Rejeita um pedido de empate. Vai até o final e vence o russo. A reação do campeão foi entregar à moça seu rei – sinal de desistência – abraçá-la carinhosamente e puxar uma salva de palmas para ela. Na rua, multidões saudando, não a americana que veio desbancar seus campeões, mas a artista que esculpiu jogos emocionantes.

Na saída, o segurança a escolta até o carro, diz que o presidente americano a aguarda para um encontro na casa Branca, e lhe ordena que declare que sua vitória foi do individualismo americano contra a burocracia soviética.

Aí, a jovem enxadrista pede para parar o carro e sai andando pelas ruas. Vai dar em uma praça onde se juntam dezenas de idosos jogando xadrez. É reconhecida, aplaudida. Senta-se em uma das mesas, com um tabuleiro à frente, e diz a um dos fãs:

– Vamos jogar.

Luis Nassif

11 Comentários

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  1. Como um simples admirador do xadrez, tendo participado de um torneio regional de trabalhadores das empresas de comunicação nos anos 1970, gostei bastante da série.

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