As deficiências do SUS

Do Valor

Falta de verba e falhas de gestão põem SUS em xeque

Mauro Zanatta, de Brasília
04/05/2010

O sistema brasileiro de saúde está longe dos melhores parâmetros internacionais, tem registrado lenta evolução nos principais indicadores nas últimas duas décadas e, mesmo dispondo de muitos recursos financeiros, ainda padece de graves fragilidades e desequilíbrios. O modelo do Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição de 1988, está em xeque. Revolucionário em sua origem, está hoje limitado pela rigidez das normas, cobertura deficiente e problemas sérios de gestão.

A ênfase na expansão do sistema privado de saúde, aliada a falhas operacionais do SUS e aos evidentes gargalos de gestão, ainda demandam fontes novas de recursos, maior regulação pelo Estado, controles mais sofisticados sobre a qualidade do gasto e firme combate à corrupção.

Mesmo com a elevação da despesa federal em saúde, que saltou de R$ 42,4 Nos 13 anos entre 1995 e 2007, a relação do gasto federal recuou de 1,79% para 1,70%. A despesa per capita em dólar (paridade do poder de compra), deixa o Brasil atrás dos vizinhos Chile, Uruguai, Argentina e Colômbia. E muito longe de países europeus e até dos Estados Unidos, onde a saúde pública universal, integral e gratuita é restrita a uma parcela da população.

As discussões sobre saúde serão ainda mais relevantes e centrais ao longo da campanha presidencial. O candidato que está à frente nas pesquisas de intenção de voto, José Serra (PSDB), foi ministro da Saúde bem avaliado durante o governo Fernando Henrique Cardoso. A saúde, no governo Lula, é uma política pública mal avaliada, e a candidata situacionista, Dilma Rousseff (PT), tem anunciado intenção de debruçar-se sobre esse problema para corrigir as lacunas.

O governo – tanto o presidente Lula quanto os ministros do Planejamento e da Saúde – insistem que o problema existe porque a oposição derrubou a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que tinha apenas parte de sua arrecadação direcionada para o setor e é uma ausência recente: “No fim de 2007, tentando prejudicar o governo, os adversários eliminaram o imposto e atingiram, na verdade, a saúde da população”, disse Lula no início de abril deste ano. A oposição atribui os problemas à má gestão e mostra que a CPMF não estava sendo aplicada em saúde e a arrecadação de tributos cresceu depois do fim do imposto sobre o cheque. “A saúde é um buraco, uma herança maldita de Lula”, diz o líder do DEM na Câmara, Paulo Bornhausen (SC). “Ele tem refluxo de CPMF. Quando se aperta, culpa a oposição.”

Especialistas em saúde apontam não apenas falta de dinheiro no SUS, mas problemas de gestão no setor e defeitos do modelo. “Além do tamanho relativamente menor do PIB, a saúde fica com um percentual pequeno desse PIB”, diz o médico e consultor em saúde Gilson Carvalho. Ele avalia que os R$ 112 bilhões de recursos públicos na saúde deveriam ser R$ 295 bilhões se fosse usado o mesmo critério de PIB per capita dos planos privados. “O gasto público em saúde como percentual do PIB é um dos mais baixos da América Latina. E, com esse nível agudo de subfinanciamento, o SUS não consegue oferecer atendimento universal com um mínimo de qualidade”, resume Jarbas Barbosa, gerente de Vigilância em Saúde da Organização Pan-americana de Saúde (Opas) e ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde.

De 2000 a 2008, o gasto público por habitante passou de R$ 346 para R$ 559 – um crescimento real de 61% no período, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ainda assim, está bem atrás de Uruguai, Colômbia, Argentina, Europa e EUA. “É óbvio que precisa mais gestão. Dá para fazer mais com os recursos que existem, mas isso será absolutamente insuficiente para o modelo de SUS que temos hoje”, afirma o presidente da Frente Parlamentar da Saúde, deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS).

Apontado como principal entrave ao avanço do SUS, o fim da CPMF não levou ao colapso o financiamento da saúde. Na verdade, foi a maior derrota política de Lula no Congresso. Mas bem pior que o fim da CPMF foi a crise de 1993, quando o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) emprestou dinheiro ao setor. E mais grave que a extinção do imposto foi a falta de empenho do governo Lula para mudar as regras do financiamento da saúde, limitar os “dribles” aplicados por Estados e municípios no SUS e ampliar o orçamento do setor sem a criação de impostos.

A Emenda Constitucional nº 29, que aguarda regulamentação desde 2000 no Legislativo, poderia ter agregado até R$ 15 bilhões anuais ao orçamento do Ministério da Saúde sem a necessidade de uma nova CPMF. Mas o projeto do Senado, que vinculava 10% da receita corrente bruta ao custeio da saúde, acabou derrotado. A resistência mais forte veio da equipe econômica do governo, cujo objetivo principal é criar um novo tributo, a Contribuição Social para a Saúde (CSS). O lobby da bancada parlamentar da saúde, onde a rede hospitalar tem influência, que podia resistir contra o aumento de impostos, aceitou o jogo do governo em troca de reajustes da tabela de procedimentos do SUS.

Um estudo inédito do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a extinção da CPMF foi compensada em boa medida pela “emenda 29”, que garantiu um “colchão” de estabilidade e mais dinheiro ao SUS ao fixar aportes mínimos de recursos de União, Estados e municípios. E isso ajudou a aliviar muito o caixa do governo federal.

De 2000 a 2008, a União reduziu de 60% para 46% sua fatia no financiamento da saúde. Os Estados elevaram de 18,5% para 24,5% sua participação no bolo e os municípios, de 22% para 30%.

A “emenda 29” resultou em um aporte adicional de R$ 34 bilhões ao SUS, que, somado a outros R$ 13 bilhões da União, levou o orçamento do setor a um crescimento de 80% em termos reais desde 2000. “Na verdade, a CPMF só trouxe recursos novos à saúde a partir de 2004, e não desde o início, em 1997”, diz o especialista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Sérgio Piola. A CPMF, afirma ele, apenas substituiu contribuições sociais como CSLL e Cofins. A partir de 1999, a contribuição foi desfigurada ao ceder parte da arrecadação à Previdência e ao fundo de pobreza, ficando com somente 0,2% dos 0,38% originais.

Mas, mesmo beneficiado pela “emenda 29”, o atual modelo do SUS tem sido limitado pela sobrecarga às finanças estaduais e municipais, cujos graves problemas para cumprir os percentuais mínimos exigidos em lei têm levado os gestores a “driblar” a Constituição. “Quem tem pago essa conta da saúde até aqui é o município”, defende o consultor Gilson Carvalho. A lei obriga os municípios a aplicar 15% no setor. “Mas eles já estão bem acima disso desde 2002”, diz. De outro lado, 16 Estados deixaram de aplicar o mínimo de 12% na saúde em 2007 – uma conta de R$ 3,7 bilhões. Além disso, sem a “emenda 29” não há definição sobre o que são “ações de saúde”, o que deixa a porta aberta para computar despesas de saneamento, merenda, estradas e previdência de servidores públicos como gasto de saúde. O Ipea calcula em R$ 12 bilhões a conta desses “dribles” no período 2004-2007.

O governo reconhece o problema e, para resolvê-lo, prega a mudança do modelo do SUS. A secretária-executiva do Ministério da Saúde, Márcia Bassit, calcula “perdas” de R$ 24 bilhões sem a CPMF e diz que a variação negativa do PIB em 2009 dará prejuízo de R$ 1 bilhão ao setor. A alternativa, defende, é adotar um novo modelo baseado em fundações públicas de direito privado. “A gestão mais qualificada exige outro modelo. Há normas e regulamentos em excesso”, diz. Ela defende a gestão do ministro José Gomes Temporão, mas admite “desafios” na ampliação da rede de atenção básica e redução no tempo de espera por consultas especializadas, exames e internações. “Temos um claro subfinanciamento. E talvez isso seja mais grave do que a gestão.”

Mas os especialistas em orçamento e planejamento insistem nos problemas da gestão. “O ‘PAC da saúde’ está parado”, lembra o consultor legislativo Luiz Carlos Romero. Batizado como “Mais Saúde”, o programa previa R$ 90 bilhões de investimentos até 2011. “Inviabilizaram o PAC da Saúde”, disse Lula ao culpar novamente o fim da CPMF. Mas Márcia Bassit rejeita a paralisia. E cita investimentos de R$ 1 bilhão em obras, equipamentos e nos programas de unidades básicas (PSF), pronto atendimento (UPAs) e urgência (Samu). “Essa é a marca do ministro Temporão: cuidado com a gestão e direcionamento para saúde da família e atenção básica. Hoje, a cobertura já chega a 73,5% do país.”

Mesmo assim, o principal obstáculo ao SUS continua sendo a falta de alternativas de financiamento, inclusive dentro da emperrada reforma tributária. O setor privado tem crescido rapidamente nesse rastro e já responde por 60% dos gastos em saúde. “A estrutura do gasto foi herdada do modelo prévio ao SUS, no qual o papel do Estado havia sido promover a expansão do setor privado”, diz Maria Alícia Ugá, da Fundação Osvaldo Cruz.

Outra distorção é o aumento dos subsídios federais a planos e seguros privados, o que beneficia apenas a parte da população mais rica. O Ministério da Fazenda estima renúncia fiscal de R$ 8,7 bilhões com saúde em 2008. “Caminhamos para uma privatização em grande escala”, avalia o consultor Luiz Carlos Romero.

O desafio da “privatização” da saúde tende a piorar com a velocidade das mudanças demográficas e o rápido aumento da idade média do brasileiro, o que obrigará as famílias a gastar ainda mais com saúde. Na média, cada família gasta hoje 5,3% da renda com saúde, diz o IBGE. Os mais pobres, porém, já gastam 7% – 80% disso com despesas ligadas a medicamentos. A fatia dos remédios no total dos gastos públicos cresceu de 4,3% para 9% entre 1995 e 2007. O governo paga hoje 95% do custo dos medicamentos para 1,2 milhão de pessoas, fomentando 9,8 mil farmácias país afora, mas isso só aumenta a distorção. bilhões para R$ 58,3 bilhões no período 1995-2009, o Brasil ainda exibe um baixo gasto público como proporção do Produto Interno Bruto (PIB). Se considerado o sistema público em geral, estudos mostram que as aplicações chegam a R$ 112 bilhões.

Luis Nassif

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