ESPECIAL CAPS: A experiência de São Bernardo do Campo

ESPECIAL CAPS – parte IV – A experiência de São Bernardo do Campo com a saúde mental

Em entrevista, Arthur Chioro, secretário de Saúde do município, conta como está sendo estruturada a rede de saúde mental e como São Bernardo se tornou referência no país

Por Bruno de Pierro, no Brasilianas.org
Da Agência Dinheiro Vivo

A cidade de São Bernardo do Campo, na região da Grande São Paulo, encontra-se em fase avançada de construção da rede de atendimento para a saúde mental. Provas disso são a inauguração de mais uma República Terapêutica, a conclusão de mais dois Centros de Atenção Psicossocial este ano, e a aprovação para a construção de mais dois, em 2013. No total, serão cinco CAPS funcionando em todas as regiões do município, para atender à demanda dos cerca de 4.500 pacientes. A pressa se explica: para que o único hospital psiquiátrico que existe em São Bernardo seja desativado de vez, ainda é preciso fechar 120 dos 380 leitos do prédio. Fora isso, ainda há a chegada de pessoas que fugiram da Cracolândia, região central de São Paulo, depois que a ação de repressão foi instalada no começo de janeiro.

“Não vamos permitir uma nova Cracolândia aqui”, afirma Arthur Chioro, atual secretário de Saúde do município. Segundo ele, as vias contra a territorialização das drogas não são no sentido da repressão, mas do reforço de uma rede integrada capaz de abrir as portas do atendimento para o usuário.

Doutor em Ciências da Saúde pela Unifesp, Chioro foi secretário de Saúde de São Vicente, diretor do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde e consultor da Organização Pan-Americana de Saúde. Ao Brasilianas.org, Chioro falou sobre o atual estágio da reforma psiquiátrica em São Bernardo, cujas políticas para saúde mental se tornaram referência no país.


A rede de saúde mental

A rede de saúde mental de São Bernardo, conta o secretário, parte do pressuposto de que todos os serviços tem um papel na saúde mental. O começo foi promover a descentralização do atendimento de saúde mental para a rede básica da Saúde da Família e para as Unidades Básicas de Saúde (UBS). “Os agentes comunitários de saúde tem seu papel, e nós temos equipes de saúde mental em dez UBS, compostas por psicólogos, que cobrem territórios que abrangem mais do que uma unidade básica, dando uma apoio matricial para as equipes de Saúde da Família”, explica. Assim, os transtornos psiquiátricos leves, inclusive de dependência química, são tratados de forma descentralizada.

Exemplo prático da importância do atendimento básico é o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU, que também atende a emergências psiquiátricas. Quando alguém tem um surto psicótico grave, ou é pego usando drogas, a polícia pode até ser acionada, para a contenção, mas em seguida é o SAMU que assume o comando.

Um pronto-socorro psiquiátrico, dentro de um hospital-geral, é mantido 24h, ao lado de uma das unidades do CAPS. Isso porque boa parte das emergências psiquiátricas, principalmente ligadas a álcool e drogas, são síndromes clínicas, como de abstinência, e que precisam do manejo clínico.

Existe uma rede de CAPS em formação. Em 2010, foi inaugurado um CAPS III; dois CAPS-Álcool e Drogas (ad), um para adultos e outro infanto-juvenil. Nos próximos 60 dias, será inaugurado mais um CAPS-ad e, até o final do ano, mais dois serão lançados. No final de 2009, foi aberto também um CAPSi (infanto-juvenil), devido à demanda de crianças com transtornos psiquiátricos graves, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação.

Todos os CAPS são descentralizados, e essa descentralização é baseada numa regionalização e um mapeamento que levou em conta vários critérios. Primeiro, a origem dos pacientes que estavam no primeiro CAPS; origem dos pacientes que tinham histórico de internação psiquiátrica; e, por último, a demanda de atendimento psiquiátrico nos prontos-socorros e na rede básica. Com base nessa demanda regionalizada, foi definido onde seria colocado o psiquiatra, a atenção básica e os CAPS.

Contudo, Chioro destaca a necessidade dos leitos de internação. “Tem paciente que vai precisar ficar internado durante um período curto, por conta de uma síndrome de abstinência pesada, o que exige uma retaguarda clínica, pois ele pode ter uma outra enfermidade”. Para isso, será inaugurado em junho um hospital que contará com 20 leitos para desintoxicação. As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) também contam com leitos especializados e dão retaguarda no primeiro atendimento.

Outro dispositivo da rede é o Consultório de Rua, formado por equipes da Saúde da Família e baseado na redução de danos, fundamental para o primeiro contato com os usuários de drogas que estão na rua.

Etapas da desinstitucionalização

A abertura de quatro Residências Terapêuticas foi uma das primeiras ações da atual gestão para desativar leitos psiquiátricos. A principal diferenças entre Repúblicas Terapêuticas e Residências Terapêuticas é que as residências são voltadas para moradores que estavam internados em hospitais psiquiátricos, e que tinham condição de ter alta, mas não tiveram porque não tinham para aonde ir. Desde 2003, o programa De Volta para Casa, do governo federal, concede uma bolsa para o paciente e a prefeitura monta a residência para eles. Já a república é um serviço residencial transitório, servindo como um espaço de moradia para a pessoa que está em tratamento no CAPS.

Em setembro de 2010, foi inaugurada a primeira República Terapêutica. “Trata-se de uma casa, que tem a figura do cuidador, em nossa equipe, e que abriga, na maioria dos casos, jovens. Por conta do uso de drogas e a ruptura com laços familiares, eles estavam sendo encaminhados para Comunidades Terapêuticas – que geralmente são clínicas privadas e com as quais o governo não tem parcerias; hoje são 14 em São Bernardo – ou estavam na rua, por falta de um lugar para ficar. É uma residência transitória”, pontua Chioro.

Porém, a porta de entrada paras as repúblicas continua sendo o CAPS. No último dia 25, foi inaugurada mais uma república, dedicada a adultos em tratamento para álcool e drogas.

“A expectativa é que no total sejam cinco repúblicas, cada uma delas com aproximadamente 14 vagas. O foco das repúblicas, portanto é a pessoa que perdeu laços familiares”, completa Chioro, ao explicar que são três os pilares desse modelo: saúde, moradia e geração de renda. O foco está na articulação de diversas políticas das secretarias municipais, envolvendo educação, trabalho e produção de renda.

A principal diferença entre o CAPS III e a República Terapêutica é que o primeiro tem o foco no atendimento da saúde mental, enquanto que o segundo transcende o âmbito da saúde, e investe na ressocialização. “É um projeto terapêutico singular, que não se restringe a um projeto de cuidados médicos apenas. É algo maior, um projeto de vida. Não que o CAPS III não faça isso, mas com a república a pessoa tem a moradia”, ressalta.

A idéia é que a pessoa fique no máximo por seis meses, e, a partir do momento que começa a gerar renda, ela se automizar, pode voltar para a família ou construir uma nova, ou montar um negócio. Apesar disso, não há prazos: se a pessoa precisa ficar por mais tempo, ela fica. Nesses locais, os mais jovens são expostos a aulas de capoeira, aprendem a usar o computador, há aulas de educação física. As repúblicas de São Bernardo tem sido referência para outros municípios, como Recife, e são vistas com bons olhos pelo Ministério da Saúde.

Para a montagem da República Terapêutica de adultos, o Ministério da Saúde repassou R$ 70 mil e continuará encaminhando R$ 25 mil por mês para custeio. A República infanto-juvenil receberá R$ 30 mil por mês do governo federal.

Integração e multidisciplinaridade

O direcionamento para o CAPS nunca é fácil, revela Chioro. Normalmente, quando o jovem vinha da Fundação Criança ou da assistência social, por meio da Secretaria de Defesa Social e Cidadania (SDSC), eles não eram trabalhados. Mas depois que o Consultório de Rua foi implantado, a equipe da saúde e a equipe da assistência social passaram a afinar o trabalho em conjunto.

“Quando não há integração, a Guarda Civil, a SDSC e a Secretaria de Saúde executam ações para o mesmo universo de pessoas, mas se não tomar cuidado, cada um pega um pedaço e, no fim, ninguém pega nada”, afirma o secretário. O albergue que existe no centro da cidade também é uma referência, pois é uma possibilidade de oferta.

Outro ponto importante foi a criação do Conselho Municipal de Prevenção e Controle de Álcool e Droga (COMAD), um espaço para articular as instituições, inclusive Polícia Militar, Polícia Civil, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e a representação da sociedade civil. Essa integração também atinge grupos como o Álcoolicos Anônimos (AA) e o Narcóticos Anônimos (NA), que colaboram atuando nos CAPS-ad, assim como algumas igrejas que tem trabalho social.

Foi também criada uma fundação estatal, chamada Fundação do ABC, responsável pela seleção de funcionários públicos para a saúde mental e pela administração dos CAPS e UPAs.

Relação com municípios vizinhos

Na região do ABC, Grande São Paulo, ainda existe um hospital psiquiátrico, que é privado e está em processo de fechamento, localizado em São Bernardo. Dos 380 leitos, ainda restam 120 para serem desativados, o que deve ocorrer quando todos os CAPS da cidade estiverem prontos, em 2013. Com os portões do hospital psiquiátrico fechados, municípios vizinhos, como Santo André, São Caetano, Mauá e Diadema, serão forçados a investirem mais na construção e aprimoramento de CAPS, uma vez que muitos de seus pacientes migram para São Bernardo à procura de internação, explica Chioro.

Em relação à desativação do hospital psiquiátrico e a migração dos recursos de leitos para o novo modelo, a gestão se baseia na Programação Pactuada e Integrada (PPI), que define quanto do recurso que está no município é para atender a população do município e quanto é para atender a população referenciada, ou seja, que vem de outras cidades. No DATASUS, é possível ver essa relação entre duas cidades, por exemplo São Bernardo e São Caetano. Lá há quanto o Ministério da Saúde transfere para São Bernardo atender a população própria dele, e quanto recebe para atender a população de outros municípios. inclusive há especificações, de quanto é destinado para internação psiquiátrica, quanto para cirurgia cardíaca, cirurgia de urgência, tomografia etc.

Embate com a sociedade psiquiátrica

Segundo o secretário Chioro, não há embates entre a comunidade psiquiátrica e os gestores dos CAPS. Houve um pouco de dificuldade em 2009, com a mudança de orientação, pois os antigos ambulatórios atendiam de pacientes graves a leves, sendo que a lógica era de separar aqueles que precisam de internação e encaminhar para o manicômio.

Com diálogo, o departamento de psiquiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC passou a encaminhar seus residentes para os CAPS. “Não há lado do bem e do mal, há um consenso, na sociedade civilizada, de que não é mais possível tratar as pessoas com exclusão, muito embora tenham alguns gestores que não perceberam isso ainda”, conclui.

Leia também:

ESPECIAL CAPS – parte I: A reforma psiquiátrica e a consolidação dos CAPS

ESPECIAL CAPS – parte II – Integração com o SUS

ESPECIAL CAPS – parte III – A experiência do CAPS-Álcool e Drogas em Embu das Artes

“CAPS desestruturou alta complexidade na saúde mental”, diz psiquiatra



Luis Nassif

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