O transporte público e o financiamento de campanha

Por Danilo Rocha Limoeiro

Comentário ao post “O Senhor Crise abre a caixa preta dos ônibus

Segue um texto sobre o assunto que eu e um grupo de amigos preparamos. Aqui tentamos explicar a lógica política por trás da péssima qualidade dos serviços dos concessionários (transporte público e outros) e como ela se relaciona com o atual modelo de financiamento de campanha. Há também algumas propostas para resolver o assunto.

Do Instituto Alvorada

Transportes públicos e outras concessões – os parasitas invisíveis e o financiamento de campanha.

A origem da Revolta do Vinagre foi o aumento de R$ 0,20 da passagem de ônibus na cidade de São Paulo. A razão da qualidade revoltante dos transportes públicos nas cidades brasileiras é que eles são prestados dentro de uma lógica perversa, em que governantes locais e empresários se coadunam em detrimento dos usuários.

O transporte coletivo é uma concessão pública, ou seja, um contrato entre uma prefeitura e algumas empresas, em que a primeira define o preço e (em tese) exige padrões de qualidade, e a segunda executa o serviço. Ao definir e reajustar o preço, a prefeitura deve levar em conta os custos e receitas da empresa, de modo que o empresário ainda ganhe algum lucro com o serviço que presta. Ou seja, o preço do coletivo não é igual ao preço do tomate, definido pela relação entre as pessoas que compram e as que vendem. Ele é determinado pelo poder público.

No entanto, alguns elementos corrompem essa relação entre empresários, poder público e usuário. O primeiro é que para o empresário é muito fácil fraudar as contas da  sua empresa, inflando os custos de suas operações. O link a seguir apresenta um post publicado no blog do Nassif, que apresenta didaticamente como as empresas fraudam suas contas: http://www.advivo.com.br/node/1409229 .

O texto é de um ex-funcionário de um banco que fazia a análise de crédito dessas empresas. Como na contabilidade oficial a empresa só tomava prejuízo, e por isso não poderia acessar crédito no banco, o ex-bancário teve que entender sua contabilidade real. Por este motivo, ele descobriu que as empresas, por exemplo, transferem partes de seu patrimônio (terrenos de garagens ou mesmo a frota de ônibus) para laranjas ou para o patrimônio pessoal do dono da empresa. A empresa paga aluguel por esses bens, que entram na sua contabilidade como despesas. No entanto, é o próprio dono da empresa que recebe esses alugueis, mas na contabilidade oficial isso entra como despesa da empresa, diminuindo parte dos lucros oficiais. É por isso que o lucro da empresa é mantido sempre baixo, mas o dono da empresa continua faturando alto com os alugueis que ele paga para ele mesmo.

Esta explicação demonstra que o prefeito Haddad e o Governador Alckim cometeram um erro ao não se colocarem prontos para revisar a contabilidade das empresas de transporte público. A conta da revogação do aumento de tarifas não precisaria necessariamente ser feita em detrimento dos investimentos em outras áreas, como propuseram. É um erro dizer que a margem de lucro dessas empresas é muito baixa antes de abrir a caixa preta de sua contabilidade por meio de uma auditoria. Os indícios de fraude contábil são grandes. Aliás, não fosse por isso, como empresários, donos de empresas que oficialmente rodam no prejuízo, poderiam movimentar milhões? A Folha de São Paulo também chama atenção para este ponto ao relatar as diligências feitas pelo Ministério Público, como pode ser visto aqui: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/mp-investiga-desvios-de-recursos-em-empresas-de-onibus-de-sp

E, se é assim, por que essa classe de empresários consegue se manter como concessionários de serviços que achincalham os usuários e com a conivência do poder público? Afinal, se é o usuário do transporte coletivo quem elege o prefeito, por que os prefeitos preferem se aliar aos empresários em detrimento dos eleitores? De onde vem todo esse ‘poder de convencimento’ que esses empresários exercem sobre os governantes locais?

A resposta é simples: financiamento de campanha. Para se eleger, os prefeitos e vereadores precisam do voto daqueles que usam ônibus, mas também precisam, acima de tudo, de dinheiro para financiar os altos custos de sua campanha. Por isso, prefeitos e vereadores preferem ganhar a preferência do eleitorado de outras formas, de modo que não precisem enfrentar os interesses das empresas de transporte público e continuar recebendo suas doações. Governantes locais e empresários se aliam em detrimento da parte menos organizada da relação: o eleitor-usuário.

Essa lógica perversa acontece em vários outros setores em que serviços públicos são executados por empresas que recebem concessões estatais. Essas empresas não precisam enfrentar concorrência de ninguém e tem o preço de seus serviços determinados por agentes públicos com os quais mantêm uma relação de dependência mútua (a empresa precisa de regulação conivente para lucrar e o agente público precisa do dinheiro dessas empresas para se eleger). Essas relações impactam a conta de água e luz, o pedágio, serviços portuários, etc.

Geralmente a fúria do povo é direcionada contra o governante, pois ele é a face pública dessa relação perversa. Mas não podemos nos esquecer do empresário que se beneficia delas. Esses grupos empresariais são verdadeiros parasitas invisíveis que se beneficiam das brechas do sistema político, como a possibilidade de financiar, mesmo que indiretamente, campanhas de todos os candidatos, cooptando para sua agenda quem quer que seja eleito.

Devemos quebrar sem piedade a posição confortável desses grupos empresariais. E os governantes atuais não podem se omitir em enfrentar seus interesses. É importante ressaltar que o governo Dilma deu passos importantes ao quebrar a posição de conforto de empresários de alguns setores, como o elétrico e o portuário. Não foi à toa que essas medidas, como a MP dos Portos, geraram discussões extremamente acaloradas e requereram usar um capital político enorme para sua aprovação. Quando ameaçados, esses grupos usam todos os artifícios possíveis e imagináveis para manter sua posição, pois para eles existe muito em jogo.

É o que o cientista político americano Mancur Olson chama de lógica de ação coletiva: grupos pequenos e bem organizados, mas com muita coisa em jogo, tendem a vencer disputas políticas contra grupos maiores, pois estes últimos tendem a ser menos organizados e o que está em disputa tem um efeito menor em cada um dos indivíduos que compõe o grupo maior. Ou seja, se para milhares não vale a pena se mobilizar por conta de poucos centavos na conta de luz ou na tarifa de ônibus, para alguns poucos empresários do ramo de transporte, os poucos centavos se transformam em milhões. E como eles são poucos, é mais fácil se organizar. Na verdade, as manifestações do Movimento Passe Livre constituem um belo exemplo de que a lógica de ação coletiva de Olson pode ser quebrada.

No entanto, são raras as ocasiões em que a quebra desta lógica acontece. Por isso devemos atacar a espinha dorsal da dinâmica que faz com que governantes traiam o interesse da maioria de seus eleitores em nome do lucro de uma classe empresarial: o financiamento de campanha.

O Instituto Alvorada tem reflexões e propostas sobre o tema desde antes da Revolta do Vinagre. Em 2009, propusemos um modelo de reforma política para o Brasil. Um dos principais elementos de nossa proposta é o fortalecimento do financiamento público de campanha. Os principais pontos de nossa proposta seguem abaixo:

 

A)    Possibilidade de doações apenas por pessoas físicas. Doações individuais limitadas a dez salários-mínimos por doador, inclusive quando o doador for o próprio candidato.

B)    Proibição de doações de funcionários ou dirigentes de entidades que possam auferir diretamente ganhos financeiros de suas relações com o governo, tais quais permissionários ou concessionários de serviços públicos.

C)    Financiamento público exclusivo aos partidos políticos em campanhas majoritárias e proporcionais. O montante do financiamento público seria repartido entre os partidos segundo representatividade. Fica vedada a aplicação de recursos partidários em campanhas individuais a eleições proporcionais.

D)    Os tribunais eleitorais estipularão um limite para os gastos da campanha do partido político, dos candidatos das eleições majoritárias e das proporcionais.

E)    Propomos que o tempo de rádio e de TV sejam divididos em metades iguais, sendo 50% a ser utilizado pelos partidos e 50% pelos candidatos para as suas campanhas individuais, de modo a compatibilizar o tempo de propaganda eleitoral com o nosso modelo de votação,

F)    Com vistas a incrementar a transparência do modelo de prestação de contas, sugerimos que a sua divulgação na internet seja feita semanalmente.

Acreditamos que essas propostas sejam um importante ponto de partida para o debate. Acreditamos que o fortalecimento do financiamento público vai coibir a capacidade que o poder econômico tem de se transformar em poder político. Com isso, os governantes eleitos pelo povo serão mais independentes dos parasitas invisíveis e poderão governar em benefício daqueles que o elegeram.

Na verdade, existem outras razões para apoiarmos o financiamento público de campanha. Mas aqui nos restringiremos a esclarecer a importância dessa mudança específica com as insatisfações manifestadas na Revolta do Vinagre. O documento completo com mais argumentos sobre esse tema pode ser encontrado no link abaixo:

http://institutoalvorada.org/reforma-politica-uma-alternativa-ao-debate/

Acreditamos que a luta promovida pelo MPL é de extrema importância e deve ser continuada. O Movimento conseguiu não só reduzir as tarifas, mas também retirar o país da inércia cívica e fazer com que as ruas e o mundo virtual fossem espaços de intensa disputa política. Agora é hora de irmos além do preço das tarifas e atacarmos as estruturas institucionais que estão na raiz da insatisfação que provocou a revolta. O financiamento público de campanha, como um dos elementos da reforma política, é um grande começo.

Luis Nassif

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