A NSA e o mito da onipotência

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

A crise na Ucrânia e o escândalo desencadeado por Snowden se desenvolvem de maneira absolutamente paralela. Ambas se intensificaram bastante nos últimos dias, mas a imprensa trata os dois assuntos como se eles pertencessem a diferentes fronts. Ainda não perceberam que as duas coisas podem estar ligadas. E para demonstrar isto só precisamos recorrer à lógica.

Desde os tempos da Guerra Fria, a NSA monitorava as ameaças externas aos EUA, reais ou potenciais, dando especial atenção aos russos e chineses. Os norte-coreanos, iranianos, iraquianos e cubanos também estavam sob o foco de atenção daquela agência de inteligência. A crise desencadeada por Snowden não diz respeito ao tradicional trabalho de coleta de inteligência feito pela NSA, mas ao desvirtuamento dos objetivos da mesma para incluir no cardápio da agência a coleta massiva de informações telefônicas de norte-americanos, bem como o armazenamento de dados das atividades on line de bilhões de pessoas que acessam diariamente a internet usando provedores, programas, websites e ferramentas de busca “made in USA”

Devemos supor que mesmo durante a realização deste ambicioso programa de espionagem massiva, a NSA não deixou de cumprir sua missão original, qual seja: vigiar os países que representem uma ameaça para EUA (Rússia e China). O aumento de atividades norte-americanas na Ucrânia que levou à derrubada do governo pró-russo nos obriga a suspeitar que a NSA vinha fuçando ou tentando fuçar os computadores de políticos e militares russos. Nada vazou sobre este assunto sensível, mas algumas suposições podem ser feitas.

A primeira hipótese é de que com base em informações coletadas, a NSA tenha tido conhecimento prévio de que Rússia enviaria tropas para a Crimeia se o governo de Kiev caísse. Este fato, aliás, era bastante previsível já que a população da região fala russo e mantém ligações culturais com a “mãe Rússia”. Outra hipótese provável é que a NSA não tenha conseguido furar os sistemas de segurança adotados pelos especialistas em TI a serviço dos governantes e militares russos, deixando a Casa Branca sem estimativas confiáveis sobre a linha de ação russa em caso de reviravoltas em Kiev. 

Nos dois casos evidencia-se a fragilidade da NSA. É fato: os norte-americanos viram impotentes os russos deslocarem em boa ordem e com eficiência suas tropas para dentro da Crimeia. Portanto, caso a NSA tenha furtado informações sigilosas sobre a invasão da Crimeia, o governo dos EUA não pode utilizá-las para impedir a ousada ação decidida pelo Kremlin. Caso não tenha obtido nenhuma informação prévia dos planos russos, evidencia-se a ineficácia da NSA não se justificando o custo que ela representa para os contribuintes norte-americanos. 

A argumentação lógica, porém, deve ceder espaço a um fato curioso. No mesmo dia em que os helicópteros russos começaram a atravessar a fronteira em direção a Crimeia vários vídeos feitos por amadores começaram a pipocar na internet. Com tanta informação fornecida gratuitamente e em tempo real por ucranianos qual seria a necessidade dos EUA gastar bilhões de dólares para manter a NSA?  Informações compradas ou roubadas de um governo estrangeiros nem sempre são confiáveis. E neste caso em particular, qualquer informação ou desinformação prévia foi superada em razão da ampla circulação gratuita de informações prestadas pelas pessoas que estavam in loco durante a operação militar russa.

Os impérios sobrevivem em razão de seus mitos. O caso do império português não foi diferente. Antes da Revolução dos Cravos a DGS (que se chamava PIDE até 1969), a odiada e temida polícia secreta do regime salazarista, era considerada onipresente e onipotente. Suas redes de informantes cobriam toda metrópole e território ultra-marino. Os métodos que a DGS utilizava para investigar suspeitos de crimes políticos incluíam as costumeiras invasões sorrateiras de domicílios, infiltração de agentes em sindicatos, empresas e associações civis, violação de correspondência, escutas telefônicas, torturas, etc… Os agentes da DGS só não utilizavam computadores pessoais, internet e programas sorrateiros porque nada disto existia naquela época.

Apesar de toda sua estrutura e organização a DGS, entretanto, não foi capaz de prever e impedir a ação dos militares portugueses antes da Revolução dos Cravos. Nem tampouco foi capaz de impedir o sucesso do movimento, que no mesmo dia passou a contar com amplo apoio popular. Cercados na sua sede, uns poucos agentes da DGS tentaram inutilmente resistir e foram rapidamente derrotados com pouquíssimas baixas. A verdade é que apesar de ostentar sua onipresença e onipotência a DGS era incapaz de mensurar sua própria fragilidade. O mesmo ocorreu com a NSA, que teve informações secretas e ultra-secretas roubadas por um agente e vazadas amplamente na imprensa.

Após me estudar durante algum tempo a Revolução dos Cravos publiquei, em 24/03/2009 – portanto, muito antes da explosão do escândalo Snowden  – um texto bastante provocativo no Observatório da Imprensa. Tomo a liberdade de reproduzí-lo aqui:

“Semana passada imprensa noticiou com grande destaque que Obama, presidente dos EUA, anunciou a redução do déficit público. Os jornalistas não perceberam, entretanto, que Obama oscila entre salvar os EUA e preservar o império, duas coisas incompatíveis.

Penso que os jornalistas (e os americanos também) deveriam estudar um pouco mais a história recente de Portugal (ver aqui). Enquanto tentaram manter o império, os portugueses afundaram política e economicamente.

Serão espertos?

Quando perceberam que o império era incompatível com a nova realidade portuguesa, nossos pequeninos irmãos europeus se livraram das despesas militares para preservar um império roto e passaram a ter uma maior qualidade de vida em casa. A decisão tomada pela Revolução dos Cravos se mostrou tão acertada que, duas décadas depois, os portugueses deixaram de emigrar para o Brasil (agora são os brasileiros que emigram para Portugal).

A solução para os EUA é apenas uma: fechar as mais de 600 bases militares e reduzir a 1/20 as despesas com os contratos de fornecimento das fábricas de armamentos.

Cabe aos jornalistas investigar se os americanos serão tão espertos quanto os portugueses.”

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/uma_revolucao_dos_cravos_nos_eua

Meu texto passou despercebido e apenas duas pessoas postaram comentário no O.I. . Para falar a verdade eu mesmo o havia esquecido até que topar hoje com esta notícia: http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2014-03-11/senadora-dos-eua-acusa-cia-de-hackear-investigacao-do-congresso.html

Por força do hábito comecei a divagar sobre a suposta onipresença e onipotência da NSA e fui expandido minhas cogitações até a eventual ação da agência antes da invasão da Crimeia pelos russos. Foi então que um estalo me fez comparar as desventuras da DGS com a situação atual da NSA. E isto me fez lembrar daquele pequeno texto publicado no Observatório da Imprensa.

As contradições do império português e a fragilidade da DGS afloraram durante a Guerra Colonial africana que esgotou Portugal humana e economicamente. Os políticos portugueses que comandavam o império não perceberam que o mundo sob seus pés havia ruído. E o massivo apoio popular ao movimento dos capitãs do MFA apenas consolidou um fato que já estava consumado: o império português chegara ao fim. 

As contradições do império norte-americano e a fragilidade da NSA afloram exatamente neste momento em que os EUA estão mergulhados numa crise econômica mal resolvida, atolados em campanhas militares que produzem benefícios duvidosos e preparando-se para a guerra temerária contra a Rússia por causa do controle ucraniano da Criméia. 

Semana passada quase todos os membros da OEA votaram contra uma intervenção militar norte-americana na Venezuela. Esta derrota diplomática consolida um fato consumado: os norte-americanos não podem mais tratar a América Latina como seu quintal. Apesar da derrota na OEA, os EUA parecem inclinados a confrontar os russos por causa de objetivos que não me parecem nem mesmo racionais. Os fatos, entretanto, não estão aí para serem ignorados. Nos últimos dias a Casa Branca subiu o tom, fez ameaças de sanções unilaterais contra a Rússia e até enviou alguns barcos e aviões militares para a região conflituosa.

Para mim é difícil dizer se o império americano chegou ou não ao fim. A verdade é que não disponho de dados para fazer previsões confiáveis. E mesmo que dispusesse de dados tomaria cuidado, pois a atividade de historiador do futuro geralmente é bastante ingrata. Mas confesso que continuo tentado, em parte por pura troça, a comparar a situação de Portugal em 1974 e a dos EUA no presente.

Os portugueses foram civilizados e inteligentes o suficiente para enterrar seu império falecido sem maiores danos colaterais.E os norte-americanos? O que eles farão agora que o império deles parece começar a ruir sob os pés dos poderosos políticos que dão as cartas em Washington?

Fábio de Oliveira Ribeiro

9 Comentários

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  1. eurasia oleosa

    Concordo com  a analogia  entre portugal dos anos 70 e a situaçao imperial de hoje na medida em que de fato se tornou imcompativel A MEDIO e longo prazo salvar  o imperio e a sua poderosa economia domestica.

    So que os interessados por certo  nao  compreenderão isso. Talvez nunca, ao contrario dos jovens oficiais lusos em 1974/75. As palavras do arguto analista Nafeez Ahmed q escreve no Guardian dizem que foi a opçao do presidente ucraniano pelo oferta russa – em detrimento da ocidental  patrocinada pela sua maior petroleira – que desencadeou as coisas na capital ucraniana.E a oferta russa  preexistente de 30% de reduçao do preço do gás e 15 bi em dinheiro era claramente melhor.

     

     

    1. “So que os interessados por

      “So que os interessados por certo  nao  compreenderão isso. Talvez nunca, ao contrario dos jovens oficiais lusos em 1974/75.”

      Concordo. E isto pode ser explicado por uma sutil diferença entre portugueses e norte-americanos. Em Portugal no princípio da década de 1970, não eram produzidos e distribuidos em grande quantidade filmes e séries de TV difundindo as virtudes do império, veiculando a idéia da hegemonia benéfica do “modo de vida português” e o militarismo como ocorre nos EUA nas últimas décadas.  

      É bem provável que a maioria dos norte-americanos continue defendendo o império dos EUA até o último suspiro. Pior para eles, pois a crise imperial deles não poderá ser resolvida de maneira civilizada como ocorreu em Portugal. Se não morrerem aos milhões numa guerra nuclear, morrerão aos millhares numa guerra civil. 

  2. Duvido que enterrem

    O orgulho e a industria bélica não deixa. Mais fácil continuarem a semar guerras, plantar inimigos para justificar a necessidade de manter investimentos nesta área. Se julgam superiores e, para mim, o grande golpe do wikilics foi justamente no mito, deixar o rei nu com toda sua mediocridade. Eles sabem que para serem bem sucedidos o mito deve estar intacto e o golpe foi duro. Por isso Assange está em prisão perpétua.

  3. Psywars longe das estrelas

    Guerra psicológica ou psywars nos EUA é mais velho que Ford bigode. O exército americano sempre teve batalhões especializados em derrotar o inimigo sem disparar um tiro. Sem falar na guerra da propaganda pura e simples com as rádios internacionais durante as grandes guerras, a Voz da América e a aliada BBC.

    Hoje em dia ela não se limita às forças armadas, que continuam cada vez mais ativas também. Há congressos internacionais com especialistas do mundo inteiro. Houve um em Miami em que foram apresentados estudos sobre as ações na Líbia e a primavera árabe. É a espionagem mais pública que existe!

    http://en.wikipedia.org/wiki/Psychological_warfare

    Aqui tem a história da guerra psicológica e até os panfletos da segunda guerra. Até a FEB utilizou panfletos em alemão na campanha da Itália. Quem vocês acham que redigiu…? 

    http://www.psywar.org/

    Aqui o material usado na Líbia em 2011:
    http://www.psywar.org/apdsearch.php?cf=2011

    http://topdocumentaryfilms.com/psywar/

    [video:http://www.openfilm.com/videos/psywar-remastered%5D

     

  4. Ahahahahahahah!!!!!!!!!!! a liberdade………….

    Sim, sim!!! Não, não!!!!!!

    A derrocada de um império, a meu ver se dá aos poucos, lentamente. foi assim com o Imperio autro-hungaro, com o Imperio Romano, Russo e invevitavelmente se dará com o Império Americano!

    Hoje dispomos de mais tecnologia na área das comunicações, e isto proporciona, sem dúvidas,  maior  facilidade de manipulações. Como disseram, ” a primeira vitima em uma guerra é a verdade”, e sendo assim, só os mais antenados, é que poderão formar juizo sobre os acontecimentos.

    Se o imperio norte-americano está em decadência, já vai tarde, mas não devemos nos iludir, pois outros surgirão!

    É a sina dos humanos, em quererem dominar seus iguais, com a ajuda das entidades “defensoras das liberdades”!!!

    Ahahahahah!!!!!!!!!!!!!! As liberdades!!!!!!!!!!!!!!

    Em tempo: Se queres realmente ser livres, comece a mudasr seus conceitos de dliberdade!!!!!

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