Armas químicas na Síria: manifesto denuncia armação contra o presidente Assad, por Ruben Rosenthal

O manifesto de 11 de março clama pelo esclarecimento das controvérsias acerca da investigação sobre o suposto uso de armas químicas em Douma, na Síria, em 2018.

Conflito em Douma, 6 de abril de 2018, véspera do suposto ataque com armas químicas \ Foto: SIPA EUA/AP

do blogue Chacoalhando

Armas químicas na Síria: manifesto denuncia armação contra o presidente Assad

por Ruben Rosenthal

Simplesmente não é cabível para uma organização científica como a OPAQ recusar-se a responder abertamente às críticas e preocupações de seus próprios cientistas, e estar associada a tentativas de desacreditar e difamar estes cientistas. 

O embaixador brasileiro José Maurício de Figueiredo Bustani, primeiro diretor-geral da OPAQ, a Organização para a Prevenção de Armas Químicas, lidera uma carta aberta encaminhada ao atual diretor-geral, o espanhol Fernando Arias. O manifesto de 11 de março clama pelo esclarecimento das controvérsias acerca da investigação sobre o suposto uso de armas químicas em Douma, na Síria, em 2018.

O relatório preparado pelos inspetores da missão de campo (Fact Find Mission) enviada a Douma foi adulterado para incriminar o presidente sírio Bashar al-Assad; a farsa só foi descoberta porque o relatório original foi vazado. Na sequência, inspetores que defenderam o respeito às conclusões da missão de campo, tiveram a credibilidade e idoneidade atacadas.

Para os signatários da carta, “o caso em questão ameaça prejudicar seriamente a reputação e credibilidade da OPAQ, e abalar seu papel vital de busca da segurança e da paz internacional”. O manifesto encabeçado pelo embaixador Bustani é apoiado por ex-inspetores da OPAQ, além de renomados acadêmicos, intelectuais, políticos, jornalistas e cineastas de diversos países.

Para melhor entendimento do conteúdo da carta, cuja tradução é reproduzida neste artigo, é necessário apresentar antes um breve histórico dos eventos ocorridos até agora.

O uso de armas químicas em Douma

Em 7 de abril de 2018, tropas sírias engajadas no combate a rebeldes islâmicos fechavam o cerco à cidade de Douma, leste de Damasco. Foi quando chegaram aos lares, em todo o mundo, cenas de civis espumando pela boca e aparentemente sufocando até a morte, pela suposta inalação de um gás letal. As fotos e filmagens foram feitas pela Defesa Civil Síria-Capacetes Brancos, grupo fundado por James Le Measurier, apoiador dos jihadistas.

Crianças usando máscaras para inalar oxigênio, após suposto ataque com gases químicos em Douma, Síria.. A foto foi obtida pela Defesa Civil Síria-Capacetes Brancos, grupo fundado por James Le Mesurier, que tinha vínculos com extremistas jihadistas.
Criança recebendo oxigênio através de máscara, após suposto ataque com gás cloro em Douma \ Foto: Defesa Civil Síria-Capacetes Brancos, via AP

Mesmo antes da comprovação de qualquer responsabilidade do governo sírio, mísseis cruise dos Estados Unidos foram lançados contra a Síria, com apoio do Reino Unido e da França. Em 21 de abril uma missão de investigação da OPAQ foi enviada a DoumaNo relatório final publicado pela OPAQ em 1 de março de 2019 constava que os dois cilindros contendo resíduos de gás cloro, encontrados em destroços em Douma, foram atirados de helicópteros. Como o espaço aéreo era controlado pelo governo sírio, o mesmo foi imediatamente responsabilizado na mídia pelo uso de armas químicas contra a população civil.

No entanto, documentos vazados possibilitaram que em maio de 2019 se tomasse conhecimento do relatório original “Avaliação de Engenharia dos dois cilindros observados no incidente em Douma-Sumário Executivo”, datado de fevereiro de 2019. O documento estava assinado por Ian Henderson, provável chefe do subgrupo de engenheiros da missão de investigação da OPAQ.

Ao contrário do que constava no relatório final, os inspetores haviam na verdade concluído que os dois cilindros encontrados nos escombros de locais bombardeados por tropas do governo sírio, foram provavelmente lá colocados manualmente, e não atirados de helicópteros. Com isto ficava evidenciado que o incidente não passara de uma armação para incriminar Assad e justificar o ataque pelas forças da OTAN.

Do relatório original dos inspetores: Local 4: A cama: Em resumo, as observações nas cenas dos dois locais e as análise subsequentes sugerem que existe uma grande possibilidade que ambos os cilindros foram manualmente colocados nestes dois locais e não arremessados (Avaliação 33)
Cilindro com traços de cloro, em cima de uma cama em casa bombardeada \ Foto: relatório da missão de campo da OPAQ

A adulteração só foi possível porque um novo grupo foi encarregado de elaborar o relatório final, consistindo basicamente de jovens inspetores em começo de carreira na OPAQ. Com a proximidade do término do mandato do Dr. Brendan Whelan em setembro de 2018, como coordenador científico da missão de campo, ele foi instruído a repassar toda a documentação disponível ao novo grupo. Esta alteração no grupo possibilitou que adulterações nas conclusões dos inspetores de campo fossem incluídas no relatório final publicado em 1 de março de 2019.

O vazamento foi divulgado pelo jornalista britânico Peter Hitchens, no Mail on Sunday, e por Robert Fisk, no The Independent, e na sequência, pelo blogue Chacoalhando.

Ao se dar conta da manipulação, o Dr. Brendan Whelan enviou um e.mail de protesto em 22 de junho de 2019 ao chefe de gabinete da OPAQ, Robert Fairweather. A mensagem de Whelan foi vazada e publicada por Peter Hitchens e pelo Wikileaks em novembro de 2019.

A resposta do chefe de gabinete Fairweather ao e.mail enviado por Whelan consta de novo vazamento de documentos internos da OPAQ, publicados pelo The Grayzone em dezembro de 2020. Fairweather não negou que o relatório fora editado, mas insistiu que o procedimento não fora ordenado pelo diretor-geral. 

Entretanto, o chefe de gabinete solicitou que o e.mail de Whelan fosse deletado por todos que o receberam. Assim, deixaria de existir um registro do protesto de Whelan. Pelo visto, nem todos aceitaram a censura, pois a reclamação de Whelan chegou ao conhecimento de Hitchkens e do Wikileaks em novembro de 2019.

Os documentos obtidos pelo The Grayzone mostram também que alguns executivos da OPAQ fizeram elogios a Whelan, por sua integridade.  Em privado, foram feitas críticas à forma como foi manipulado o relatório técnico original dos inspetores. Um destes executivos, mesmo sendo contra a adulteração do relatório técnico, expressou receio que as críticas fossem tornadas públicas “para não fortalecer a narrativa russa”.

Campanha de difamação dos inspetores

Desde a revelação da manipulação do relatório, Ian Henderson e Brendan Whelan passaram a ser submetidos a uma campanha de difamação. Seus detratores incluem o atual diretor-geral da OPAQ, embaixadores de países membros da OTAN, e supostos oficiais anônimos da OPAQ.

Em fevereiro de 2020 o The Grayzone publicou outro documento vazado, datado do mês anterior, contendo o testemunho do inspetor Ian Henderson sobre a missão Douma, perante uma sessão especial do Conselho de Segurança da ONU. Henderson expôs as falhas do inquérito da OPAQ, como os principais resultados foram manipulados, e a pressão exercida pelos Estados Unidos para influenciar a investigação.

Em 6 de fevereiro o diretor-geral Fernando Arias encaminhou um documento aos Estados Partes da Convenção de Armas Químicas, em que ele apresentou suas considerações sobre os resultados do que chamou de “investigação independente sobre possíveis quebras de confidencialidade”, como resultado do vazamento de maio de 2019. Os inspetores são mencionados como A e B, e se tratam provavelmente de Henderson e Whelan.

Desde então, a campanha contra os inspetores se intensificou, inclusive no Conselho de Segurança da ONU. EUA, Reino Unido e França associaram os questionamentos feitos pelos inspetores ao relatório da OPAQ, como sendo parte de uma campanha de desinformação por parte da Rússia e da Síria. Em outubro do ano passado, estes mesmos países impediram que o embaixador Bustani pudesse apresentar seu testemunho na ONU a favor dos inspetores com quem trabalhara durante sua gestão como diretor-geral da OPAQ.  

Este foi o cenário que precedeu a elaboração da carta aberta em que os signatários cobram do atual diretor-geral, mais transparência interna na OPAQ.

Declaração de Preocupação, 11 de março de 2021: Investigação da OPAQ sobre o suposto uso de armas químicas em Douma, na Síria.

“Desejamos expressar nossa profunda preocupação com a prolongada controvérsia e com as consequências políticas envolvendo a OPAQ, e sua investigação dos supostos ataques com armas químicas em Douma, na Síria, em 7 de abril de 2018.

Desde a publicação pela OPAQ de seu relatório final em março de 2019, uma série de eventos preocupantes levantaram sérias e substanciais inquietações a respeito da condução da investigação. Estes eventos incluem casos em que inspetores da OPAQ envolvidos na investigação identificaram graves irregularidades procedimentais e científicas, o vazamento de uma quantidade significativa de documentos confirmatórios, e declarações condenáveis proferidas em reuniões do Conselho de Segurança da ONU.

Está agora bem estabelecido que alguns inspetores seniores envolvidos com a investigação, um dos quais desempenhou um papel central, rejeitam como a investigação obteve suas conclusões. A gestão da OPAQ está sendo agora acusada de aceitar resultados não comprovados ou possivelmente manipulados, com sérias implicações geopolíticas e de segurança. Os apelos de alguns membros do Conselho Executivo da OPAQ para permitir que todos os inspetores fossem ouvidos foram barrados.

As preocupações dos inspetores são compartilhadas pelo primeiro diretor-geral da OPAQ, José Bustani, e um número significativo de eminentes indivíduos pediu transparência e responsabilidade por parte da OPAQ. O próprio Bustani foi recentemente impedido por membros importantes do Conselho de Segurança de participar de uma audiência sobre o dossiê sírio.

Conforme declarou o embaixador Bustani em um apelo pessoal ao diretor-geral, se a Organização está confiante na condução de sua investigação sobre Douma, então não deveria ter dificuldade em levar em conta as preocupações dos inspetores.

Até o momento, infelizmente, a alta administração da OPAQ falhou em responder adequadamente às alegações contra ela e, apesar de fazer declarações em contrário, entendemos que nunca permitiu que opiniões ou preocupações dos membros da equipe de investigação fossem ouvidas, ou mesmo encontrou-se com a maioria deles. Em vez disso, contornou a questão, ao lançar uma investigação sobre um documento vazado relacionado ao caso Douma, e ao condenar publicamente seus inspetores mais experientes por se manifestarem.

Em um preocupante acontecimento recente, foi feita a falsa alegação de que o rascunho de uma carta teria sido enviado pelo diretor-geral a um dos inspetores dissidentes, e que o mesmo fora vazado para um site de investigação1 de “fontes abertas”, em uma aparente tentativa de difamar o ex-cientista sênior da OPAQ. O site de “fontes abertas” publicou então o rascunho da carta, juntamente com a identidade do inspetor em questão.

Ainda mais alarmante, em uma série de rádio da BBC4 transmitida recentemente, uma fonte anônima, supostamente ligada à investigação de Douma pela OPAQ, deu uma entrevista à BBC que contribuiu com a tentativa de desacreditar não apenas os dois inspetores dissidentes, mas até mesmo o embaixador Bustani. É importante ressaltar que vazamentos recentes, em dezembro de 2020, evidenciaram que vários funcionários seniores da OPAQ apoiaram um inspetor da OPAQ que havia se manifestado a respeito de má conduta.

A questão ameaça prejudicar gravemente a reputação e a credibilidade da OPAQ, e minar seu papel vital na busca da paz e segurança internacionais. Simplesmente não é cabível para uma organização científica como a OPAQ recusar-se a responder abertamente às críticas e preocupações de seus próprios cientistas, e estar associada a tentativas de desacreditar e difamar estes cientistas.

Além disso, a presente controvérsia em relação ao relatório Douma também levanta preocupações com relação à confiabilidade de relatórios anteriores das missões de campo, incluindo a investigação do alegado ataque em Khan Shaykhun2 em 2017.

Acreditamos que os interesses da OPAQ são melhor atendidos com o Diretor-Geral proporcionando um fórum transparente e neutro, no qual as preocupações de todos os investigadores possam ser ouvidas, bem como garantindo que uma investigação científica e totalmente objetiva seja conduzida.

Para tanto, apelamos ao diretor-geral da OPAQ para que encontre a coragem para abordar os problemas internos da Organização relacionados com esta investigação, e garantir que os Estados-Partes e as Nações Unidas sejam informados em conformidade. Desta forma, esperamos e acreditamos que a credibilidade e integridade da OPAQ possam ser restauradas.”

Notas do autor:

  1. Trata-se do site Bellingcat, que recebe financiamento da OTAN.
  2. Em abril de 2017 ocorreu um ataque com gás sarin em Khan Shaykhun, noroeste da Síria, em que teriam morrido mais de 70 pessoas, incluindo 20 crianças
  3. O autor considera o embaixador José Maurício Bustani é um brasileiro que oferece um raro exemplo de integridade moral e coragem pessoal. Vale lembrar as ameaças de morte que ele e sua família receberam, quando era diretor-geral da OPAQ, vindas diretamente de John Bolton, então subsecretário no governo de George W. Bush. 

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Redação

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