Direitos e retrocessos

A Venezuela deixou de participar do Sistema Americano de Direitos Humanos (SIDH). Essa decisão pode ser adaptada a partir da perspectiva universal dos direitos humanos? Os tribunais internacionais de direitos humanos são diferentes do resto da justiça de ordem internacional, da mesma forma que esses tipos de tratados diferem do resto dos instrumentos internacionais. Aqui não se discutem interesses econômicos, nem questões bilaterais ou multilaterais entre Estados. Esses tribunais têm por objetivo principal preservar os direitos humanos das pessoas, condenando, se necessário, as atuações dos países. Os tratados desta espécie e sua corte de justiça operam diante de conflitos entre as pessoas e os Estados, outorgando direitos àquelas e obrigações a esses. Estamos diante de uma proteção transnacional dos direitos das pessoas ante as violações estatais internas cometidas contra os direitos fundamentais. Esse é um sistema de garantia coletiva de direitos humanos e de liberdades fundamentais.

Em tal contexto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é um emergente do sistema da Organização dos Estados Americanos, como também é a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Ambos têm uma base de origem de um componente político, sem dúvida. Como também aqueles outros tipos de órgãos, organizações ou instituições internacionais, criadas por razões econômicas e/ou políticas – Unasul, Mercosul, União Europeia, Nações Unidas, Organização Internacional do Trabalho, para citar algumas. De tal forma que o componente político não é negado, pelo contrário, é o motor – junto a outros fatores – levando à criação de tais instituições, agências bilaterais e multilaterais, de uma posição geopolítica de cada um dos países integrantes dos mesmos. A decisão político-institucional que a Venezuela adotou ao formalizar sua saída do SIDH em setembro de 2012 e que entrou recentemente em vigência, foi claramente infeliz a partir da perspectiva dos direitos humanos internacionais. Isso consolidou um processo prévio de infração interna estatal às normas dos direitos humanos.

A Venezuela já havia se negado sistematicamente, nos últimos anos, a cumprir com as sentenças da Corte IDH, alegando que eram inexecutáveis. O país havia rechaçado a possibilidade de que a Corte IDH pudesse ter alguma ingerência interna em temas de direitos humanos de seus cidadãos. Tudo isso apesar de a validade constitucional do sistema na ordem interna por decisão de um processo de reforma constitucional que, aliás, tinha sido ainda mais fortemente legitimada por referendo popular. A cidadania havia se expressado a favor da garantia universal dos direitos humanos e sua preeminência interna. Essa é a realidade, e não outra, por mais que se queira agora apresentar outra formulação. Em essência, o caso da Venezuela mostra a resistência que oferecem os governos ao controle do poder; dividir o poder em diferentes níveis locais, regionais ou internacionais de controle implica claramente que os governos tenham uma menor possibilidade de controlar quem controla. Aqui, o controlador, o sistema regional de direitos humanos, se encontra fora do alcance daquele que é controlado. Fracassados no intento de conseguir enfraquecer os controles, às vezes se opta por dispensar o sistema de controle, sem se importar que, com tal decisão, desprotege-se os cidadãos enquanto se adota uma postura regressiva não admitida na atual evolução dos direitos humanos e no direito internacional em geral.

A decisão da Venezuela mostra um importante desconhecimento da origem desse tipo de normas e tribunais de direitos humanos. São graves violações desses direitos registrados em etapas não muito distantes da história global e regional. A própria história dos direitos humanos na Europa assim o explica, assim como na América, no século passado. É desconhecer que a saída deste tipo de sistema é, em si mesma, uma atuação estatal que viola o sistema de direitos humanos e, portanto, em nossa opinião, ineficaz do ponto de vista desse tipo de tratado. Uma vez capturadas no sistema estatal interno, determinados compromissos internacionais nesses assuntos, as pessoas adquirem irrevogavelmente direitos que não podem ser retirados posteriormente por nenhuma estatal interna. Não pertencem nem estão disponíveis aos governos locais; apenas devem ocupar-se de planificar políticas internas que evitem infrações, protejam os direitos e aumentem os níveis de dignidade de seus cidadãos. Neste contexto, certamente grave, seria de esperar um chamado dos parceiros da Venezuela no Mercosul, para que essa medida seja revisada. Isso se dá por duas razões: A primeira delas obedece a um contexto internacional: na Comunidade Europeia é regra exigir dos futuros sócios, como condição para ingressar no espaço econômico integrado da Europa, assumir compromissos próprios da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Em outras palavras, o novo sócio não goza da condição de membro da União Europeia sem antes se adequar às normas mínimas de proteção dos direitos humanos.

A segunda é de ordem de compromissos regionais, uma vez que, no âmbito do Mercosul, foi firmado um protocolo específico que regula a obrigação das partes de promover e proteger os direitos humanos em seu âmbito. Em síntese, as críticas que, por acaso, possa merecer o sistema da OEA e seus organismos vinculados ao SIDH, não deveriam servir de desculpa para justificar o que não pode ser justificado: a decisão de isolar, em matéria de direitos humanos, não um país, mas seus cidadãos, privando-os de uma estrutura normativa e orgânica, às quais poderiam recorrer diante de violações cometidas pelo próprio Estado. Isso não significa ignorar a necessidade de melhorar os mecanismos existentes e até mesmo criar novos sistemas que complementam – por exemplo, no marco da Unasur. Aquilo que acreditamos ser grave, equivocado e que claramente viola compromissos internacionais é a pretensão de buscar mudanças, desde a supressão de um nível de proteção já vigente e do qual gozam as pessoas no atual estado dos direitos humanos e no sistema regional. Um péssimo ponto de partida se o que se quer é levar a sério uma discussão transcendental sobre o assunto.

Pablo Ángel Gutiérrez Colantuono é secretário-geral da AAADA (Associação Argentina de Direito Administrativo) e diretor internacional do Ibeji (Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura).

Redação

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