Especial GGN: Jornalismo nos EUA luta por sobrevivência na era da pós-verdade

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Asfixiamento de redações com perda crescente de credibilidade da imprensa, uma das palavras de ordem de Trump, alimentada pela arma das redes sociais

Jornal GGN – A era de Donald Trump nos Estados Unidos significou uma guerra sem quartel contra os meios de comunicação tradicionais.

Em meio a este cenário, é de se estranhar que o The Washington Post traz como uma de suas manchetes deste mês uma crítica à Amazon, cujo sócio-controlador, Jeff Bezos, é o mesmo que adquiriu recentemente o The Post. “Vendedores da Amazon afirmam que a gigante do varejo online está tentando ajudar a si mesma, não a consumidores”, é o título da reportagem de Jay Greene, que fala em “possíveis violações da lei antitruste” pela Amazon e “por abusar do poder do mercado”.

A luta pela liberdade de imprensa no país que se auto-intitulou o criador da liberdade de imprensa é hoje uma estratégia de sobrevivência, posta a prova pelas incessantes investidas de Donald Trump contra os jornais, e com estímulos às chamadas Fake News desencadeadas pelas redes sociais que o elegeram.

A compra do Post por Jeff Bezos, dono da Amazon, há 6 anos, representou a retomada do periódico para o seu melhor momento. A jornalista Daniela Pinheiro da Piauí, que cobriu as eleições de 2016 dos Estados Unidos, assim descreveu a aquisição do Post por Bezos, juntamente com Martin Baron no comando do jornal: “Dinheiro, faro jornalístico e o prestígio de uma marca centenária fizeram do Post uma exceção. Ao contrário do resto da imprensa que passava por demissões coletivas e fechamento de escritórios, o jornal aumentou o número de funcionários em 30%. No último ano, chegou a ultrapassar o New York Times em acessos pela internet. Foi laureado como a publicação mais inovadora do mundo pela Fast Company (…) e também colecionou quatro prêmios Pulitzer.”

A vitória de Trump, nas eleições presidenciais, mudou o quadro. Entrou-se na era do “jornalismo pós-Trump”, com o uso recorrente das redes sociais para impor sua pós-verdade. As redes sociais ganham maior espaço e relevância, mostrava o Le Monde Diplomatique, no artigo “Metamorfoses da mídia norte-americana“, de agosto de 2017, sobre a situação do jornalismo nessa era da pós-verdade.

Logo na estreia de seu mandato, Trump mirou sua bateria no Washington Post e no New York Times. Com os tweets “AmazonWashingtonPost” e “TheAmazonPost”, Trump alimentou o discurso de que o diário servia aos interesses do grupo econômico de Bezos e, assim, era parcial e não suscitaria confiança da população.

A ameaça foi além do mero tweet que se alastrou e o presidente dos EUA chegou a ameaçar o proprietário dos negócios com a possível abertura de uma investigação do governo norte-americano antitruste com mira na Amazon, para intimidar diretamente Bezos,

Não apenas eles. A CNN também entrou para a lista de “inimigos” da Casa Branca, quando o jornalista Jim Acosta foi banido de coletivas por suas matérias que criticavam Trump. A justificativa do mandatário para impedir o ingresso do repórter na Casa Branca era que se tratava de uma “pessoa grosseira, terrível”.

Trump criticando o correspondente da CNN Jim Acosta, banido da Casa Branca

A assessora de imprensa de Donald Trump passou a se valer do Twtter para atacar jornalistas, proibiu que repórteres viajassem no seu avião durante a campanha, confiscou credenciais de quem não gostava. Era um quadro tão insalubre que a agência Deutsche Welle decidiu premiar a Associação dos Correspondentes da Casa Branca (WHCA) com o título “Freedom of Speech” (Liberdade de Expressão) em 2017.

“Liberdade de imprensa nos Estados Unidos não é algo garantido, apesar da proteção prevista na Constituição”, narrava à época o diretor-geral da DW, Peter Limbourg, na cerimônia de entrega do prêmio, em referência ao trecho sobre liberdade de expressão e de imprensa nas dez emendas que integram a Carta dos Direitos da Constituição de 1791. “Temos de permanecer vigilantes para assegurar que essas liberdades persistam, não importa quem esteja no poder em Washington”, acrescentou, ressaltando a importância da Associação na supervisão do poder Executivo.

O documento do instituto Gallup e da Fundação Knight revela que a confiança na mídia pelos estadunidenses caiu de 54%, em 2003, para 41% em 2017 e 33% no ano passado, quando foi feita a pesquisa. “A confiança na mídia nos Estados Unidos está se erodindo, fazendo com que seja mais difícil para as empresas de notícias cumprir suas responsabilidades democráticas de informar o público e fazer com que líderes do governo prestem contas de suas ações”, constatou o relatório.

Pesquisa AMERICAN VIEWS: TRUST, MEDIA AND DEMOCRACY, da Knight Foundation

Ainda de acordo com a pesquisa, 66% dos norte-americanos acreditam que os meios de comunicação não fazem um bom trabalho de separar notícias factuais e opinião, e conclui que “os americanos mais velhos tendem a ver a mídia mais positivamente do que os adultos mais jovens”. Por outro lado, a maioria dos estadunidenses acreditam que as Fake News são “uma ameaça muito séria à nossa democracia” e 76% deles admitem que a disseminação de informações imprecisas na Internet é “um grande problema na cobertura de notícias hoje”.

KnightFoundation-AmericansViews-Client-Report-010917-Final-Updated

Da mesma forma, levantamento feito no ano passado pela Universidade da Carolina do Norte alerta para o aumento do fechamento de jornais nos Estados Unidos e, como consequência, a ampliação dos chamados desertos midiáticos, locais aonde não existem jornais regionais para informar a população. Desde 2004, foram aproximadamente 1.800 jornais locais que fecharam as portas.

A Pew Research Center também revelou que os hábitos de consumo de informação dos norte-americanos mudaram, porque hoje 64% afirmam se informar principalmente pelas redes sociais, como o Facebook. E, ainda, mais da metade dos entrevistados admitiu que “espera” que essas notícias não sejam 100% confiáveis, inexatas.

https://www.journalism.org/fact-sheet/newspapers/

A crise de credibilidade vivida atualmente pela imprensa no país não para por aí. Também houve uma queda drástica no número de jornalistas estadunidenses: se em 1990, havia 56.900 profissionais, em 2015 eram 32.900, de acordo com a Sociedade Americana de Editores de Notícias.

De acordo com dados da Pew Research, em 2018, a circulação total de jornais diários, incluindo imprensa escrita e digital, atingiu o nível mais baixo desde 1940. O último relatório mostrou que um quarto dos grandes jornais americanos demitiu funcionários em 2018, e a quantidade de jornalistas demitidos também foi maior do que o ano anterior.

5 key takeaways about the state of the news media in 2018

No lado digital, a pesquisa também detectou que os recursos de anúncios online associados à informação aumentou exponencialmente, mas a maioria do lucro recebeu Facebook e Google. E as demissões também ocorreram nestes tipos de veículos: 14% dos jornais digitais de maior tráfego sofreram cortes drásticos.

About a quarter of large U.S. newspapers laid off staff in 2018

É neste contexto que a crítica do The Washington Post à gigante do varejo Amazon, ambas pertencentes ao mesmo sócio-controlador, traz uma significação para além da visível defesa da liberdade de imprensa, revelando a própria luta pela sobrevivência dos meios de comunicação na era da pós-verdade e das Fake News.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. A grande mídia norte-americana está tomando o seu troco. Há mais de um século publica mentiras tanto sobre a sociedade norte-americana como principalmente sobre os países do terceiro mundo, criando a falsa sensação que eles são os defensores do “mundo livre” está pagando caro pela ausência de verdade e manipulação política.

  2. Enquanto isso, no que interessa à gente, o nosso próprio país… ué, não tinha um pessoal que queria que nosso país imitasse os EUA? Por aqui a imprensa também está horrível. Na verdade está até pior já que a daquele país conta mentira para enaltecer aquele país; aqui conta-se mentira para enaltecer… também aquele país e não o nosso. Se bem que mentira por mentira, que diferença faz, né?

    Um dia esse negócio de espelhar-se em feiuras ainda vai causar um revertério… Quem sabe nossos bisnetos terão um país para chamar de seus? Enquanto isso vamos às compras nas lojas que têm imitação de estátuas estrangeiras na porta, achando todo lindo. Que palhaçada!

  3. Quanta baboseira!
    Liberdade de imprensa? Só para falar o que os donos da grana permitem.
    Exemplo recente, mas de antes da atual era de pós-verdades: o apoio acrítico à invasão do Iraque da maioria e o silêncio cúmplice do restante.
    Daqui a pouco veremos um artigo tentando nos convencer que os eeuu são a terra prometida da liberdade.

  4. A grande mídia americana e a nossa também, estão recolhendo os frutos de mais de um século de mentiras atrozes, descarada manipulação política, e omissões criminosas. E ainda nos deixaram a pós-verdade de herança maldita. Não vão deixar saudade. O que foi a cobertura do 11 de setembro? Quando qualquer retardado pode ver que as torres foram implodidas por dentro e não pelos aviões. um mês depois temos o “patriot act” suprimindo direitos civis. Não existem coincidências. O que foi a destruição do Afganistão? As armas do Sadam? O genocídio do Iraque, da Síria, da Líbia! O assasinato do Kadafi! Depois se espantam porquê só os velhos ainda compram jornal.

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