EUA: Uma nação ensimesmada, dividida e sem liderança, por Arnaldo Cardoso

Ao final de um debate de uma hora e meia de duração, avaliado por analistas como empatado, o que de melhor pôde-se “comemorar” foi o mesmo ter transcorrido com algum grau de civilidade

EUA: Uma nação ensimesmada, dividida e sem liderança

por Arnaldo Cardoso

Em 2009 Barack Obama eleito 44º presidente dos EUA discursou ao povo norte-americano afirmando a vitória da “unidade de propósito em vez do conflito e da discórdia”. Ao mundo, depois dos oito anos da errática política externa de George W. Bush, afirmava o compromisso com a paz e os grandes temas globais, com uma política externa orientada pelos princípios do multilateralismo e da governança global.

Passados quase doze anos, o que os norte-americanos e o mundo viram ontem através do último debate entre os candidatos à presidência dos EUA – Donald Trump, atual presidente, e Joe Biden, ex-vice presidente durante os anos Obama – foram sinais de um país dividido, ensimesmado pelo agravamento de seus problemas internos e incapaz de liderança política diante do gravíssimo contexto internacional marcado por sérias ameaças à liberdade e à vida em todo o planeta.

Ao final de um debate de uma hora e meia de duração, avaliado por analistas como empatado, o que de melhor pôde-se “comemorar” foi o mesmo ter transcorrido com algum grau de civilidade, comparado ao show de horrores produzido pelos candidatos no primeiro debate.

Diante dos vexatórios números da pandemia do coronavírus no país (8,6 milhões de infectados e 228 mil mortos) fruto de má gestão e irresponsabilidade do governo Trump, o tema ocupou a maior parte do debate alternando mentiras tornadas marca do estilo Trump e tibieza na crítica e propostas de Biden.

Temas como mudanças climáticas e os gravíssimos incêndios que atingiram estados norte-americanos como a Califórnia, matriz energética, sistema prisional, violência policial, racismo, desigualdade econômica, desemprego, sistema de saúde, foram precariamente abordados, com mútuas acusações de falta de ação durante os anos em que cada candidato esteve em posto de comando no governo do país.

Sobre política externa quase nada foi tratado. Emblemática foi a resposta dada por Trump à pergunta sobre as negociações de seu governo com a Coréia do Norte, tendo em vista a recente exibição pública em Pyongyang de novo míssil balístico intercontinental. Trump respondeu afirmando ser amigo de Kim Jong-un e gostar dele, mostrando com isso sua incapacidade de compreender o que é política de Estado, de superar a condição de homem de negócios e celebridade de reality show televisivo e assimilar a responsabilidade de um chefe de Estado.

Enquanto o governo russo acompanha com apreensão a evolução da campanha para a sucessão nos EUA, com clara preferência para a vitória de Trump pois Biden é um conhecido crítico de Putin e de seu desprezo pela democracia, no debate a Rússia só foi citada em insinuações de influência na campanha através da disseminação de teorias da conspiração e fake news, tão úteis a Trump na campanha de 2016. Nada se falou das negociações entre os dois países para um novo acordo de não-proliferação nuclear (Novo START) uma vez que o acordo em vigor expirará em fevereiro de 2021.

Putin teme que um governo Biden possa reanimar uma aliança ocidental para frear o ímpeto russo de resgate de um poder no espaço asiático que tem sido buscado através de ações como a anexação da Criméia, a participação na guerra na Síria, o apoio a populistas de extrema direita na Europa, e práticas condenáveis como o envenenamento de opositores e a repressão a manifestações contrárias ao seu poder que se perpetua.

Sobre a China, segunda maior potência econômica mundial que vem ocupando a seu modo os vazios de liderança deixados pelo governo norte-americano, nada se tratou de efetivo além da retórica de um precário e insustentável nacionalismo econômico, invocado pelos dois candidatos.

Sobre a Europa, tradicional parceira dos EUA, que passa por instabilidade política e econômica, com a saída do Reino Unido do bloco europeu, avanço de grupos extremistas de direita e proximidade do fim da liderança da chanceler alemã Angela Merkel no bloco, também nada foi tratado no debate.

A perda de relevância política dos EUA na política mundial não é só resultado de uma nova distribuição de poder econômico no mundo, mas sim da crise de uma ordem mundial construída no pós-2ª Guerra Mundial com forte liderança norte-americana. Quem serão os arquitetos da Nova Ordem é mais uma das incógnitas do presente e que a eleição do próximo ocupante da Casa Branca ajudará a responder.

Uma nação consumida por embates internos, desagregação social, milícias supremacistas armadas, ódio racial e xenofobia, direitos civis vilipendiados, negacionismos, megacorporações empresariais acumulando poder econômico e capacidade tecnológica para manipular informações e consciências, só poderá ser resgatada da beira do abismo por ação política determinada e inteligente, animada por valores democráticos e republicanos, implementada por políticas públicas dirigidas aos problemas sociais que afetam a vida de seus cidadãos e que fragilizam o consenso social.

O raiar da terceira década deste extremado século 21 marcado em seus primeiros momentos pelo atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 e agora convulsionado pela mais grave crise sanitária da história recente, terá mais um ato decisivo ocorrendo no território norte-americano. A eleição dos próximos dias definirá um dos protagonistas nessa peça, cujo gênero ainda deixa dúvidas, e cujo temor é de que se caracterize como tragédia.

Que a esperança vença o medo e que os próximos atos descortinem novos cenários e oportunidades para performances mais virtuosas é o que aqueles que acreditam na liberdade esperam.

Arnaldo Cardoso, cientista político.

Redação

1 Comentário

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  1. Estranho o tom deste artigo, cujo autor parece acreditar em valores ditos “democráticos e republicanos” e que Biden é crítico de Putin porque este supostamente teria desprezo pela democracia. Parece até que os governantes dos EUA prezam a democracia, mesmo a formal, burguesa. Biden foi vice-presidente de um governo (Obama) que promoveu muitas guerras no exterior, obviamente a pretexto de promover a democracia.

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