Joe Biden recicla Franklin D. Roosevelt, por Atilio A. Boron

Biden disse que as suas palavras devem ser interpretadas no contexto de uma tripla crise: "a pior pandemia do século, a pior crise econômica desde a Grande Depressão e o pior ataque à democracia desde a Guerra Civil".

Joe Biden recicla Franklin D. Roosevelt

por Atilio A. Boron

Do jornal Página 12: https://www.pagina12.com.ar/340510-joe-biden-recicla-a-franklin-d-roosevelt

Tradução de Roberto Bitencourt da Silva

A reorientação macroeconômica do governo Biden gerou inúmeras especulações sobre até onde o presidente dos Estados Unidos iria nessa nova direção. Uma leitura cuidadosa do seu discurso, proferido em ambas as casas do Congresso ao atingir o centésimo dia de seu mandato presidencial, permite vislumbrar uma primeira resposta.

Biden disse que as suas palavras devem ser interpretadas no contexto de uma tripla crise: “a pior pandemia do século, a pior crise econômica desde a Grande Depressão e o pior ataque à democracia desde a Guerra Civil”. Enfrentar essas ameaças não era algo que pudesse ser feito com as políticas convencionais. Ao contrário, tais ameaças requerem criatividade e esforços renovados. Do seu discurso se depreende que é mais fácil combater a pandemia, mais difícil atacar a crise econômica e ainda mais difícil curar as feridas sofridas pela democracia americana, que, na opinião de muitos observadores daquele país, foi degradada por uma plutocracia voraz.

Deixamos para outra ocasião o tema relacionado com a pandemia, para nos concentrarmos nas propostas econômicas. Há claramente um retorno ao New Deal de Roosevelt, embora seja mencionado apenas uma vez ao longo das dezesseis páginas de seu discurso e não exatamente quando se trata de economia. Mas, suas ponderações são um apelo a uma vigorosa reafirmação do papel do Estado como redistribuidor de riqueza e renda, como investidor em grandes empreendimentos em infraestrutura e novas tecnologias e como esteio do fortalecimento das classes médias, por sua vez filhas do ativismo sindical. Porque, esclareceu, “a economia do gotejamento nunca funcionou… e é hora de a economia crescer de baixo para cima”.

As cifras que Biden citou para justificar essa mudança de paradigma macroeconômico, que afronta completamente os charlatães e consultores econômicos que continuam a propagar as falácias do neoliberalismo em muitos meios de comunicação na Argentina, eram cifras amplamente aceitas no meio acadêmico e político de esquerda nos Estados Unidos, mas quase completamente desconhecidas do público em geral e, até mesmo, dos membros do Congresso.

Por exemplo, o diferencial entre a receita do CEO de algumas empresas e a do trabalhador médio é de 320 para 1, enquanto no passado era de 100 para 1, diferencial já intolerável, equação incompatível com o chamado “sonho americano”. Portanto, a triplicação desse hiato deve ser corrigida por políticas públicas. Os bilionários foram ainda mais enriquecidos pela pandemia e têm utilizado todos os mecanismos ao alcance para não pagar impostos, que incidem sobre as classes médias e os trabalhadores, uma afirmação que é também bastante útil para descrever a situação na Argentina. Daí a proposta de Biden visando estabelecer um imposto de 39,6% sobre aqueles com renda anual superior a 400.000 dólares.

É inaceitável, disse o presidente dos Estados Unidos, que 55 das maiores corporações do país não tenham pago um centavo em impostos federais, apesar de terem lucrado mais de US$ 40 bilhões. As ressonâncias rooseveltianas do seu discurso aumentaram quando ele afirmou, ao contrário de um credo amplamente difundido, que “Wall Street não construiu este país. As classes médias, sim, o fizeram. E foram os sindicatos que criaram as classes médias”. Ele imediatamente exigiu que o Congresso aprovasse uma legislação para apoiar o direito de organizar sindicatos, direito que havia sido severamente restringido por Reagan. Walmart e Amazon, para citar os dois casos mais conhecidos, têm sido os porta-estandartes na luta anti-sindical nos últimos tempos e travarão duras batalhas contra as propostas de Biden.

Como interpretar esse giro tão significativo no discurso e nas propostas legislativas levantadas por Biden? Ele se converteu ao nacional-populismo, ao socialismo? Nada disso. É a resposta defensiva à severa e inédita profundidade da crise do capitalismo estadunidense e ao retumbante fracasso das políticas ortodoxas impulsionadas pelo FMI e o Banco Mundial para enfrentá-la. E igualmente ante o fiasco produzido pelo corte de impostos de Trump para os ricos, que, previsivelmente, não surtiu o efeito desejado.

Porém, mais do que de Biden, a reação vem das alturas do aparato estatal que, na tradição marxista, em momentos críticos desempenha o papel do “capitalista coletivo ideal”. Ou seja, um sujeito que se ergue acima dos mesquinhos interesses corporativos ou setoriais e apela a estratégias que protejam a classe capitalista como um todo e o capital como sistema econômico, ora ameaçados pela competição da China e pela belicosidade da Rússia. Da China, por seu dinamismo econômico avassalador e por seus grandes avanços tecnológicos; da Rússia por sua interferência “maligna” na política americana.

Por falar em mudanças tecnológicas (com implicações tanto para a Defesa quanto para a vida cotidiana), Joe Biden argumentou que os Estados Unidos estão ficando para trás nessa corrida crucial com as “autocracias” da China e da Rússia, que desafiam a liderança que os Estados Unidos devem exercer no mundo, embora ninguém possa dizer quem, como e quando lhe confiaram uma missão tão elevada. Daí a radicalidade das mudanças propostas.

Atilio A. Boron – Sociólogo argentino, com doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard, professor da Universidade de Buenos Aires. É autor de diversos e importantes livros.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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