Não, Biden não venceu graças a seu centrismo, mas apesar dele, por Emilio Chernavsky

Em todo o país, Biden obteve apenas 4,5 milhões de votos a mais, menos de 2% do número de habilitados a votar e 3% dos que efetivamente votaram. O eleitorado se dividiu praticamente ao meio.

Foto El País

Não, Biden não venceu graças a seu centrismo, mas apesar dele

por Emilio Chernavsky

A vitória de Joe Biden nas eleições nos EUA, festejada pela maior parte dos progressistas em todo o mundo, vem sendo interpretada especialmente em círculos conservadores, mas não só neles, como resultado das posições moderadas, do “centrismo” do candidato, que teriam permitido ganhar votos do centro político sem perder o voto progressista e, com isso, teriam levado, nas palavras do próprio Biden, a “uma vitória clara, uma vitória convincente”[1]. Embora possa-se compreender que essa interpretação, que justifica as escolhas feitas, seja defendida pelo próprio candidato e mesmo por aqueles que, no Brasil, pretendem se colocar de forma oportunista no “centro”, ela é, sugere-se, fundamentalmente equivocada.

De início porque, longe de clara e convincente, a vitória foi muito, muito apertada, somente definida após dias de apuração e que ocorreu, em um país de 330 milhões de habitantes, tão só por uma diferença de poucos milhares de votos em certos estados. Em todo o país, Biden obteve apenas 4,5 milhões de votos a mais, menos de 2% do número de habilitados a votar e 3% dos que efetivamente votaram. O eleitorado se dividiu praticamente ao meio. Em relação a 2016, Trump não perdeu, mas ganhou 8 milhões de votos. Boa parte de seus eleitores, assim como o presidente, não reconheceu a derrota e aponta evidências reais ou imaginárias de fraude. A eleição presidencial apertada se repetiu no Congresso, onde, contrariando as expectativas, o partido democrata reduziu seu domínio na Câmara e pode não conseguir a maioria no Senado. Não só a vitória não foi clara, como a derrota esteve próxima.

Isso, apesar de Trump ter deixado de ser a novidade. De seu comportamento autoritário, racista, machista e xenófobo ter se tornado conhecido de todos. De ter sofrido ao longo de todo o mandato a oposição ferrenha, contínua e quase unânime – com a importante excepção da Fox –, dos veículos de mídia no país que, inclusive, assim se posicionaram publicamente na eleição. Apesar do gerenciamento absolutamente desastroso do governo em relação à epidemia de Covid-19, que já provocou 240 mil mortes, devastou milhões de famílias e destruiu milhões de empregos, justamente nos meses que antecederam a eleição. Apesar da explosão de revolta popular, inédita em décadas, contra a histórica discriminação racial, que levou em todo o país a massivas mobilizações e ao aumento da percepção das injustiças em especial entre os mais jovens que, inclusive, registraram participação recorde nas eleições.

Apesar dessas condições favoráveis, Biden quase perdeu. Quase perdeu justamente pelo seu histórico moderado, e pela incapacidade de apresentar durante a campanha propostas que o posicionassem claramente em favor dos trabalhadores e contra as grandes corporações. Pela incapacidade de convencer que ele, e não Trump, é que traria a mudança na economia que melhoraria as condições de vida de amplos setores da população que se empobreceram e precarizaram ao longo das últimas décadas. Essa incapacidade não surpreende em quem encarnou o centrismo que, independentemente do partido no poder, dominou a política econômica nos EUA ao longo dessas décadas em que comunidades inteiras foram devastadas e que, por isso, tem sido rejeitado pela população. Tendo captado esse sentimento desde antes de sua primeira eleição, Trump se contrapôs ao consenso centrista, principalmente no discurso, mas também em certas ações do governo, o que se mostrou eleitoralmente acertado, e o levou a ser o escolhido de 82% daqueles para quem a economia é o principal motivador do voto[2]. Já os democratas voltaram em 2020 a insistir no centrismo, que em 2016 contribuiu para que o partido fosse identificado com o stablishment econômico, popularmente rechaçado, e para sua derrota de então. É difícil crer que, neste ano, esse mesmo centrismo, e não a conduta de Trump, os impactos da Covid-19 ou as mobilizações contra o racismo, tenha sido o responsável por trazer os votos que permitiram a Biden vencer.

Ao contrário, sugere-se que o centrismo quase tenha levado o partido democrata a mais uma derrota e que, se for mantido no governo, contendo as pressões por mudança e motivando a busca do retorno a um status quo rejeitado, provavelmente a provocará em 2024. Trump perdeu a eleição, mas, as ideias e o movimento que ele encarna, nos EUA e no mundo, continuam fortes e à espreita.

[1] https://www.washingtonpost.com/politics/2020/11/07/annotated-biden-victory-speech/

[2] https://www.nytimes.com/interactive/2020/11/03/us/elections/exit-polls-president.html

Redação

6 Comentários

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  1. Analise para lá de simplista. Para os padrões das eleições americanas 4,5 milhões de votos de diferença é uma grande vitória. Pela lógica do autor se o candidato democrata tivesse sido Bernie Sanders ou Elizabeth Warren a vitória sobre Trump teria sido avassaladora, quando eles não conseguiram nem os votos dos eleitores democratas para serem confirmados candidatos do partido. A coisa é muito mais complicada do que simplesmente, para enfrentar eleitoralmente um candidato neo fascista, escolher um candidato mais à esquerda. O eleitorado americano é uma colcha de retalhos de grupos com visões e interesses muito diversos. Tentar atrair cada um é o segredo.

  2. Joe Biden ficou a poucos metros da derrota, mas não porque o Partido Democrata foi pouco para a esquerda, é o contrário, a sociedade americana é que se deslocou em massa para a direita nos últimos 20 anos.
    A única vez que os democratas se moveram fortemente para a esquerda, na eleição de 1972, o partido foi esmagado por Nixon, e o candidato democrata, senador George McGovern, de Dakota do Sul, foi derrotado em 49 estados, vencendo apenas em Massachusetts e no Distrito de Columbia.
    Bernie Sanders era a opção mais à esquerda do Partido Democrata. Foi derrotado nas primárias.

    1. Alguém dizer que Sanders foi derrotado nas primárias é quase cômico, ou simplesmente mostra que não acompanhou o que ocorreu em janeiro/fevereiro/março desse ano. Assim como em 2016, a cúpula democrata (Obama, Clinton e Pelosi à frente) fez o possível e o impossível para retirá-lo do processo. Ele, na verdade, é grande vencedor desse processo: sem a mobilização que sua candidatura carrega, Biden seria derrotado como Hillary foi em 2016, quando os grupos de apoio de Sanders cruzaram os braços ou fizeram campanha contra. Os democratas ganharam, apesar de Biden. As derrotas na Flórida e no Texas mostram isso, em particular no eleitorado de imigrantes e de negros desses estados.

      1. Ainda que Sanders tivesse vencido as primárias democratas, o que por um tempo no início do ano pareceu bastante possível, ele teria sido destroçado por Trump e pelos radicais republicanos, que perderam para Biden apenas por “uma bacia de votos” em Wisconsin, na Pennsylvania, no Arizona e em Nevada.
        A derrota teria sido tão arrasadora quanto foi a de George McGovern, o “Sanders” de 1972.
        Pra ficar só na proposta das universidades gratuitas, é impossível passar isso pelo Congresso americano.

  3. Postagem da Greta Thunberg “sarrando” com D. Trump, chega aos 383,5 mil retweets, 81,9 mil comentários e 1,8 mihão de curtidas.

    Quando Greta Thunberg, a jovem ambientalista sueca de 17 anos, foi eleita no final de 2019 como “personalidade do ano” pela revista americana Time, Trump atacou-a em seu Twitter:
    “Tão ridículo. Greta tem que trabalhar em seu problema de controle da raiva e assistir a um bom filme antigo com um amigo. Calma, Greta, calma!”, ainda ironizou o presidente americano. Em 5/11, na postagem de Trump com o “stop the count”, ela deu seu troco, devolvendo-lhe a recomendação e postou:
    “Tão ridículo. Donald tem que trabalhar em seu problema de controle da raiva e assistir a um bom filme antigo com um amigo. Calma, Donald, calma!”

    https://twitter.com/GretaThunberg/status/1324439705522524162

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