Presidente da Ucrânia aposta suas cartas em invasão russa?, por Ruben Rosenthal

Repercutiu também na mídia ocidental a perturbadora previsão do “analista militar” russo, Pavel Felgenhauer, de que com a chegada das tropas russas à fronteira, a crise passou a ter potencial de escalar para uma guerra pan-européia ou mesmo para uma III Guerra Mundial.

Militar ucraniano na linha de frente em Donetsk, fevereiro de 2021 \ Foto: Anatolii Stepanov / AFP via Getty Images

do Chacoalhando

Presidente da Ucrânia aposta suas cartas em invasão russa?

por Ruben Rosenthal

Se os russos intervierem, Zelensky tentará convencer o governo alemão a sustar o acordo do gasoduto Nord Stream 2. O novo gasoduto representará um baque devastador na economia da Ucrânia.

Relatos recentes sobre a crise na Ucrânia na mídia do Ocidente alertaram sobre o estacionamento de tropas russas na fronteira com a Ucrânia. BBC News: Acúmulo de tropas russas próximo à Ucrânia alarma a Otan. New York Times: Movimento de tropas russas e fala de intervenção causa apreensão na Ucrânia. Wall Street Journal: Imagens de satélite mostram expansão  da presença da Rússia na Ucrânia. 

A mídia do Ocidente especulou  sobre a motivação para as ações de Moscou. Testar a nova administração Biden? Desviar a atenção da prisão de Navalny? Forçar que a Ucrânia restabeleça o fornecimento de água a Criméia, cortado após a união com a Rússia? Ou seria uma retaliação pela perda de influência na Ucrânia? 

Repercutiu também na mídia ocidental a perturbadora previsão do “analista militar” russo, Pavel Felgenhauer, de que com a chegada das tropas russas à fronteira, a crise passou a ter potencial de escalar para uma guerra pan-européia ou mesmo para uma III Guerra Mundial.

Ainda no mês de abril, o cônsul ucraniano em São Petersburgo foi detido sob a acusação de receber informações secretas. As tensões aumentaram ainda mais com o anúncio da Rússia irá restringir por seis meses a navegação no Mar Negro para navios de guerra estrangeiros, com início em 24 de abril.

A atual crise mantém aceso o pavio do conflito iniciado com a revolução colorida de Maidan em fevereiro de 2014 – apoiada pela governo de Barack Obama, e que afastou Viktor Yanukovych, o presidente eleito da Ucrânia. Como reação, vieram na sequência o referendo pró-Rússia na Criméia e os movimentos separatistas na região do Donbass, no leste do país. Desde então já ocorreram cerca de 13.000 mortes nos confrontos de forças de Kiev com os separatistas.

Embora nos últimos dias Putin tenha anunciado a retirada de tropas da fronteira, não há sinais de que a crise tenha se esvaziado. O governo de Kiev vem se recusando sistematicamente a respeitar o Protocolo de Minsk, que deveria levar a um cessar-fogo permanente e à autonomia política do Donbass.

Quando não houver menção em contrário, as análises apresentadas  neste artigo foram extraídas da entrevista concedida pelo analista internacional Mark Sleboda, sediado em Moscou, para a jornalista Anya Parampil, do The Grayzone.

Região do conflito separatista do Donbass
O mapa mostra as regiões sob controle dos separatistas (região hachurada direita) e do governo central, em Luhansk e Donetsk

Ucrânia, um país com profundas divisões históricas

Os ucranianos do oeste do país têm um forte sentimento anti-russo; sua história passa pela Comunidade Polaco-Lituana e pelo Império Austro-Húngaro. Durante a II Guerra Mundial houve colaboração com os nazistas e com o holocausto. Já o leste da Ucrânia, juntamente com a Bielorússia, tem um forte vínculo histórico e cultural com a Rússia, incluindo o uso da mesma língua. Estas divisões históricas se refletiram no mapa dos resultados eleitorais das últimas duas décadas.

Em comum, tanto no leste como no oeste do país, é a forte a influência política dos oligarcas. Ao contrário do que aconteceu na Rússia, onde Putin restringiu a ação dos oligarcas ao campo econômico, afastando-os de interferência na política, na Ucrânia umas poucas famílias dominam a política, controlando os partidos políticos. E isto não mudou com o Maidan.

Maidan, revolução colorida ou golpe?

O presidente Viktor Yanukovych, eleito democraticamente em 2010, era corrupto como corruptos foram todos os seus antecessores. Ele era um líder oriundo da região de Donbass, leste da Ucrânia. Quando procurou um acordo econômico com a União Européia, a contrapartida exigida foi uma terapia de choque neoliberal, que incluía privatizações em massa e alto desemprego.

Ele então tentou obter uma compensação de pelo menos 15 bilhões de dólares para aliviar os efeitos da “terapia”, sem nada conseguir. Com a economia em má situação, Yanukovych procurou os russos, atraindo desta forma a ira dos Estados Unidos.  Seu governo foi então derrubado em fevereiro de 2014, a partir dos protestos iniciados na Praça Maidan, pelo chamado Movimento Euromaidan. 

Após a tomada do poder, as novas autoridades baniram o partido Comunista e todos os partidos de esquerda do país. A intenção era de reorientar a geopolítica da Ucrânia a favor do Ocidente. Para tanto, era necessário derrotar a representação política do leste da Ucrânia, pró-Rússia, através de uma aliança de liberais pró-Ocidente com os ultra-nacionalistas fascistas, que consistiam a vanguarda do Maidan. 

Na seqüência da deposição do presidente ocorreram dezenas de milhares de deserções de militares para o Donbass ou para a Criméia. De acordo com o analista russo Ruslan Pukhov, diretor do Centro para Análises de Estratégias e Tecnologias e editor do jornal Moscow Defense Brief, os militares russos conseguiram convencer oitenta por cento das forças ucranianas na Criméia a desertar. 

Em março de 2014, a população da Criméia votou por avassaladora maioria (96,8%) pela união com a Rússia. Em abril, as regiões administrativas de Donetsk e Luhansk que constituem o Donbass, se proclamaram repúblicas independentes.

Ainda em abril, Kiev enviou tropas para o leste da Ucrânia, colocando o país a beira de uma guerra civil generalizada. Para tentar encerrar o conflito, em 2 de setembro de 2014 foi assinado um acordo entre o regime de Kiev e as autoridades políticas do Donbass.

O Protocolo de Minsk       

Esperava-se chegar à reconciliação política através de uma série de etapas que conduziriam à eleições livres, à  concessão de autonomia política ao Donbass, e ao controle por Kiev da fronteira com a Rússia. As negociações ocorreram na Biolorússia, monitoradas por observadores da OSCE (a Organização para a Segurança e Cooperação Européia), tendo como garantidores, França, Alemanha e Rússia.

O acordo deveria também incluir uma ampla anistia a todos os envolvidos no conflito, bem como o desmantelamento das organizações paramilitares de extrema direita que participaram do Maidan, e que também se envolveram nos confrontos no Donbass. 

Kiev não implementou quaisquer destas medidas, de forma que o conflito armado permanece. Para Mark Sleboda, a liderança de Kiev não tem a menor intenção de se encontrar com as autoridades políticas do Donbass, até porque sua própria legitimidade poderia ser colocada em questão. Entretanto, o protocolo de Minsk permanece como base para um acordo futuro.

Ukraine's President Volodymyr Zelenskiy visits positions of armed forces in Donbass region
Zelensky visita tropas na frente do Donbass, Ucrânia 9 de abril 2021. Serviço da Imprensa Presidencial / EPA

O governo Zelensky

Em 2019 foi eleito o comediante Volodymyr Zelensky para a presidência da Ucrânia, apoiado pelo oligarca Ihor Kolomoisky. Saiu derrotado por larga margem o então presidente e também oligarca, Petro Poroshenko.  Zelensky não conseguiu diminuir a corrupção no país, nem terminar a guerra no Donbass, como também fracassou no combate a pandemia do coronavírus. Ele está confrontando a corte constitucional do país para tentar impor as draconianas reformas requeridas pelo FMI.

Sua taxa de aprovação baixou de 75 para 30%, assim como a popularidade de seu partido, “Servidores do Povo”. Por outro lado, o partido mais popular do país atualmente é o que representa o leste da Ucrânia, “Plataforma de Oposição – Pela Vida”, também liderado por um oligarca – Viktor Medvedchuk.

Zelensky então fechou veículos de mídia, incluindo estações de TV, e está processando Medvedchuk por traição. Tudo para impedir o ressurgimento da oposição política no leste da Ucrânia.

Motivações dos EUA: geopolítica e o gasoduto Nord Stream 2

A administração Biden pode estar apoiando o acirramento da crise, mesmo ao custo de muitas vidas serem perdidas na Ucrânia, acredita Sleboda. Os EUA trouxeram recentemente para Odessa 350 toneladas de equipamentos militares, aumentando as tensões.

O aumento da influência política do leste da Ucrânia representa ao mesmo tempo o aumento da influência russa. Esta mudança geopolítica é algo que certamente a admistração Biden gostaria de evitar. Por outro lado, aos EUA interessaria controlar a segurança energética da Europa e, para tanto, a questão do gasoduto Nord Stream 2 é fator determinante.

Trata-se do segundo gasoduto ligando Rússia e Alemanha, e que possibilitará também a distribuição de energia a outras partes da Europa. Estando praticamente concluído, ele passa sob o Mar Báltico, dispensando as atuais linhas terrestres que atravessam a Ucrânia e Polônia, construídas ao tempo da União Soviética. Estas linhas possibilitaram que por anos Kiev exercesse pressão política sobre a Rússia.

Não apenas Kiev, mas também a Polônia e os Países Bálticos se aliaram aos EUA para impedir a implementação do Nord Stream 2. Os norte-americanos estão impondo sanções às empresas russas e alemãs envolvidas na construção do gasoduto. Empresas de energia européias que investiram na obra também sairiam prejudicadas.

As acusações contra a Rússia, de ter usado o agente neurológico novichok contra o opositor de Putin, Alexei Navalny, foram utilizadas sem sucesso para convencer a Alemanha a cancelar o gasoduto.  

Motivações da Rússia: ofensivas ou defensivas?

Para a Rússia, é de máxima importância a segurança das centenas de milhares de cidadãos do Donbass que têm dupla nacionalidade, bem como a dos 2 a 3 milhões de refugiados do leste da Ucrânia que acolheu quando os conflitos irromperam. Atualmente, como não existe fronteira entre a Rússia e o Donbass, seria muito mais fácil para a Rússia enviar tropas e armas para o leste Ucrânia do que para os EUA armarem o regime de Kiev.

Na primeira quinzena de março, Kiev começou a mover contingentes militares para a fronteira do Donbass, incluindo tanques, sistemas de artilharia, mísseis balísticos, bem como milhares de recrutas. Toda esta movimentação não foi noticiada na mídia do Ocidente, mas não passou despercebida em Moscou. Como dissuasão, a Rússia enviou cerca de 4 mil militares como parte de manobras na fronteira com a Ucrânia, acrescentando ao efetivo de 25 a 30 mil russos lá posicionados desde 2014.

O Centro para a Nova Segurança Americana (CNAS, na sigla em inglês), think tank em Washington, promoveu um debate no podcast Brussels Sprouts(Couve de Bruxelas) sobre o tema das tropas russas na fronteira com a Ucrânia. Os especialistas Michael Kofman e Maxim Samorukov admitiram que os efetivos russos colocados na fronteira com a Ucrânia não tinham uma postura ofensiva.

Sobre as opiniões alarmantes expressas por Pavel Felgenhauer, Sleboda as considera exageradas: “Felgenhauer não é especialista em estudos militares ou de segurança, embora ele se proclame um analista militar. A mídia ocidental recorre a ele quando quer apresentar pontos negativos, em geral falsos, sobre a Rússia”.

Motivações de Kiev: autopreservação do regime

Segundo Sleboda, o motivo real para Zelensky querer ampliar o conflito armado no leste da Ucrânia é fazer com que a Rússia intervenha para proteger o Donbass. A morte de milhares de recrutas ucranianos levaria provavelmente a um rompimento duradouro entre os dois países, o que seria no interesse de Kiev.

Ukrainian soldiers in a trench on the front lines facing Russian-backed separatists near the town of Zolote april 2021
Soldados ucranianos na trincheira, próximo à cidade de Zolote, no leste do país / Foto: AFP/Getty Images

Se os russos intervierem, Zelensky tentará convencer o governo alemão a sustar o acordo do gasoduto Nord Stream 2. O novo gasoduto representará um baque devastador na economia da Ucrânia. Cerca de 18% do orçamento nacional de Kiev é oriundo de taxas recebidas da Rússia e da Alemanha, pela passagem terrestre do gás em território ucraniano por meio das antigas linhas, que perderiam relevância.

O presidente e seu partido passam por uma fase de baixa aprovação. O acirramento da crise com a Rússia poderia trazer mais apoio popular, com um apelo ao nacionalismo extremado. Ao mesmo tempo, ele poderia reprimir a representação política da oposição política do leste do país.

Zelensky deve saber que não conseguirá recuperar o Donbass pela via militar, e provavelmente nem tem interesse nisto. Incorporar novamente ao país cerca de quatro a oito milhões de eleitores significaria fazer o pêndulo do poder político pender a favor dos ucranianos do leste, em um momento de baixa popularidade do presidente e de seu partido. 

Finalizando

Pode ser tentador para Zelensky apelar para um conflito militar interno para resolver seus problemas políticos e econômicos, quando muitas mortes de ucranianos poderiam ocorrer. Mas, mesmo considerando de um lado, o apoio do Ocidente e da Otan ao regime de Kiev, e de outro, o apoio ao Donbass pela Rússia, é bem pouco provável que a Rússia entre em conflito direto com os Estados Unidos e a Otan. A exceção seria caso a Ucrânia fosse incorporada à Otan, o que é inaceitável para Moscou. Resta ver se as tensões de abril irão retroceder ou inflamar a região.

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Redação

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