A Suprema Corte não tem o direito de errar por último

Um pouco de luz no fim do túnel da insanidade.

Do Consultor Jurídico

“Aí, esse Joaquim é sinistro. Tá enjaulando bacana”

Por Lenio Luiz Streck

O primeiro julgamento
Registro inicial 1: O título heterodoxo deste artigo por certo prenderá o leitor. Para saber o que quer dizer, terá que ler até o final.

Registro inicial 2. Decisões judiciais são feitas para serem cumpridas, mas também para serem criticadas. Não penso que a Suprema Corte tem o direito de errar por último. Ao contrário: um colegiado, a partir da contemporânea Teoria do Direito, tem o dever de buscar a melhor resposta ou a resposta adequada à Constituição. Não me parece que ainda dê para pensar que os tempos de Rui Barbosa são os nossos tempos. Aliás, crítica por crítica, estamos todos autorizados a discutir a decisão do julgamento da AP 470. A começar pelo fato de o principal crítico do julgamento ser o próprio presidente da Corte, ministro Joaquim Barbosa. Segundo a ConJur, de 21 de dezembro de 2012 (clique aqui para ler), “O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, disse, nesta quinta-feira (20/12) que uma leitura errônea feita por alguns de seus colegas no Plenário levou ao estabelecimento de penas muito baixas para os réus condenados no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão”.

Pronto. E nós vamos em frente.

Com efeito. O primeiro julgamento da história é contado por Ésquilo, na Orestéia. Foi tão importante e tão emblemático, que estabeleceu padrões que ainda vigoram, tais como o número de jurados, o voto de Minerva, a ordem das falas, privilegiando-se o direito de defesa, o in dubio pro reo, dentre tantos outros.

O julgamento da AP 470 também foi importante e emblemático, só que não pelos mesmos motivos. Não se criou um novo modo de julgar nem se aperfeiçoou o vigente. Nem haveria de ser, eis que as amarras democráticas vedam que isso que se configuraria em efeito surpresa. Depois que o jogo começa (essa nossa mania de analogias com o futebol…), mudar as regras significa mudar o jogo. Embora, em alguns momentos, houvesse alguns gols em off side (quando garoto, impedimento se chamava de off side).

De se ressaltar, contudo, que a publicidade do case e as suas particularidades envolvendo “gente do andar de cima” fizeram com que cada passo do julgamento fosse acompanhado em tempo real, comentado por gente que sabe muito, sabe pouco ou nada sabe daquela “arte”, expondo um problema que há anos denuncio (dentre tantos): estamos mal e precisamos repensar como se lida com o direito em terrae brasilis. Nada como o caso concreto para denunciar a importância de uma teoria adequada que dê suporte ao intérprete… Em tempos de simplificações e esquematizações, o déficit teórico gritou a plenos pulmões nossas limitações, revelando o que andamos fazendo e anunciando como seguiremos fazendo justiça (sic)… E isso também foi transmitido em tempo real!

A doutrina e a cultura manualesca
Está registrado nos anais da casa, constará nos votos que serão divulgados na íntegra no site do Supremo e, inclusive, pode ser visto pelo YouTube, que, dentre os penalistas (e processualistas penais) pátrios mais citados, estão Damásio de Jesus, Mirabete, Heleno Fragoso, Nelson Hungria, Guilherme Nucci.

Claro que eles não foram os únicos citados. Eu mesmo fui referido, bem como ilustres juristas que trabalham o Direito e o Processo Penal na atualidade, v.g. Aury Lopes Jr., André Callegari etc. Mas os efeitos desse protagonismo do “fantasma do natal passado” podem ser claramente sentidos.

Vale destacar que minha coluna aqui na ConJur foi o espaço que elegi para trabalhar todas essas questões que se desenvolviam ao longo do julgamento, tais como “Direito AM-DM” (clique aqui para ler), “O Fator Júlia Roberts” (clique aqui para ler) e “Aqui se faz, aqui se paga ou o que atesta o malatesta?” (clique aqui para ler) e outras que referirei, mas como esse é um comentário sobre o julgamento como um todo, faz-se importante retomar tais pontos para demonstrar como o descompasso teórico gera efeitos danosos.

Houve recorrência à citação de alguns manuais de baixa densidade teórica. Isto porque um manual — regra geral — é algo simplificador (cada um com seus propósitos, que devem ser respeitados). Efetivamente, no mundo do realjuridik, manuais (algo como “Comentários ao Código Penal”, recheado de verbetes — coisa muito comum na realjuridik), por vezes, são caminhos possíveis para se introduzir de forma leve um determinado debate complexo. Mas é certo que nenhuma discussão jurídica de nível profundo pode se resumir a um instrumento que deveria ser meramente introdutório (sim, eu esperode um julgamento na Corte Suprema uma maior sofisticação; o STF é, sim, um espaço de discussão de grandes teses, a despeito de quem pense o contrário).

De todo modo, não parece ser a pretensão dos autores que se dedicam aos manuais ou compêndios com verbetes prê-à-porters. Esse material se destina, stricto sensu, a graduandos e cursos/escolas de preparação para concursos. Mas, no julgamento do mensalão, viraram argumento de autoridade. Sem dúvida, é um sintoma da crise do Direito. Com relação a Hungria, dá a impressão que nada foi produzido depois dos anos 50 no Brasil… Vendo o julgamento da AP 470, dá a impressão que a doutrina é “singelíssima”, porque “cabe nos mais singelos manuais”. Na maioria dos manuais que foram citados pelo STF no julgamento da AP 470, há uma baixa densidade constitucional, na medida em que não há grandes referências — na verdade, raras — à Constituição (ou à necessidade de uma filtragem dos Códigos em face do advento da CF/88). E assim por diante.

Outra questão é a relação do discurso jurídico com a Teoria do Direito. O trato da “questão da verdade” se mostrou extremamente precário. No julgamento da AP 470, ouvi vários causídicos falarem na e sobre a verdade. Ouvi um deles dizer que a verdade “estava nos autos” e que “as provas fala(ri)am por si” (sic) (ao que entendi, o processo revelaria uma verdade intrínseca, é isso?); outro foi para a outra “ponta” da filosofia, ao verberar, com incrível convicção, que “a verdade não existe; que é relativa”. Como assim, Doutor? Se ela não existe… então, é por isso mesmo que o que Vossa Excelência acabou de dizer não é verdadeiro. Bingo! Vossa Excelência caiu em um paradoxo. Um pequeno registro, a latere: vários ministros do STF também falaram em verdade real (isso será assunto de uma Coluna Senso Incomum).

Domínio do Fato, Mal-Atesta etc.
O julgamento também desnudou a falta de tato que temos com a doutrina penal especializada, principalmente com a estrangeira. Raramente as lemos no original. Normalmente, ocupamo-nos de referências de referências (ou referências de referências de outras referências). Por exemplo, a teoria do domínio do fato foi posta pelo PGR de forma muito singela e recebida como algo inovador que viria para responder ao caso concreto. Não parece que a teoria do domínio do fato seja algo novo…! O que foi feito — ou tem sido feito — é uma transposição acrítica e desfocalizada de algo complexo, da mesma forma como fizemos com o ativismo, o realismo, a ponderação[1] etc. (somos “bons” nisso). No fundo, o domínio do fato se transformou em um álibi teórico para justificar um conceito previamente formulado. Trabalhei a questão aqui na ConJur, no artigo “Domínio do fato tipo ponderação” (clique aqui para ler), enquanto assistia aos comentários desnorteados que eram feitos nas grandes emissoras de televisão.

Pior do que isso foi a ressurreição do velho Malatesta, autor do século XIX muito citado e pouco lido (pouco mesmo). Eu tive a pachorra de ver o que ele “mal-atesta”. Pois com Malatesta, disse-se no julgamento da AP 470 que “o ordinário se presume; só o extraordinário se prova”. Ora, digo eu, o-ordinário-que-se-presume-é-o-estado- de-inocência, garantia essencial ao Estado Democrático de Direito, que, por mais de uma vez (e pela boca de mais de um ministro), foi tratada como passível de relativização (essa posição, aliás, foi muito elogiada na imprensa, mormente pelo Imortal Merval Pereira, que se mostrou um bom torcedor contra os réus, deixando de lado a imparcialidade que se exige de um jornalista que ocupa um espaço como o dele).

Fico a imaginar se o advogado da causa — tivesse ele lido Malatesta — levantasse um “pela ordem, Excelências” para mostrar que o festejado Dr. Nicola (esse é nome do Malatesta), duas páginas depois, não dizia exatamente isso. E se o STF não lhe concedesse a questão de ordem, sob o pretexto de que somente poderia levantar “questão de fato”, o Doutor — que, ao que consta, foi escolhido como um dos 100 maiores líderes do país — sic, conforme a Revista Época (com direito a um longo elogio da lavra do Dr. Kakay, que, de forma lapidar, disse já ter previsto em 2005 que a “causa do mensalão estava perdida” — sic e mais um sic)[2] — poderia redarguir: “mas, Excelências, falar da história é, também, uma questão de fato; e fatos são eventos; e eventos são textos”. Pois é. No caso, a interpretação equivocada de Malatesta não fazia justiça aos fatos históricos… (se compreendem o que quero dizer). Exatamente por isso era cabível o “pela ordem”! Já pensaram o furdunço que isso poderia dar?

Mas, sigo. Quando se fala em “flexibilização de garantias”, é porque nem o básico anda sendo bem feito. O professor Joaquim Falcão — procurando salvar essa “flexibilização” — ainda afirmou: “A terceira conclusão é que a doutrina não pode exigir uma prova legal impossível, para punir um crime. Não é apenas a ordem escrita e gravada da autoridade, seu próprio suicídio legal que pode ser admitida em juízo. Há múltiplos indícios convergentes. Há o conjunto probatório dos fatos, repetia Joaquim Barbosa. Exigir a prova impossível é querer absolver o réu, sem julgá-lo. Se no futuro juízes condenarem sem provas ou indícios, apenas pelo cargo que o réu ocupa, o Supremo controlará o excesso”. Ou seja, para o Dr. Joaquim Falcão, isso estaria correto…! Como assim, Professor?

Imagino como ficariam os já abarrotados escaninhos da corte constitucional… Imagino também o trabalho da Defensoria Pública ao manejar tantos REs. Ou só devem “subir-os-recursos-de-quem-tiver-bons-(e caros)-advogados”? O professor Joaquim Falcão não levou em consideração isso? Em que país estamos? Quer dizer que podemos flexibilizar as provas e depois confiar que o STF faça a correção? Confesso que não entendi. E quem corrige o Supremo, Professor Falcão? O Supremo tem o direito de errar por último? Minhas perguntas são apenas retóricas. Já sei a resposta!

Veja-se, em linha similar, o modo como a possibilidade de condenação com base em indícios-não-judicializados (e crivados pelo contraditório) foi posta em plenário (em que pese o zelo em não dizer expressamente o que se estava a defender, tamanho o problema que isso simbolizava), verbis:

“A prova há de ser considerada no julgamento criminal, sem dúvida, quando realizada sob o contraditório, conforme estabelecido expressamente no art. 155 do CPP. Isso não significa, porém, que o juiz não possa considerar para a formação de sua livre convicção, elementos informativos colhidos na fase de inquérito.

Ainda:

Essa função persuasiva da prova é a que mais bem se coaduna com o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, previsto no art. 155 do CPP e no art. 93, IX, da Carta Magna, pelo qual o magistrado avalia livremente os elementos probatórios colhidos na instrução, mas tem a obrigação de fundamentar sua decisão, indicando expressamente suas razões de decidir.” (ministro Luiz Fux).

Desfiei tais questões em “Direito AM-DM” (leia aqui), mas a doutrina (em geral) assistiu calada! Dia desses, li uma entrevista de um jovem penalista, que fez uma aguda e, digamos assim, animada crítica à questão da interpretação do crime de lavagem de dinheiro e ao uso da teoria do domínio do fato pelo STF. Gostei… Só lamento que tenha sido um discurso sobre um cadáver. A crítica do jovem causídico chegou tarde. Inês é morta. Aliás, terminado o julgamento, muitos haverão de aparecer com discursos do mesmo jaez. Vigorosos. Duros. Implacáveis… dizendo o que já foi dito. E sem citar fontes, é claro (aliás, quem cita fontes no Brasil é garrafa de água mineral!). Discursos sobre cadáveres, sim. Mais ou menos nos moldes como faz um famoso senador gaúcho nos seus discursos no Senado: depois que o fato está consumado, muito brilho na fala (já falada)! Mas ele é duro. Incisivo!

O senso comum doutrinário
O que restou claro? Sem dúvida, o julgamento do mensalão representou um reforço do protagonismo judicial. Bem ao gosto de boa parte dos processualistas de terrae brasilis. Em vários momentos o STF falou desse protagonismo, do papel quase heroico que assumia a Suprema Corte no combate à corrupção. Também isso ficou patente quando se invocou a “livre apreciação da prova” e/ou o “livre convencimento”. Aliás, gostaria de ver a crítica da comunidade jurídica sobre isso, mesmo que agora Inês esteja morta.

Relembro — e não me canso de relembrar isso — que a aposta no protagonismo judicial é produto de um resquício (ainda forte) das teses do realismo jurídico. Nesse sentido, isso é bem detectado e denunciado pelo jusfilósofo e constitucionalista espanhol Alfonso Garcia Figueroa, quando faz uma crítica a várias categorias centrais da motivação judicial, mostrando que existe um certo realismo (jurídico) inconsciente em alguns juristas. Há pouco, fiz uma coluna (“O passado, o presente e o futuro do STF em três atos”), analisando a forte presença das teses realistas no seio da nossa Suprema Corte (leia aqui).

Na verdade, repristinam-se, de forma descontextualizada e incompatíveis com o atual contexto jurídico, velhas teses voluntaristas de um momento de fragilidade do Direito, em que esse tipo de postura (Jurisprudência dos Interesses, Escola do Direito Livre, Realismo Jurídico) ganhavam espaço em face do enfrentamento necessário ao velho positivismo. No Direito processual, por exemplo, é nesse momento (final do século XIX e início do século XX) que surgem as teses de autores como Anton Menger e Franz Klein, que apostam no poder de juiz para superar a “frieza do Direito”, que se esgotava no texto legal.

Na doutrina processualista, por exemplo, vemos sendo citados frequentemente as figuras de Carnelutti e Chiovenda, este último sendo utilizado pelo ministro Luiz Fux para dizer que “o juiz tem o direito de fazer coisa julgada, e sua palavra é a norma, ainda que haja divergências dentro do plenário”, ressuscitando um velho álibi teórico que legitima o “livre” convencimento do juiz. Sim, isso também fez parte do julgamento da AP 470.

Aliás, com o livre convencimento vem a livre apreciação da prova, lugar comum na AP 470, e que agora surge sob uma nova feição: “livre convencimento motivado”. Criticados pelo uso da prova indiciária (produzida sem contraditório) durante o julgamento, os ministros vale(ra)m-se do livre convencimento motivado como argumento, pois agora — e estou repetindo ipsis literis o que foi dito — “a prova indiciária pode ser utilizada, mas não pode ser a única fonte para a formação do livre convencimento do juiz”.

Como assim — “livre convencimento motivado”? Quer dizer que o juiz pode analisar a prova como quer e decidir como bem entende, bastando que haja qualquer tipo de prova, ou, pior ainda, indícios de autoria ou materialidade? Ora, Otelo tinha motivação para matar Desdêmona; entretanto, essa motivação não tinha justificativa. Todos nós temos motivos para fazer algo; daí a estarem tais motivos justificados a distância é grande.

Portanto — e agora que estamos em véspera de aprovação de novos Códigos Processuais — está na hora de definirmos o que é efetivamente “a fundamentação” de uma decisão. E, mais ainda, chegou a hora de decidirmos se, efetivamente, queremos tratar o processo à luz dos paradigmas filosóficos ou se queremos “fazer” processo a latere daquilo que é condição de possibilidade, isto é, a filosofia.

Outro ponto foi o silêncio — ou apoio — de parte da doutrina dita mais progressista (seja o que isso queira dizer) em relação à tese da Folha de S.Paulo, encampada, por exemplo, pelo ministro Dias Toffoli, de que prisão, agora, é “só para quem precisa”.

Veja-se: meses antes, o próprio ministro Toffoli, sem pestanejar, condenara a 13 anos, 4 meses e 10 dias o deputado Natan Donadon (PMDB-RO), primeiro parlamentar a ser condenado pelo STF em matéria criminal. Paradoxalmente, em um segundo momento, manifesta-se como-opositor-ao-cárcere-enquanto-instrumento-punitivo, relacionando-o “com o período medieval” (ao mesmo tempo em que o ministro da Justiça disse que se mataria, caso fosse preso). Também, no momento oportuno, não me furtei a esse debate, conforme se pode ler no artigo “Como Assim  Prisão só para quem precisa?” (leia aqui).

É esse tipo de confusão teórica que pode — mediante discurso sedutor e aparentemente libertário — legitimar que sejam tomadas medidas que reproduzem uma lógica de direito legitimador do “establishment” que não se admite desde 1988.

Outro claro exemplo se vê a partir de considerações acerca do regime de cumprimento. Falo da hipótese de encaminhamento para a prisão domiciliar daqueles que deveriam iniciar a pena em regime semiaberto em virtude da inexistência de vagas. Bom argumento. Entretanto, não seria bom se, primeiramente, fosse questionada a possibilidade de uma “reforma de fato” na lei penal a ser perpetrada via decisão da Corte? A propósito desse assunto, ver artigo de André Karam Trindade (leia aqui).

Em um segundo momento, partindo do pressuposto que tal ato fosse constitucional, a benesse deveria ser universalizada. Com efeito, se é assim, proponho isonomia. Igualdade de tratamento. Ou seja, todo preso que faça jus à progressão de regime e não tenha recebido o benefício em virtude da ausência de vagas deverá ser tratado de igual maneira. Do contrário, temos a clara confissão de que tratamos ricos e pobres de forma distinta, legando à isonomia o papel de mero figurante em nosso sistema jurídico.

Aliás, por falar em isonomia, nosso sistema penal “pródigo” em conspurcar a isonomia, para o bem e para o mal (aliás, na entrevista do jovem penalista que falei anteriormente, há elogios ao Código Penal; ele diz que não necessitamos de um novo Código; claro, sem dúvida — do mesmo modo como em 1890 se dizia que não era necessário alterar o Código Criminal do Império, que substituiu o livro V das Ordenações Filipinas…!). Sendo mais claro: para o sonegador de impostos, nosso sistema concede a benesse que é negada a quem furta… Para o traficante primário, dois terços de desconto na pena; já para o furto, nem falar em descontar a pena… (não vi uma linha até hoje sobre essa falta de isonomia…; ou isso não seria inconstitucional?). E esse é um bom Código… Vamos mais adiante ou paramos por aqui?

O ônus da prova
Na AP 470, debateu-se, por horas, quem tinha o ônus de provar o quê. Se era o Ministério Publico ou a defesa. Também comentei na ConJur a questão, mas repito a reflexão: quase 25 anos de CF e ainda não sabemos quem deve provar o que em processo penal? E a dificuldade em realizar a dosimetria da pena? Em delimitar os marcos ou qual seria a lei aplicável?

Ainda: a possibilidade de incorrer em prescrição deve influenciar o magistrado a avaliar aquela conduta praticada anos antes como merecedora de punição maior? A pena a ser aplicada pela infração de determinada regra deve ser diferente a depender de quanto tempo se passou entre a conduta delitiva e o julgamento? Veja-se que, neste ponto, os manuais poderiam ajudar no esclarecimento da matéria (não há qualquer ironia nessa minha afirmação, uma vez que, efetivamente, a maioria dos manuais trata adequadamente dessa temática). PS: considere-se, ademais, que o STF aceitou a tese de que no crime de quadrilha ou bando, morrendo um dos quadrilheiros — se ele for o quarto membro — desaparece a tipificação.

D’outra banda, como pensar nos dias de hoje que as circunstancias do artigo 59 são compatíveis com a Constituição? Num Direito Penal do fato, a personalidade do agente deve entrar no computo da pena?[3]

Estamos punindo alguém pelo que ele fez ou por ele ser quem é? Isso parece ser bem velho, pois não? E o que é “personalidade do agente”?[4] Ferrajoli já há muito tempo fala do princípio da secularização do Direito. Vamos acreditar em Ferrajoli. Ele tem razão. O Direito Penal não deve punir vícios e comportamentos do indivíduo.[5] Nem sua conduta deve servir para agravar a pena. Além de que “a personalidade” é algo bem difícil de “sacar”, pois não?

E ainda faltam os embargos?
Não se sabe se o julgamento terminou depois de 138 dias. Segundo leio na Folha de S.Paulo por um de seus comentaristas especiais sobre o mensalão, ex-integrante do governo, “agora vem os embargos infringentes” (o comentarista sequer discute se cabem ou não cabem). Pois é. Em artigo na aurora do julgamento, sustentei aqui o não cabimento dos embargos infringentes. Não vou repetir agora os argumentos. Mas o Supremo Tribunal terá que decidir essa preliminar antes de examinar os tais embargos, que inexoravelmente acontecerão. Veremos o que dirá a Suprema Corte, nesse resto de julgamento. Trata-se de interpretar o Regimento Interno de acordo com a Constituição ou a Constituição de acordo com o Regimento Interno. Qual será o resultado? Aposto aqui na tese do ministro Gilmar Mendes, que entende não estar recepcionado o artigo 333 do RISTF.

A prisão dos réus
A jurisprudência do Supremo Tribunal foi construída nos últimos anos no sentido de que a prisão se justifica apenas nos casos de sentença condenatória transitada em julgado. O STF vem julgando assim. O ministro Joaquim Barbosa diz que, no caso do mensalão, está-se diante de uma coisa nova, porque é última instância. Confesso que não entendi as razões pelas quais o STF não estaria vinculado à sua própria jurisprudência. Por que o DNA do “assunto prisão” não se aplicaria em julgamentos originários?

Advirto que escrevo este artigo antes de o ministro Joaquim Barbosa decidir acerca do pedido feito pelo procurador-geral da República, que quer ver os réus atrás das grades já durante o Natal. Arrisco um palpite: Há dois motivos para o ministro negar o pedido de prisão: Primeiro, os limites semânticos do texto Constitucional (como sabemos, embora um texto não contenha a sua própria norma, ou seja, o texto não trás em si-mesmo-o-seu-sentido, não se pode atribuir “qualquer norma ao texto”; eis porque existe aquilo que podemos chamar de limites semânticos no plano da hermenêutica). Se, por exemplo, um deputado só pode ser preso em flagrante e depois de sentença transitada em julgado — e como a decisão do STF que cassou os mandatos não transitou — então um parlamentar não pode ser preso (porque ainda é parlamentar, formalmente); não consigo atribuir outra norma ao texto constitucional, por mais que me esforce; segundo, a jurisprudência do STF aponta em sentido contrário. Acertarei na minha previsão?

A derrota da dogmática
Por essas e outras é que afirmei (e afirmo) que a dogmática jurídica foi a maior derrotada no julgamento do mensalão. Dogmática jurídica: Leia-se “imaginário jurídico dominante”. O pensamento dogmático mostrou e provou (não com base em indícios, frise-se — não resisto à ironia) seu grau de defasagem face à Constituição e os efeitos deletérios disso. De todo modo, olhando o que estão ensinando nas Faculdades de Direito e o tipo de literatura mais utilizada, não há muito espaço para dizer “céus, que surpresa!”. É inexorável que os livros usados nas faculdades e nos cursinhos de preparação acabem nas mesas de juízes e promotores (e de advogados; e de ministros). Parafraseando Vargas Llosa, em seu recente A Civilização do Espetáculo, vivemos uma dogmática do espetáculo, porque o nosso “mercado jurídico” criou os mecanismos de difusão que nos permitem assistir a esse “excesso de espetáculo”. Nessa “dogmática do espetáculo”, tudo é “relativo”. Pode tudo. Escreve-se de e sobre tudo, de qualquer modo. Resultado: se tudo é, nada é…!

E falta também coerência. Os mesmos que sempre aplaudiram um suposto livre convencimento, transformaram o ministro Lewandowski em inimigo número 1 no julgamento, quando divergiu (acertadamente em alguns momentos; em outros não) do voto proferido pelo ministro relator. É bem verdade que o trabalho minucioso realizado pelo ministro Joaquim Barbosa foi indispensável para que se pudesse julgar o caso (registro minhas homenagens), mas essa idolatria que se tem feito aos ministros da Suprema Corte em certas ocasiões de comoção nacional (v.g. julgamento das uniões homossexuais, células tronco, cotas raciais etc.) constituem-se em verdadeiro indicador de nossa pouca familiaridade com as instituições num Estado Democrático de Direito, além de incorrer no sério risco de passar a ideia de que o papel do STF é concordar com o clamor das maiorias. Veja-se que o atual presidente da Suprema Corte, fosse hoje candidato a presidente da República, teria mais votos que um figurão como Aécio Neves, que está há anos na política, tendo sido governador e atual senador… Isso não é pouca coisa. O que se passa na República?

Parece que estamos pagando as contas do passado de impunidade do andar de cima. Uma espécie de catarse. Agora, quando o Supremo Tribunal aplica penas pesadas a um grupo que tem o perfil daqueles que sempre usaram botas (faço a alusão a um dos meus bordões que busquei em La Torre Rangel: La ley es como la serpiente; sólo pica a los descalzos), não pode surpreender que o principal protagonista, o ministro relator, seja transformado em herói, com direito à máscaras estilizadas de carnaval e passeatas no Rio de Janeiro. É o imaginário social se pronunciando. Dia destes, no Rio de Janeiro, na praia, um amigo meu, procurador de República, acompanhado de seu pai, viram um vendedor de bijuterias dizendo em voz alta, exultante: “Aí mermão; esse Joaquim Cruz é sinistro; tá enjaulando os bacana.” Claro que confundia o nome do ministro relator com o atleta olímpico. Mas, com certeza, tinha tudo a ver.

Qual é o papel da Suprema Corte? Penso que podemos apreender muito com a leitura da Odisséia. E nos abeberarmos dos ensinamentos de Ulisses, que pede para os seus grumetes para que o amarrem no mastro e, sob hipótese alguma, obedeçam qualquer ordem (dele, Ulisses), em sentido contrário. Os grumetes deveriam obedecer apenas a primeira ordem. A sobrevivência de Ulisses depende disso. Porque ele sabe que, sem as amarras, não resistirá ao canto das sereias. Ele tinha convicção de que a única maneira de sobreviver era ser amarrado ao mastro, para, assim, não sucumbir ao canto das sereias.

Sim, certas correntes nos salvam de nós mesmos!

Numa palavra final
Quando afirmo que a grande derrotada no julgamento do mensalão é a dogmática jurídica, estou me referindo ao modo como estamos “fazendo” o Direito. Não é implicância minha, não. Trata-se de uma crítica que procuro elaborar ao “imaginário prevalecente no mundo jurídico”, onde existe uma espécie de “discurso instituído”, em que os locutores desprovidos de “competência legítima” — e aqui recorro à clássica lição de Bourdieu (do livro Economia das Trocas Linguísticas) — se encontram de fato excluídos dos universos sociais onde ela é exigida, ou, então, veem-se condenados ao silêncio.

A dogmática jurídica, no modo como elabora o “discurso dominante”, “criminaliza”, por “porte ilegal da fala”, aqueles que não “falam a sua língua”. E qual é a sua língua? A língua do discurso pronto e acabado, da cumplicidade entre os partícipes do “butim”. Forma-se, assim, uma dominação simbólica, que não se mostra como tal por não implicar eventualmente algum “ato de intimidação”. E esse poder de violência simbólica só se realiza sobre alguém que esteja “predisposto a senti-la”.

É nesse mercado que a dogmática encontra o seu locus privilegiado, o mercado das trocas simbólicas de poder, onde o reconhecimento extorquido por esta violência, como acentua Bourdieu, é “tão-invisível-quanto-silenciosa”. O emissor não coage; é o receptor que reage. O discurso vem pronto, como “a casa tomada”, para lembrar Cortázar.

Quando lanço críticas a uma parte do julgamento — por exemplo, à absolvição de Duda Mendonça baseada equivocadamente em uma Circular do Banco Central, como se pudéssemos delegar ao Banco Central ou às Agências Reguladoras a tarefa de estabelecer descriminalizações de condutas —, estou tão-somente trazendo a lume certa tradição jurídico-crítica produzida nos últimos 30 anos, denunciando o senso comum teórico. Não falo apenas de uma crítica com raiz filosófica; falo, fundamentalmente, da matriz constitucional, da necessidade de uma nova teoria das fontes, de uma nova teoria da norma, de um novo modo de interpretar o Direito e, finalmente, de uma teoria da decisão que ainda não temos. O julgamento do mensalão claramente nos mostrou esses gaps.

Faço isso por amor ao debate e para fortalecer o espaço acadêmico na imbricação com as práticas judiciárias. É minha obrigação dizer que, quando um ministro diz que “a doutrina constitucional é pacífica. No âmbito da aplicação, a lei é que deve nortear a interpretação da Constituição”, é porque temos que falar muito sobre o direito, para imitar, aqui, o livro Precisamos falar sobre Kevin. Como assim, ministro? A lei deve nortear a interpretação da Constituição? Não seria o contrário? Quantos livros de direito constitucional foram escritos para demonstrar o contrário do que disse o ministro?

Viram como a doutrina não mais doutrina? Não me surpreenderei se, logo, logo, isso será indagado em concurso público. Sim, porque não faltará algum livro do tipo “Direito Constitucional simplificado” que, de forma acrítica, repita esse conceito.

Tenho, finalmente, a obrigação de dizer que o STF, ao definir a perda dos mandatos, inovou, indo além da Constituição. Por mais que houvesse um clamor público contra os réus — lembremos das correntes de Ulisses —, isso não justifica retirar do Parlamento a prerrogativa de caçar os mandatos.

Desde Friedrich Müller conhecemos o princípio da congruência prática. Se um dispositivo da Constituição diz, aparentemente, o contrário do que diz o outro, é porque devemos ir a fundo e ver as razões disso. Não seria porque, no caso do artigo 55, é possível que o Parlamento, examinando um determinado caso, resolva não cassar o mandato? Mas o mandato não é do povo? Não existem juízes e promotores (sem falar de advogados públicos) exercendo a função, mesmo que condenados por determinado crime? Isso que eles não são parlamentares. Não estou dizendo que, no caso concreto, os parlamentares condenados na AP 470 não merecessem ser cassados. O que quero dizer isso é uma questão de princípio e não uma questão de política ou de opinião pública. Em Victor Hugo há o exemplo mais perfeito do que seja um princípio. Em Os últimos Dias de um Condenado, Victor Hugo faz uma ode contra a pena de morte. Mas não diz se o réu é culpado ou inocente. E não conta qual é o crime. Ele, simplesmente, é contra a pena de morte “por princípio”. E sabem por que ele não contou no livro esses detalhes? Para que os leitores não se contaminassem com o caso concreto. Um princípio é isso.

Ah, mas se o Parlamento não fizer? Bom, isso é o custo da democracia. Nos Estados Unidos, os deputados-réus que não foram cassados não se reelegeram. O povo — poder soberano — puniu-os.

O que fica disso tudo? Várias lições. Para mim, a principal é que a doutrina tem que recuperar o seu poder de “constrangimento epistemológico”. Deve (voltar a) doutrinar (se é que um dia já o fez nos moldes do que ocorre em países adiantados). Se o STF julgou do modo como julgou, é (também) porque teve pouquíssima contestação. É que o imaginário jurídico, forjado pela nossa dogmática jurídica, foi acostumado a se acostumar com o adágio de que “o Direito é aquilo que o Judiciário diz que é”.

E o jurista “médio” foi perdendo a sua capacidade de contestação. Desacostumou-se a criticar. O imaginário jurídico parece que imita as máximas de Martín Fierro, de que no le des de qué quejarse; y cuando quiera enojarse vos te debés encoger… Assim funciona a dogmática jurídica ou mais ou menos assim… José Hernández, autor de Martim Fierro, pode explicar isso mejor!

Ou parece que o pensamento dogmático tradicional — que acaba sendo o dominante — repete os conselhos do personagem de Machado de Assis que, no aniversário de 21 anos de seu filho, explica-lhe a teoria pela qual este poderia se dar bem vida afora. Para o pai, o filho tinha os requisitos para ser um “medalhão”: “tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim”. Observemos uma das máximas da teoria: “Longe de inventar um Tratado Científico da Criação de Carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar…”. É bem fácil, útil e proveitoso… Outro conselho importante do pai para o filho-candidato-a-medalhão: “Deves reduzir o intelecto à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum… O vocabulário deve ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim… Eis a receita do sucesso”. Ao final do diálogo com o filho Janjão, o pai arremata: “Rumina bem o que eu te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavel”.

E foi assim que fomos forjando esse imaginário. Fomos simplificando. E sem criticar, foi sendo formatado um discurso politicamente “correto” e “autoritário”, em que o crítico é tido como desviante.

“O jurista para se dar bem não deve criticar o Poder Judiciário” — talvez o personagem de Machado (pai de Janjão) assim aconselhasse o filho, acaso este fosse seguir a carreira de causídico. “Não faça crítica. Escreva simples. Sem notas vermelhas”. Eis a receita do sucesso. Enfim, no le des de qué quejarse…

[1] Particularmente, sou, digamos assim, invocado com a ponderação, acriticamente importada pela nossa comunidade jurídica. Na verdade, o que tem sido aplicado é uma vulgata do que disse seu criador. Estou falando de Robert Alexy e não de Philipp Heck (este quem, na verdade, iniciou a discussão no seio da Jurisprudência dos Interesses). Desafio que me mostrem uma decisão na qual tenha sido construída a famosa “regra da ponderação”. Todavia, há milhares de menções a esse enunciado performativo, como se fosse a pedra filosofal da interpretação. E mais nem precisa ser dito. Deixo para outros colunistas mais versados em literatura estrangeira para falar sobre a ponderação…!

[2] Mas, então, por que defenderam os réus, se sabiam que iriam perder?

[3] Não tenho encontrado – com raras exceções (p.ex., Salo de Carvalho e Fábio D’ávila) – penalistas que sustentem (denunciem) que, no Brasil, tem-se um direito penal do autor, mormente se examinarmos o conteúdo do art. 59 do CP, além da relevante circunstância de que a reincidência continua agravando a pena (peço perdão se estou esquecendo outros autores). Consegui, como Procurador de Justiça, a consolidação, por um período de mais de dez anos, da tese da inconstitucionalidade da reincidência junto à 5ª. Câmara do TJRS. Essa tese foi abandonada pela Câmara quando do advento da SV n. 10. Mas ainda continuo peleando, tentando convencer o órgão de que a SV n. 10 não se aplica a questões de não recepção (inconstitucionalidade superveniente).

[4] Eu não sabia o que era “personalidade”. Assistindo a uma entrevista de Guilherme Nucci na TV Cultura, dia desses, aprendi que é “nosso modo de ser”. Ah, bom.

[5] Para quem acha o Código Penal atual “bom”, necessitando apenas alguns ajustes, é bom perguntar sobre crimes como “casa de prostituição”, “dano” etc.

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. 

Revista Consultor Jurídico, 22 de dezembro de 2012

Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador