Aparência e realidade (2), por Sérgio Sérvulo da Cunha

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Aparência e realidade (2)

por Sérgio Sérvulo da Cunha

Quando os tanques saem para as ruas e derrubam o governo, fica difícil disfarçar a ocorrência do golpe. Os militares – a começar do coronel Olympio Mourão Filho (aquele mesmo que forjara a carta Brandi), que no dia 31 de março de 1964 saiu de Juiz de Fora, com suas tropas, em direção ao Rio de Janeiro – disseram portanto que se tratava de um contragolpe: uma reação contra os que, dentro do governo,   preparavam uma intentona comunista.

O golpe na verdade se consumou na madrugada de 1° para 2 de abril, quando o senador Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Congresso, declarou vaga a Presidência da República. Andei pesquisando essa sessão do Congresso, atrás de confirmação para o que se diz: que, no momento dessa declaração, Tancredo Neves teria gritado “canalhas! canalhas! canalhas!” E descobri, na internet, um vídeo dessa sessão, um documento impressionante, que merece ser visto.

Esse vídeo mostra a leitura da carta deixada por João Goulart em mãos de Darcy Ribeiro, chefe de sua Casa Civil, informando ao Congresso que viajara para o Rio Grande do Sul, em defesa do seu mandato. Não obstante sabedor de que o presidente estava em território nacional, o presidente do Senado, após exaltada peroração, declarou vaga a Presidência. A câmera, ao passear pelo plenário, mostra a fisionomia de Tancredo, o corpo tenso, a cabeça encolhida, um felino prestes a saltar. Mas no momento em que Auro comete a felonia mercê da qual entra para a história, em meio ao tumulto e aos protestos que ressoam, não se ouve Tancredo; é possível distinguir, porém, a voz que clama: golpistas!, golpistas!.

Golpistas não eram os militares: eles eram revolucionários. Também vale a pena ler o “ato institucional” – escrito por Francisco Campos (o mesmo que em 1937 redigira a “polaca”), e assinado pelos ministros militares – que é uma joia de ortodoxia constitucional: os chefes da revolução vitoriosa representam o povo, e graças ao apoio dele recebido exercem o poder constituinte, de que o povo é o único titular; seu objetivo é “assegurar ao novo governo, a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil.”

Mantém-se a Constituição, e, por isso, não há golpe; mantém-se a continuidade democrática, com a ligeira ressalva de que são suspensas as garantias de vitaliciedade e estabilidade da magistratura (art. 7°), permitida a suspensão de direitos políticos e a cassação de mandatos (art. 10). Por isso, as violações de direitos fundamentais ocorrem no plano dos fatos, como suspensas então ficaram, de fato, as garantias individuais, a começar do habeas corpus.

O “ato institucional”, que não tinha número, pois se imaginava único, inaugurou uma longa série de normativas ditatoriais, que só viria a cessar com a assim chamada emenda constitucional n° 11, de 13 de outubro de 1978 (que entrou em vigor no dia 1° de janeiro de 1979); nesse intervalo, haviam sido editados pelo poder armado mais 12 atos institucionais, 68 atos complementares, 1.327 decretos-lei. Por longos anos o povo brasileiro deixara de eleger seu presidente e os governadores dos Estados. A maioria da população deixara de eleger seus prefeitos. Mantivera-se o direito de voto, em geral, apenas para escolha de representantes nas casas legislativas: um voto controlado por leis excepcionais, de legitimidade e constitucionalidade duvidosas, apertado na artificialidade de partidos políticos consentidos. Mesmo sobre esse restrito canal de participação popular recaiu constantemente o gládio repressor: inúmeras casas legislativas foram fechadas, e, por três vezes, o próprio Congresso Nacional. Suspenderam-se direitos políticos de parlamentares, cassaram-se mandatos; buscou-se manter sempre, por expedientes violentos, a docilidade desses plenários; retiraram-se as prerrogativas do Congresso, criou-se a aprovação de mensagens do governo por decurso de prazo; um regimento parlamentar draconiano permitiu, ao líder, votar pela bancada. O chefe do Executivo transformou-se no grande legislador. Sucederam-se decretos-lei, ao arrepio da Constituição, e mesmo sobre matéria já rejeitada pelo Congresso. A prática autoritária do Executivo subverteu a disciplina de nível constitucional, submeteu os demais poderes, sufocou a Federação. Multiplicaram-se os casuísmos sempre que o fluxo da vida, buscando seu lugar natural, tendia a corrigir a inautenticidade do poder. Decretou-se a censura. O poder militar perseguiu, prendeu, torturou e matou quem se lhe opunha e quem ele suspeitava de que se opunha.

Essa é apenas parte da verdade, o que se sabe. As trevas dos anos de chumbo sepultaram, como em face oculta da lua, muitos crimes de que sequer se suspeita. Mas, assim como no Chile de Pinochet se mandava matar militares democratas, aqui também não se hesitava diante do jacobinismo mais desvairado, como o terrorismo na explosão de bancas de jornal, na OAB, e no Riocentro, nunca investigado e sempre atribuído cinicamente à esquerda. Já se sabe hoje, com provas nítidas, que Juscelino Kubitschek foi assassinado. O mesmo pode ter acontecido com João Goulart, e até com o próprio Carlos Lacerda.

Sérgio Sérvulo da Cunha é advogado, autor de várias obras jurídicas. Foi procurador do Estado de São Paulo e chefe de gabinete do Ministério da Justiça.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. anos de chumbo

    daí vem o sujeito de verde e amarelo pédindo a volta dos militares para “endireitar” a sociedade. Inocentes, endireitaram pelo voto e quando verem que perderam o voto, será tarde demais, os anos de  chumbo (*) voltaram!

     

    (*): para voce ai que talvez não saiba, a palavra chumbo vem pelo fato dos projéteis (balas das armas) serem feitas de chumbo (Pb, plumbum em latim)

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