Áudio de audiência da Suprema Corte dos EUA mostra como ela funciona

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por João Ozorio de Melo

No Consultor Jurídico

A Suprema Corte dos EUA não faz sessões secretas para decidir seus casos. Mas muitos americanos têm um sentimento de que é exatamente isso que acontece. Afinal, a corte não permite transmissões de suas audiências por televisão ou por rádio e nem mesmo a gravação de vídeo, que poderia ser acessada pela população em um website. Há apenas uma gravação de áudio, que pode ser acessada por alguns interessados mais tarde. E o plenário da corte, apesar de ser aberto ao público, só tem lugar para 250 pessoas. Com um pouco de impaciência, alguns definem a corte como uma caixa preta, que precisa ser aberta pelos jornalistas que irão contar, mais tarde, o que se passou a milhões de leitores interessados.

Quando o assunto é de repercussão nacional, como o caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que começou a ser debatido na corte nessa terça-feira (28/4), o nível da impaciência da população sobe bem acima do nível de tolerância. A população não quer apenas saber o resultado do jogo pela imprensa. A população quer ver o jogo.

Nessa quarta-feira (29/4), o jornal The Washington Post prestou um grande serviço à população. Não providenciou qualquer transmissão direta por rádio ou TV, como seria o ideal, mas, pelo menos, divulgou em algumas horas depois da audiência o áudio dos debates entre os ministros e os advogados das partes.

Foi uma contribuição importante para os “torcedores” — os que são a favor e os que são contra o casamento gay — saberem como foi o jogo dos ministros no Plenário.  Ou seja, os ministros que são a favor e os que são contra o casamento gay (4 a 4) e o ministro Anthony Kennedy, indeciso na questão, mas que será o voto de Minerva.

Vale a pena ouvir o áudio da audiência, com legendas em inglês, publicado pelo The Washington Post (clique aqui para ouvir).

A divulgação do áudio ajuda a entender o funcionamento da Suprema Corte dos EUA. O áudio dá uma boa ideia do que se passou na sessão, como ela acontece e os “lances” mais interessantes.

Um deles é o de que os advogados das partes, que podem ter se preparado durante meses para apresentar suas alegações, que deveriam durar cerca de 45 minutos, sequer chegam a falar por um ou dois minutos. E são cortados por uma pergunta de algum dos ministros.

O que fica aparente é que os ministros não estão realmente interessados no discurso dos advogados. Eles querem ir direto aos pontos que têm interesse em discutir. E querem debater — não ficar ouvindo alegações infindáveis.

Assim, a conceituada advogada Mary Bonauto, que em 2006 ganhou a primeira causa em favor do casamento gay em Massachusetts, começa a discursar sobre a “fundação da família em nossa sociedade” e sobre o fato dos casais homoafetivos serem relegados a um status de segunda classe, a quem foi conferida uma “mancha de desmerecimento”, quando o ministro John Roberts, presidente da corte acha que ela já falou demais e a interrompe para perguntar: “Qual é a definição de casamento?”

Nesse interim, entra um outro “lance” interessante do jogo da Suprema Corte. O ministro Roberts, que é conservador e, portanto, contra o casamento gay, quer derrubar a advogada. Ele ataca: “Nos últimos anos, todas as definições que vi sobre casamento se referem à união entre um homem e uma mulher. Sua pretensão não é se juntar à instituição, mas mudar a instituição como ela é”.

O ministro Kennedy, que até agora foi o relator de todas as decisões favoráveis ao casamento gay, embora faça parte do grupo conservador de cinco ministros, intervém como uma pergunta similar: “Durante milênios, o casamento ocorre entre pessoas do sexo oposto. O casamento gay só foi legalizado em Massachusetts em 2006. Por que deveríamos mudar um costume milenar?”.

A intenção de Kennedy não é derrubar a advogada pró casamento gay, como é a de Roberts. É ver se a advogada tem um bom argumento que pode ajudá-lo a escrever um voto a favor do casamento gay. Isso aconteceu nessa audiência e acontece em quase todas as outras. Ministros que já sabem qual será seu voto fazem perguntas aparentemente contrárias aos advogados, com a esperança de obter algum argumento de valor para sustentar seu voto, que já está definido.

É como um investigador que já tem uma teoria sobre um fato, mas ainda precisa de bons elementos ou de provas para sustentá-la. Assim, ele coloca investigadores nas ruas para obter informações ou provas que possam ajudá-lo a comprovar sua teoria. O resto não interessa. Os ministros dos dois lados, conservadores e liberais, fizeram isso na audiência de terça-feira.

O ministro Samuel Alito, conservador, não deixou a advogada ir longe na apresentação de seus argumentos. Interrompeu-a para fazer uma pergunta que não tinha nada a ver com o que estava sendo discutido: “Em sua petição você menciona que os estados que baniram o casamento gay depreciam as pessoas homossexuais. Você está afirmando que esses estados procuram depreciar os homossexuais?” Ataque e contra-ataque, muito rápidos.

Outro “lance” interessante é o fato de os ministros socorrerem os advogados, por cuja causa eles “torcem”, quando eles estão sob ataque adversário e em apuros. As ministras Ruth Ginsburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan, todas liberais e a favor do casamento gay, socorreram a advogada algumas vezes. Da mesma forma que os ministros conservadores socorreram os advogados da parte contrária ao casamento gay.

Quando o ministro conservador Antonin Scalia disse à advogada que estava relutante em estabelecer um novo direito que iria ser intragável a muitas pessoas de fé e lhe perguntou se esse novo direito iria obrigar religiosos a fazer casamento gay e a advogada parecia não ter uma boa resposta, as ministras Sonia Sotomayor e Elena Kagan intervieram.

A ministra Sonia Sotomayor disse que os estados que já têm medidas antidiscriminatórias estabelecidas (o que é um argumento a favor do casamento gay) não obrigam os religiosos a realizar a cerimônia de casamento. E a ministra Elena Kagan “lembrou” que, apesar de a Constituição proibir discriminação religiosa, um rabino não é forçado a realizar um casamento entre uma pessoa judia e outra não judia.

Enfim, as audiências na Suprema Corte dos EUA acabam se tornando um debate generalizado. No caso específico do casamento gay, é um jogo de cartas marcadas, até certo ponto. Sabe-se que dos nove ministros da corte, oito já estão definitivamente posicionados: quatro liberais votam a favor do casamento gay e quatro conservadores votam contra — a não ser que haja uma surpresa muito grande.

Assim, ganha o debate quem melhor convencer o ministro Anthony Kennedy, o fiel da balança que dará o voto de Minerva nessa questão, como em tantas outras. E o ministro Kennedy só está interessado, aparentemente, em uma das duas questões perante a Suprema Corte: se todos os estados dos EUA devem adotar ou não o casamento gay.

No debate da segunda questão, a de que, no caso de os estados não serem obrigados a aceitar o casamento gay, se devem respeitar os casamentos que aconteceram em outros estados, para efeitos de benefícios aos casais gays, o ministro Kennedy não abriu a boca. Ficou balançando para a frente e para trás em sua cadeira, como quem não estava nem um pouco interessado nessa questão. Isso esvaziou, em boa medida, o debate.
 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

5 Comentários

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  1. Em suma

    It’s politics. It’s all politics…

    Mas ainda acho que lá o negócio é mais sincero. Aqui os ministros escondem o jogo que a gente sabe já estar jogado – exceção do Gilmar Mendes, que sempre faz questão de deixar bem claro que é contra o governo…

  2. No supremo do Brasil eh que

    No supremo do Brasil eh que eh maaaassssaaaaaa!

    Todas as sessoes, sem excessao comecam assim:  “Excelentissimas e excelentes excelencias…”

    Eh que gas enche espaco vazio rapidinho, e o que nao falta no supremo ai eh gas.  A literatura juridica me o permite dizer, claro.

  3. A suprema corte americana não

    A suprema corte americana não é exemplo para nada e sim a representação do ultra conservadorismo

    da super elite america. Alias, a constituição americana é muito diferente da nossa, e por ai vai.

     

    O sistema judiciário brasileiro pode sim ser mais objetivo sem as delongas da liturgia do judiciário, é muita firula

    que pode ser eliminada de todos os lados. Pode fazê-lo sem se espelhar somente no norte.

    o que não pode é ficarmos como estamos.

  4. É o coração da República

     

    A Suprema Corte americana é constituída de pessoas sinceras, com a consciência e responsabilidade de fazer a manutenção da Lei e do Direito. Já no Brasil a coisa é outra, bem outra. Eu já havia dito aqui mais de uma vez que o Judiciário no Brasil é constituído de burocratas que estão muito satisfeitos em sê-lo. Nosso país nasceu como monarquia absolutista e os altos funcionários do Estado tinham um ar de nobreza. Depois de mais de um século de república ainda é assim em todo o Judiciário, nossos juízes e ministros deveriam usar um manto púrbura e uma diadema na cabeça pelo modo como se apresentam diante da nação e do povo. Isso interfere demais na evolução do Estado, queremos ser uma república mas temos um fantasma, um espectro absolutista como uma Maria Antonieta assombrando a casa. Cortem a cabeça dela!

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