Como funciona o sistema de fiança nos Estados Unidos

Enviado por José Carlos – Spin

Do Jus Navigandi

“Bounty hunters” e “bail bondsmen”

As inusitadas figuras dos caçadores de recompensa e dos agentes de fiança no direito norte-americano
 
Bruno Fontenele Cabral

Os Estados Unidos da América possuem um sistema peculiar de concessão de fiança na esfera criminal, ao se permitir a prática da comercialização de fianças por profissionais liberais. Atualmente, o Poder Judiciário norte-americano conta com o apoio de uma rede de agentes privados responsáveis pelo recolhimento da fiança judicial e pela captura de foragidos da Justiça. Tais agentes privados são chamados respectivamente de “bail bondsmen” (agentes de fiança) e “bounty hunters” (caçadores de recompensas). [01]

Antes de avançar no presente estudo, pode-se conceituar fiança na esfera criminal como a realização de um depósito em dinheiro ou em valores feito pelo acusado ou em seu nome para libertá-lo da prisão, nos casos previstos em lei, com a finalidade de compeli-lo ao cumprimento do dever de comparecimento ao juízo e permanecer em liberdade, enquanto aguarda o julgamento, vinculado o acusado ao distrito da culpa. [02]

A existência de agentes privados responsáveis pelo pagamento de fiança nos Estados Unidos deve-se ao fato de que as fianças geralmente arbitradas nesse país são de elevado valor, se comparadas com as fianças normalmente fixadas em outros países. Dessa forma, para a obtenção da liberdade provisória com o pagamento de fiança, muitos réus que não possuem condições de pagar a fiança celebram contratos com agentes privados para o pagamento da fiança fixada pelo juízo em troca de uma contraprestação pecuniária. [03]

De acordo com reportagem do New York Times, a estranha figura do “bail bondsman” (agente de fiança) se assemelha, na realidade, com um típico vendedor de seguros ou, ainda, com um agente de segurança. O agente de fiança é uma parte integrante do sistema judicial norte-americano voltada para a obtenção de lucro. Na verdade, o agente de fiança realiza um negócio jurídico em que oferece o pagamento da fiança judicial ao réu em troca de uma contraprestação pecuniária fixada em torno de 10% do valor da fiança. Sendo assim, trata-se de uma forma em que o acusado, presumidamente inocente, mas que não tem condição de pagar a fiança, vê-se obrigado a contratar uma fiança privada, de modo a que possa aguardar o andamento do processo em liberdade. [04]

Dessa maneira, pode-se dizer que o contrato celebrado entre o agente de fiança e o réu é um típico contrato de risco, aceito apenas nos Estados Unidos e nas Filipinas, mas que, evidentemente, não se coaduna com o princípio da presunção de inocência e da não-culpabilidade. Nesse contrato, o réu que não tem condições de pagar a fiança arbitrada pelo juiz procura um agente de fiança, que realiza o pagamento da fiança em seu lugar, em troca de uma retribuição pecuniária. Em caso de quebra da fiança, o agente de fiança perde o seu valor, a não ser que consiga capturar o fugitivo num determinado prazo. Para a realização do serviço de captura de fugitivos, surge a inusitada figura do caçador de recompensa (bounty hunter), que se trata de um agente privado, que muitas vezes trabalha como empregado do agente de fiança (bail bondsman), mas que também pode trabalhar como agente autônomo. [05]

Nem todos são a favor da prática da comercialização da fiança. A American Bar Association, uma espécie de Ordem dos Advogados dos Estados Unidos, já se manifestou publicamente de forma desfavorável aos agentes de fiança, por entender que se trata, na realidade, de uma discriminação contra pessoas de baixa renda e, ainda, que se trata de uma forma de recolhimento de fiança que em nada contribui para a melhora da segurança pública. Por fim, alega-se que a comercialização da fiança usurpa a decisão de recolher a fiança do sistema judicial e a transfere a particulares. [06]

Também há outros argumentos contrários ao sistema de contratação de agentes de fiança, tais como a possibilidade do agente de fiança corromper e aliciar policiais, no intuito de aumentar sua margem de lucro. Além disso, tendo em vista que os agentes de fiança podem se recusar a emprestar o dinheiro da fiança ao acusado, na verdade, o sistema judicial norte-americano concentra num agente privado a decisão sobre a liberdade ou a prisão do acusado de baixa renda. [07]

Por outro lado, os defensores do sistema de comercialização da fiança defendem que tal sistema não custa nada aos contribuintes e tem garantido grande comparecimento dos acusados nas audiências nas datas marcadas pelos juízes. Ao celebrar um contrato de risco com os réus, os agentes de fiança avaliam se vale a pena, ou não, prestar fiança ao acusado. Se o agente de fiança entender que vale a pena pagar a fiança, o agente de fiança receberá uma quantia equivalente a 10% do valor da fiança, não reembolsável, a título de remuneração pela fiança concedida. Se o réu não comparecer em juízo, o agente de fiança deverá pagar ao Tribunal a quantia total da fiança concedida, a não ser que o agente de fiança, por meio dos caçadores de recompensa, consiga achar e trazer de volta o réu em tempo hábil. [08]

Também é importante ressaltar que alguns estados norte-americanos têm proibido a comercialização da fiança por meio dos agentes de fiança. Esses estados têm estabelecido a possibilidade do pagamento de 10% do valor da fiança em dinheiro diretamente ao Tribunal ou ao juiz da causa. A grande novidade trazida por esses estados é que, ao contrário dos agentes de fiança, se o acusado comparecer na audiência marcada, ele terá direito a receber de volta o valor de 10% da fiança, o que não ocorre no caso dos agentes de fiança, que embolsam esse valor a título de remuneração. [09]

No entanto, pode-se afirmar que a figura do caçador de recompensa, ou simplesmente “bounty hunter“, é, ainda, bastante aceita no direito norte-americano, em função de um antigo precedente da Suprema Corte dos Estados Unidos, o caso Taylor v. Taintor (1872). Na prática, o excelso tribunal norte-americano conferiu aos caçadores de recompensa poderes maiores de que os conferidos a um policial, uma vez que os “bounty hunters” podem inclusive entrar na residência do réu, sem um mandado judicial, para efetuar a sua prisão. [10]

No caso Taylor v. Taintor (1872), a discussão girava em torno da correta interpretação do Artigo IV, Seção 2, da Constituição dos Estados Unidos, que assim dispõe, in verbis:

“Os cidadãos de cada Estado terão direito nos demais Estados a todos os privilégios e imunidades que estes concederem aos seus próprios cidadãos. A pessoa acusada em qualquer Estado por crime de traição, ou outro delito, que se evadir à justiça e for encontrada em outro Estado, será, a pedido da autoridade executiva do Estado de onde tiver fugido, presa e entregue ao Estado que tenha jurisdição sobre o crime. Nenhuma pessoa sujeita a regime servil sob as leis de um Estado que se evadir para outro Estado poderá, em virtude de lei ou normas deste, ser libertada de sua condição, mas será devolvida, mediante pedido, à pessoa a que estiver submetida” (grifei). [11]

Ao analisar o caso Taylor v. Taintor (1872), a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu que oagente que paga a fiança em nome do réu tem o direito de persegui-lo, prendê-lo e trazê-lo perante o Tribunal, caso o réu não compareça na audiência marcada. Sendo assim, o agente de fiança (bail bondsman), ou simplesmente fiador, pode ir atrás do réu foragido por sua própria conta ou, ainda, pode utilizar o serviço de terceiros (caçadores de recompensa), que podem realizar a prisão do réu afiançado inclusive em feriados religiosos e à noite. [12][13]

Dessa forma, percebe-se que a Suprema Corte conferiu poderes extraordinários aos agentes de fiança e aos caçadores de recompensa, até mesmo superiores aos poderes conferidos aos policiais, ao estabelecer que os agentes de fiança têm o direito, inclusive, de adentrar na residência do réu foragido, sem a necessidade da expedição de um mandado judicial. A única vedação existente é nos casos em que o réu encontrar-se em outro domicílio, hipótese em que haverá a necessidade de expedição de mandado judicial. Além disso, os agentes de fiança e os caçadores de recompensa não têm sua limitação restringida no âmbito estadual e podem prender o réu foragido em qualquer lugar do território dos Estados Unidos. [14][15]

Por outro lado, não se pode deixar de criticar o excesso de poderes conferidos aos agentes de fiança e aos caçadores de recompensa no caso Taylor v. Taintor (1872), tendo em vista que tais profissionais, muitas vezes, não possuem treinamento adequado para o desenvolvimento das atividades típicas das instituições policiais. Ademais, há inúmeros casos em que pessoas são presas por engano ou são vítimas de abusos, bem como casos de invasão de domicílio, seqüestro e homicídio. [16][17][18]

Por todo o exposto, conclui-se que as inusitadas figuras do “bail bondsmen” (agentes de fiança) e “bounty hunters” (caçadores de recompensas), presentes apenas nos Estados Unidos e nas Filipinas, trazem mais desvantagens do que benefícios, ao credenciar a agentes privados uma atividade típica de Estado. Por fim, pode-se afirmar que a comercialização da fiança representa uma prática injusta contra a parcela mais pobre da população que se vê obrigada a pagar valores elevados não-reembolsáveis aos agentes de fiança para ter o direito de responder o processo em liberdade, tudo isso em uma clara violação ao princípio constitucional da presunção de inocência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  1. ESTADOS UNIDOS. Constituição Federal. Disponível em: http://www.embaixada-americana.org.br/index. Acesso em: 20 de jul. 2010.
  2. FARRIS, Deb. Bounty Hunters Arrested for Kidnapping. Disponível em: http://www.kake.com/findit/wednesdayheadlines/41835062.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  3. GAINES, Larry K. & MILLER, Roger Leroy. Criminal Justice in action. Estados Unidos: Wadsworth: Cencage Learning. 5ª edição, 2010.
  4. GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. São Paulo: Editora Saraiva. 5ª Ed, 1998.
  5. New York Times. Illegal Globally, Bail for Profit Remains in U.S. Disponível em: http://www.nytimes.com/2008/01/29/us/29bail.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  6. New York Times. Bounty Hunters Kill Couple In Case of Mistaken Identity. Disponível em: http://www.nytimes.com/1997/09/02/us/bounty-hunters-kill-couple-in-case-of-mistaken-identity.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  7. Pittsburgh News. Bounty Hunter Kills Drug Suspect; Police Investigate. Disponível em: http://www.thepittsburghchannel.com/news/4026390/detail.html. Acesso em: 03 de ago. 2010.
  8. Taylor v. Taintor (1872). Disponível em: http://supreme.justia.com/us/83/366/. Acesso em: 19 de jul. 2010.
  9. Taylor v. Taintor (1872). Disponível em: http://law.jrank.org/pages/18317/Bail-Bondsmen.html. Acesso em: 29 de jul. 2010.
  10. Taylor v. Taintor (1872). Disponível em: http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase. Acesso em: 28 de jul. 2010.

NOTAS:

  1. GAINES, Larry K. & MILLER, Roger Leroy. Criminal Justice in action. Wadsworth: Cencage Learning. 5ª edição, 2010, 287-290.
  2. GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. São Paulo: Ed. Saraiva. 5ª edição, 1998, p. 285.
  3. GAINES, Larry K. & MILLER, Roger Leroy. Criminal Justice in action. Wadsworth: Cencage Learning. 5ª edição, 2010, 287-290.
  4. New York Times. Illegal Globally, Bail for Profit Remains in U.S. Disponível em: http://www.nytimes.com/2008/01/29/us/29bail.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  5. New York Times. Illegal Globally, Bail for Profit Remains in U.S. Disponível em: http://www.nytimes.com/2008/01/29/us/29bail.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  6. New York Times. Illegal Globally, Bail for Profit Remains in U.S. Disponível em: http://www.nytimes.com/2008/01/29/us/29bail.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  7. GAINES, Larry K. & MILLER, Roger Leroy. Criminal Justice in action. Wadsworth: Cencage Learning. 5ª edição, 2010, 287-290.
  8. New York Times. Illegal Globally, Bail for Profit Remains in U.S. Disponível em: http://www.nytimes.com/2008/01/29/us/29bail.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  9. GAINES, Larry K. & MILLER, Roger Leroy. Criminal Justice in action. Wadsworth: Cencage Learning. 5ª edição, 2010, 287-290.
  10. Taylor v. Taintor (1872). Disponível em: http://supreme.justia.com/us/83/366/. Acesso em: 19 de jul. 2010.
  11. ESTADOS UNIDOS. Constituição Federal. Disponível em: http://www.embaixada-americana.org.br/index.php?action=materia&id=643&submenu=106&itemmenu=110. Acesso em: 20 de jul. 2010.
  12. Taylor v. Taintor (1872). Disponível em: http://supreme.justia.com/us/83/366/. Acesso em: 19 de jul. 2010.
  13. Taylor v. Taintor (1872). Disponível em: http://law.jrank.org/pages/18317/Bail-Bondsmen.html. Acesso em: 29 de jul. 2010.
  14. Taylor v. Taintor (1872). Disponível em: http://supreme.justia.com/us/83/366/. Acesso em: 19 de jul. 2010.
  15. Taylor v. Taintor (1872). Disponível em: http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/get. Acesso em: 28 de jul. 2010.
  16. FARRIS, Deb. Bounty Hunters Arrested for Kidnapping. Disponível em: http://www.kake.com/findit/wednesdayheadlines/41835062.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  17. New York Times. Bounty Hunters Kill Couple In Case of Mistaken Identity. Disponível em: http://www.nytimes.com/1997/09/02/us/bounty-hunters-kill-couple-in-case-of-mistaken-identity.html. Acesso em: 02 de ago. 2010.
  18. Pittsburgh News. Bounty Hunter Kills Drug Suspect; Police Investigate. Disponível em: http://www.thepittsburghchannel.com/news/4026390/detail.html. Acesso em: 03 de ago. 2010.

 

Redação

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Marin

     O Marin, não “pagou a fiança” ( US$ 15 M ) como nossa midia escreveu, ou se utilizou de um “bailbounder”, seus advogados “depositaram” 10% deste valor em espécie ( pode ter sido menos, depende do juiz ), acompanhados de garantias sobre o valor total, como imóveis, alem do montante previamente depositado.

      Aliás Marin nem “depositou” , a vista, em grana, cash, os 10%, só depositou US$ 1 Milhão, e deu mais uma carta de crédito bancaria de US$ 2,0 M, pois o juiz estipulou 20% na inicial, sobre a fiança da corte.

      Caso faça um acordo, as garantias depositadas e as afiançadas, serão descontadas ao final do processo, da condenação pecuniaria, pois imaginar que Marin, irá “puxar cana”, só jornalista brasileiro acredita.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador