Depois da custódia, o desacato, por Marcelo Semer

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Marcelo Semer

Do Justificando

A mais nova mudança no processo penal brasileiro já nasceu com vinte anos de idade.

Desde 1969, quando aprovado o Pacto de San José da Costa Rica, existe a previsão de que o réu preso deva ser apresentado imediatamente ao juiz. No Brasil, a Convenção Americana só foi ratificada depois do fim da ditadura, em 1992. Ainda assim, muitos de seus dispositivos são desconhecidos.

Nos últimos meses, vem saindo do papel a audiência de custódia. Como em outros casos recentes, mais por um esforço do Judiciário do que pela ação do Congresso, que só a reboque pensa agora introduzi-la no Código de Processo Penal – e ainda sob pressões corporativas que podem causar sérios desarranjos, como aumentar atribuições da Polícia Militar.

Contra a audiência, insurgiram-se a associação de promotores e de delegados; sem contar que parcela expressiva dos juízes também a ela se opôs. Mas, como dizia Victor Hugo, nada mais forte do que uma ideia, quando chega a sua hora.

A audiência de custódia pode servir para dois objetivos importantes: a redução do altíssimo índice de prisões provisórias, que na prática inverte o sentido de exceção na prisão, que decorre da Constituição, e um maior controle sobre a tortura policial, ainda muito presente entre nós. Enfim, sobretudo, consagra o direito do réu de ter acesso a um juiz, e o dever do juiz de tomar contato com a realidade que cerca sua decisão.

Transforma em oral e submetido ao contraditório um dos momentos mais importantes do processo, e por muito tempo negligenciado, a decisão sobre a prisão preventiva. Como parte da pena, às vezes até a mais expressiva, acaba sendo cumprida antes do julgamento, os efeitos da decisão que decreta ou não a prisão, podem ser tão ou mais importantes que a própria sentença.

A audiência de custódia resgata um déficit de legitimidade de um processo penal que é garantia apenas na teoria, e procura estabelecer algum limite ainda que tênue, para os excessos do poder punitivo.

De todos os ganhos, porém, o mais relevante é mesmo o sistêmico, o reconhecimento da validade do sistema interamericano de direitos humanos. Por muito tempo, temos ignorado convenções e tratados que subscrevemos relegando-os a um pé de página na vida normativa do país, quando seus ditames não só são leis, como ainda estão acima das nossas.

O reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana, por exemplo, não impediu que o STF ignorasse a decisão que afasta a validade da Lei da Anistia e da prescrição nos casos de crimes contra a humanidade. O Supremo não fez controle de convencionalidade em sua decisão, como ignorou a condenação da Corte depois dela.

Uma questão importante que precisa entrar em pauta é o crime de desacato.

Em um país com recordes de violência policial, é inusitado que tenhamos tantos processos por desacato contra eles e tão poucos por abuso de autoridade, quase nenhum por tortura. A violência policial se oculta, inclusive, com a omissão de Ministério Público e Judiciário, repletos de arquivamentos e absolvições sumárias. De outro lado, a liberdade de expressão é tolhida com a prevalência da autoridade.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, responsável pelos parâmetros de interpretação da Convenção Americana, estabeleceu em sua carta de princípios sobre liberdade de expressão, que “Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como “leis de desacato”, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação” (item 11).

O mesmo se passa quando se qualifica ou aumenta pena de crime contra a honra se a vítima é funcionário. A lógica espelhada pela Convenção Americana é de que quem age com autoridade, em nome do público, deve estar mais e não menos suscetível a críticas. Nossa contumácia na proteção da autoridade, todavia, favorece o desacato –que serve não apenas de veículo para ocultar a violência policial e outras formas de abuso e privilégio, como a carteirada.

A importância da liberdade de expressão para a democracia não está suficientemente dimensionada em nossa legislação penal, que se excede levando o poder punitivo a menor ofensa contra a honra. A honra, aliás, tem sido muito mais protegida entre nós do que a dignidade humana –há um longo debate nos tribunais sobre violação à privacidade de pessoas públicas e políticos, mas quase nenhum movimento contra a exposição e humilhação de presos pela imprensa.

É também fortemente revelador do desprezo da liberdade de expressão a absoluta inversão da transparência na administração, fazendo com que a legislação recém-aprovada do acesso venha sendo mais empregada como lei de obstáculo à informação -tamanho o volume de sigilos que tem sido impostos aos dados e contratos públicos.

O que diz a declaração de princípios da CIDH que interpreta o artigo 13 da Convenção Americana?

“O acesso à informação em poder do Estado é um direito fundamental do indivíduo. Os Estados estão obrigados a garantir o exercício desse direito. Este princípio só admite limitações excepcionais que devem estar previamente estabelecidas em lei para o caso de existência de perigo real e iminente que ameace a segurança nacional em sociedades democráticas”.  

Não se faz democracia sem controle do poder punitivo, do aparato policial e das estruturas administrativas do Estado.

Porque se o poder emana do povo, não deve funcionar como uma armadilha contra ele.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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