Enfim o fim de um sumidouro jurídico, por Fábio de Oliveira Ribeiro

É necessário muita seriedade, reflexão e pensamento prospectivo ao julgar questões que podem abrir imensas fissuras no sistema constitucional.

Enfim o fim de um sumidouro jurídico, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em 07/11/2019, por maioria de votos, o STF firmou o entendimento de que o art. 283 do Código de Processo Penal é compatível com a CF/88. A discussão da matéria não está superada.

Retomo aqui uma questão lateral que começou a ser esboçada por mim no GGN.

Uma decisão judicial pode ter dois efeitos, “ex tunc” (desde o fato) ou “ex nunc” (a partir de sua prolação). Como quase todos os Ministros do STF fizeram questão de mencionar, o art. 283 do CPP recebeu a redação atual, que contempla a execução da pena de prisão somente depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, por intermédio da Lei 12.403/2011.

O efeito do Acórdão proferido nas ADCs 43, 44 e 54 não pode ser “ex nunc”, pois isso equivaleria a dizer que a Lei era inconstitucional até ser declarada constitucional pelo STF. Em se tratando de controle concentrado da constitucionalidade, o efeito dessa decisão somente pode ser “ex tunc”. Desde que foi promulgada a Lei 12.403/2011 era compatível com a CF/88 e sua observação era obrigatória pelos juízes (cuja principal obrigação é “Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício” (art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura).

A Lei Penal é absolutamente clara:

Art. 350 – Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder:
Pena – detenção, de um mês a um ano.

A partir da prolação do Acórdão nas ADCs 43, 44 e 54 o juiz que mandar prender ou que mantiver preso alguém cuja condenação não tenha transitado em julgado deve responder pelo crime acima mencionado. O problema que merece ser discutido detidamente agora é outro.

Da data em que foi promulgada a Lei 12.403/2011 até a prolação do Acórdão do STF nas referidas ADCs cometeu o crime prescrito no art. 350, do CP, o juiz que mandou prender alguém após a condenação em segunda instância? A resposta a essa pergunta não é simples.

O Direito é um sistema e sua interpretação deve sempre preservar a coerência. Ninguém, nem os juízes, estão acima da Lei. O juiz deve cumprir a Lei com exatidão (art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura) e tem liberdade funcional e poder suficiente para fazer isso sempre. Além disso, como a decisão do STF tem efeito “ex tunc” (algo que era previsível) e a ignorância da Lei não é um argumento jurídico plausível (art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), podemos concluir que os juízes estavam obrigados a esperar o trânsito em julgado antes de mandar recolher os condenados à prisão. Aqueles que decidiram correr o risco de cometer o crime do art. 350, do CP devem sofrer as consequências.

Por outro lado, o Direito não é uma ciência exata. E os juízes não são robôs programados para aplicar a Lei de maneira irrefletida sem levar em conta os precedentes jurisprudenciais (especialmente se eles forem vinculatórios). Nunca é demais lembrar que foi o próprio STF, órgão máximo do Judiciário que diz o Direito em última instância, que criou uma exceção à regra do art. 283 do CPP para permitir que os réus fossem presos antes do trânsito em julgado de suas condenações. Sendo assim, também é plausível a tese de que os juízes que respeitaram esse precedente agiram de boa fé e interpretaram a Lei de uma maneira adequada. Em razão disso eles não podem ser denunciados por infração ao art. 350, do CP.

Essa discussão parece ser irrelevante, mas não é. Ela tem a virtude de mostrar os problemas que o Sistema de Justiça cria para si mesmo quando os juízes (especialmente aqueles que estão no topo da hierarquia judiciária) criam exceções para atender as demandas da opinião pública ou da opinião publicada. É necessário muita seriedade, reflexão e pensamento prospectivo ao julgar questões que podem abrir imensas fissuras no sistema constitucional.

Ao se curvar ao Ser Supremo criado e alimentado pela mídia (refiro-me aqui obviamente à Lava Jato) autorizando prisões antes do trânsito em julgado das condenações à revelia do disposto no art. 283, do CPP, o STF criou um verdadeiro “sumidouro jurídico”. O resultado dessa distração foi uma tragédia, como bem lembrou Ministro Gilmar Mendes durante seu voto e nas intervenções que fez durante o voto do Ministro Dias Toffoli. Ontem o STF restabeleceu a normalidade e a coerência do Direito brasileiro. Sua decisão merece ser apoiada, aplaudida e respeitada.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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