Em entrevista ao GGN, professor de Direito da UFF comenta o fenômeno da judicialização da política e avalia que a candidatura do PT à Presidência está sujeita a um golpe “antes, durante e depois” do processo eleitoral
Confira, abaixo, a entrevista.
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GGN: O Ministério Público de São Paulo utilizou uma mesma causa – a delação da UTC sobre pagamentos que somam R$ 2,6 milhões a uma gráfica, em benefício do PT – para representar Fernando Haddad em 3 frentes: numa ação eleitoral, numa ação por improbidade administrativa e numa ação penal por corrupção, lavagem e formação de quadrilha. Essa multiplicação de denúncias com o mesmo objeto é normal?
Rogério Dultra: A legislação penal e processual define que uma pessoa só pode ser processada por um fato apenas uma vez. Se ela é processada mais de uma vez pelo mesmo fato, isso se chama ‘bis in idem’, ou seja, você está realizando uma dupla penalização por um único fato. Isso é repudiado pelo Direito moderno. Daí que nasceu o princípio do Direito Penal e Processual que é o ‘non bis in idem’, a impossibilidade de que haja dois processos relativos a uma mesma pessoa.
A existência de dois ou mais processos referentes a um mesmo fato indica uma vontade do sistema repressivo de querer perseguir uma pessoal, não a partir de critérios normativos e legais, mas a partir de outros critérios, extralegais.
No caso específico do Ministério Público de São Paulo, e dada a conjuntura de estarmos a menos de um mês das eleições, fica claro o caráter político e açodado com que essas ações foram apresentadas de forma a constranger ou colocar a possibilidade do impedimento ou suspensão da candidatura de Fernando Haddad.
GGN: O PT tratou essa ação do Ministério Público como uma espécie de operação “boca-de-urna”. Ao mesmo tempo, um dia após denunciar Haddad, a Promotoria apresentou uma ação por improbidade contra Geraldo Alckmin, com uma estratégia bastante semelhante: reciclaram uma delação da Odebrecht que até então relatava suposto caixa 2 nas campanhas passadas do tucano O sr. concorda que se trata de uma operação boca-de-urna contra o PT ou a ação contra Alckmin mostra que o MP não pretende deixar ninguém a salvo?
Dultra: Alckmin não é o candidato viável e também não é o candidato escolhido pelo sistema, seja o sistema econômico-financeiro ou a Rede Globo. Ele é um candidato descartável, não tem sobrevida política a essas eleições, a não ser numa futura disputa regional. O último movimento do golpe executado por elementos do Judiciário – seja no Ministério Público, na Justiça Federal ou nos tribunais superiores – é exatamente interditar a capacidade do PT de colocar uma candidatura na urna. A apresentação de um processo extemporâneo contra o Alckmin é uma forma de encobrir a perseguição que, essa sim, é bem estruturada, constante, sistemática contra o PT. Me parece uma tentativa de impedir que a candidatura de Haddad se materialize nas urnas, em outubro.
Claro que não dá para adiantar qual será o comportamento do Judiciário em relação a Haddad, mas eu acredito que apenas a pecha de corrupção já não cola mais. O eleitor entende que denúncias, no momento eleitoral, têm caráter de enviesamento político. A estratégia de criminalizar Lula tanto não foi bem sucedida que houve a necessidade de tirá-lo à força do processo eleitoral com a prisão e outras decisões. Somente a pecha de corrupto não eliminaria a capacidade de Lula de ser eleito presidente da República.
GGN: Se as três ações estão violando um princípio do Direito, os juízes dessas causas deveriam arquivá-las de pronto, em sua visão?
Dultra: O correto é a não admissão pelo Judiciário. Mas na atual situação de caos institucional no que diz respeito a decisões judiciais, isso dependerá de qual juiz pegar a causa. Não estamos num momento de funcionamento normal das regras de Direito.
GGN: Essa aparente interferência de setores do Ministério Público e Judiciário nas eleições é um fenômeno recente ou já vinha ocorrendo há muito tempo?
Dultra: A judicialização da política é um fenômeno que tem pelo menos duas décadas no Brasil. Desde o momento em que essas instituições foram empoderadas pela Constituição de 1988, iniciou-se um processo paulatino, mas consistente de intervenção judicial na vida política nacional.
Isso vem acontecendo desde os anos 1990, em especial em relação a eleições municipais e regionais, e foi consolidando o pensamento do estamento burocrático, no caso do Judiciário, de que ele tem um papel a cumprir no processo de institucionalização de um determinado modelo de ordem do País. O Judiciário, então, se arvorou no poder de intervir na vida política nacional através do controle judicial dos processos eleitorais, de forma a que seus princípios de ação pudessem ser materializados a partir de suas decisões. É o que a gente chama de judicialização da política: a política sendo controlada, movimentada ou modificada pelo ativismo judicial, pela atividade judicial interessada politicamente.
GGN: Essa eleição é marcada pelo impedimento da candidatura de Lula. Em sua análise, existem outros casos em que a judicialização da política em momento eleitoral ficou tão escancarada?
Dultra: Isso é algo tão recorrente que chega a ser questão de estatística. A quantidade de mandatos cassados, candidaturas impugnadas de prefeitos, vereadores, é muito grande. Ultrapassa a casa das centenas. Isso acontece desde os anos 1990. No começo, parecia a aplicação regular da legislação eleitoral. Mas, com o passar do tempo, foi tomando um enviesamento político associado à ideia de que o Judiciário pode se meter nos processos eleitorais para além da vontade popular expressa nas urnas. Parece que tomou conta da instituição.
O Judiciário tem se arvorado numa espécie de poder moderador, que é obviamente inconstitucional pois não estamos mais numa Monarquia para ter poder moderador. Mas o Judiciário tem entendido seu papel político e institucional como se fosse um moderador da vontade popular, se colocando além da soberania popular, como se fosse uma instância que sabe melhor o que é bom para o povo, como se tivesse curatela sobre a democracia.
É um papel tradicionalmente característico de modelos autoritários de política. Essa concepção paternalista, de entender que o povo tem incapacidade intelectual de compreender a política e, portanto, precisa ser tutelado por uma instituição, é uma percepção ditatorial, autocrática, totalitária, que parece que tomou conta da compreensão de mundo que parece ter se tornado hegemônica no Poder Judiciário.
GGN: O que estamos vendo em termos de judicialização da política é um problema do sistema em si, ou seja, esses juízes e membros do MP foram, de alguma forma, empoderados a ponto de poderem atuar dessa forma, instrumentalizando a lei, ou eles estão extrapolando suas atribuições em decorrência dessa permissividade que se deu em relação à Lava Jato?
Dultra: É um consenso que o Judiciário sempre funcionou, pelo menos desde os anos 1960, como instrumento das forças políticas e economicamente dominantes. No Brasil, desde o Império, o Judiciário se estabeleceu como um aparato burocrático caracterizado pela uniformidade da formação ideológica. É um estamento altamente especializado e homogêneo do ponto de vista de classe e compreensão de mundo, que faz com que ele se mova em bloco em muitas vezes.
Fizemos uma pesquisa, em 2015, a pedido do Ministério da Justiça, sobre o excesso de prisões provisórias no Brasil, e as formas que o Judiciário tem de violar as regras para manter as pessoas presas sem fundamento são regulares. O Judiciário viola a lei regularmente e sempre da mesma forma. Então o Judiciário não está funcionamento de forma diferente por causa da Lava Jato. A Lava Jato é que expressa uma forma de violação recorrente que já era bastante conhecida da classe jurídica, especialmente de advogados criminalistas.
A Lava Jato só expressa a exacerbação desse modelo, de características fascistas, na medida em que elementos da operação, como Sergio Moro, entendem que democracia não é representação política, mas manifestação da opinião pública nos meios de comunicação de massa. Não é difícil entender porque essa liberação política do funcionamento da Lava Jato, violando o Direito de forma espetacular, tenha estimulado juízes de vários lugares a fazer da mesma forma. Além de unidade ideológica e de corpo, eles têm agora uma espécie de autorização pública dos meios de massa e setores das classes médias e conservadoras para agirem desse jeito contra adversários políticos.
GGN: O sr. vê alguma perspectiva de melhorar essa situação de instabilidade?
Dultra: Acho que o sistema político e judicial precisa sofrer uma intervenção, uma reforma muito séria. O sistema judicial brasileiro é o que menos tem controle e tem mais liberdade de ação. Não existe um Judiciário com tão pouco controle externo como o brasileiro.
Essa liberalidade, que inclusive foi defendida pelo PT na Constituinte, e depois no poder, é extremamente gravosa e ameaça a democracia.
Acho que o caminho para superar essa situação de profunda instabilidade é uma reforma legislativa profunda, restabelecendo as competências e estabelecendo limites e controles, a exemplo de como acontece em outras partes do mundo, como nos Estados Unidos e na França, onde há mecanismos de controle que aqui não são sequer planificados na ordem constitucional. Aqui no Brasil não há, por exemplo, o controle da sociedade civil sobre o Judiciário. O controle é feito pela própria corporação.
GGN: Sobre a questão dos controles, existem reclamações contra Sergio Moro no Conselho Nacional de Justiça que nunca entraram na pauta de julgamento. No caso das três acusações contra Haddad, o PT já anunciou que vai representar contra os promotores no Conselho Nacional do Ministério Público…
Dultra: O Conselho Nacional do Ministério Público é outro órgão que não tem nenhum interesse para além de manter a ordem da corporação. São pares julgando pares. Isso não vai dar em nada que seja relevante em termos jurídicos. As notícias de sistemáticas violações por setores do Judiciário e Ministério Público, sem nenhuma punição, não nos fazem acreditar que esse sistema foi feito para controlar a atuação desses membros.
GGN: Não há outro caminho, para o cidadão que venha a se sentir perseguido, que não o CNJ ou CNMP?
Dultra: Em termos práticos, o PT optou pela institucionalização e pela luta judicial, que tem um sentido político e jurídico. O sentido jurídico vai se perder porque essas instituições não vão encampar nenhuma ação prejudical aos seus membros. E o sentido político serve para mostrar que o partido quer preservar as instituições e está seguindo as regras do jogo.
Agora, se o Judiciário vai impedir a candidatura de Haddad para presidente, eu acho que este é uma possibilidade que está se colocando na mesa. Acho que setores do Judiciário estão caminhando muito seriamente nessa direção. Esse é um movimento que a gente pode antecipar desde a queda de Dilma em 2016, um movimento para impedir que o PT retorne ao poder. Derrubar Dilma, prender Lula e, se precisar, impugnar a candidatura de Haddad para o primeiro ou segundo turno, não duvido que seja feito. Ou seja, o Poder Judiciário, especialmente esses órgãos superiores, estão imbricados no golpe de Estado.
GGN: Na sua visão, então, Haddad está sujeito a um golpe durante a eleição?
Dultra: Sim, está sujeito a tomar um golpe antes, durante e depois das eleições. Quem vai chancelar isso é o TSE ou STF. Não há como pensar num movimento dessa envergadura sem a colaboração das instâncias superiores do Poder Judiciário.
Independentemente do que essas três ações do MP-SP tragam para Haddad, a própria impugnação do PT pode já estar em processamento no TSE. Não precisa esperar ajuda. A Procuradoria Geral pode pedir a impugnação, pois tem colaborado para a criminalização da política. Já não precisam de motivo para criminalizar ninguém. Qualquer coelho pode ser tirado da cartola.