Favreto, que votou contra Moro, repete juiz dos EUA que rejeitou apartheid, por Gustavo Barbosa

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
[email protected]

Jornal GGN – O desembargado do TRF-4 Rogério Favreto, que apontou os abusos de Sergio Moro na Lava Jato, repetiu um ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos que foi o único a exigir o respeito à Constituição daquele País – que impõe igualdade a todos os cidadãos – para rejeitar uma lei que endossava a divisão social entre brancos e negros no transporte público. É essa a visão do advogado Gustavo Barbosa, que escreveu sobre o assunto para o Justiticando, nesta sexta (30).

“O respeito objetivo a liberdades, direitos e garantias fundamentais deveria se tratar de questão tão indiscutível quanto o fato de não serem moralmente aceitáveis leis que promovem o apartheid entre brancos e negros. Favreto repete Marshall e, ao se dispor a enfrentar o rolo compressor corporativista do poder judiciário, o massacre da mídia corporativa e a sede de sangue da opinião pública, corre o sério risco de, assim como o juiz norte-americano, entrar para a história por ter dito o óbvio”, escreveu Barbosa.

Por Gustavo Henrique Freire Barbosa

Juiz que votou pela representação contra Moro disse o óbvio

No Justificando

Em 1892 na Lousiana, Estados Unidos, o mestiço Homer Plessy foi detido por violar a segregacionista lei dos vagões separados que determinava no transporte público locais específicos para brancos e negros. Já no banco dos réus, a décima terceira e a décima quarta emenda da Constituição norte-Americana foram evocadas em sua defesa. Traziam em seu texto a abolição da escravidão e a institucionalização da garantia de que nenhum Estado poderia elaborar ou executar leis restringindo os privilégios ou imunidades dos cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos. A décima quarta fixava ainda a impossibilidade de privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, além de garantir igual proteção das leis a quem estivesse sob sua jurisdição. Era inaugurada na constituição norte-americana a cláusula da equal protection of the law.

O conteúdo das emendas, embora cristalino, não impediu que a Suprema Corte dos Estados Unidos chancelasse a atmosfera discriminatória da época e decidisse pela constitucionalidade das leis segregacionistas que separavam os assentos usando parâmetros raciais. Como se tratava de um costume que se tornara norma, seu desrespeito, segundo o entendimento da maioria dos membros da corte, traria prejuízos à paz social e à ordem pública.

O julgamento, entretanto, teve o voto dissidente do juiz John Marshall Harlan, que insurgiu-se contra o entendimento dos seus colegas ao atentar para o fato da lei em análise ser hostil tanto ao espírito quanto à letra da Constituição dos Estados Unidos. Na ocasião, entendeu o magistrado que:

“A presente decisão não apenas estimulará a discriminação e a agressão contra os negros como também permitirá que, por meio de normas estatais, sejam neutralizadas as benéficas conquistas aprovadas com as recentes mudanças constitucionais.”

Referia-se expressamente à décima terceira e à décima quarta. Em 1868, no mesmo ano da entrada em vigor desta, o parlamento já criara uma série de leis e atos segregacionistas que ficaram conhecidas como Jim Crow Laws, nome inspirado no personagem racista encarnado por um comediante branco da época

Os efeitos políticos da decisão se deram exatamente na linha das prospecções de Marshall, conferindo condições políticas à legitimação e ao surgimento de mais leis segregacionistas na linha das Jim Crow Laws. A política do “separado mas iguais”, como ficou conhecida, varou o século XX, sendo abolida tão somente em 1954. Do plenário que julgou o caso de Plessy, Marshall é o único nome lembrado. Intrigantemente, por ter dito nada mais que o óbvio.

No último dia 22, o colegiado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao analisar o pedido de abertura de processo disciplinar contra o juiz Sérgio Moro, considerou que a operação “Lava Lato” não precisa seguir as regras processuais comuns, uma vez que estaria enfrentando uma situação inédita. A maioria considerou lícita a conduta de divulgar a conversa entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mesmo que ao total arrepio da legislação pertinente.

O desembargador Rogério Favreto, único voto divergente, fez leitura diversa da situação. Considerou em suas fundamentações que é no mínimo negligente o fato de um juiz tornar públicas conversas captadas de pessoas investigadas, ainda mais com prerrogativa de foro. O interesse público e a tentativa de evitar obstrução à justiça, portanto, não seriam razões aptas a permitir esse tipo de comportamento.

Favreto ainda assinalou que “o Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, sobretudo naquilo em que consagram direitos e garantias fundamentais”, de forma que “sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos democráticos”.

Com efeito, concluiu que Moro, juiz de “imparcialidade duvidosa”, agiu com negligência quanto às consequências político-sociais de sua decisão e de maneira contrária não apenas a dispositivos constitucionais e à legislação criminal, mas também ao próprio Estatuto da Magistratura, ao Código de Ética da Magistratura e à Resolução nº 59 do Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual “não será permitido ao magistrado e ao servidor fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de comunicação social, de elementos contidos em processos ou inquéritos sigilosos”.

A limitação do poder estatal é a primeira e mais fundamental lição extraída das experiências do constitucionalismo liberal do ocidente.  O respeito às regras do jogo, aqui representadas pela legalidade, é a única garantia que temos em desfavor do ímpeto do Estado em agir livre e arbitrariamente, agendado unicamente por suas conveniências. Quando um direito ou uma garantia fundamental é desrespeitada, é toda a sociedade que perde – ainda que, por mais absurdo que isso possa soar, a vítima do arbítrio seja algum desafeto.

O respeito objetivo a liberdades, direitos e garantias fundamentais deveria se tratar de questão tão indiscutível quanto o fato de não serem moralmente aceitáveis leis que promovem o apartheid entre brancos e negros. Favreto repete Marshall e, ao se dispor a enfrentar o rolo compressor corporativista do poder judiciário, o massacre da mídia corporativa e a sede de sangue da opinião pública, corre o sério risco de, assim como o juiz norte-americano, entrar para a história por ter dito o óbvio.

Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP)
 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

6 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. No pantano asqueroso e

    No pantano asqueroso e nauseabundo do Judiciário brasileiro existem algumas flores belas e admiráveis. Poucas, na verdade. 

    Alguém ficará surpreso se este desembargador honrado e culto começar a ser perseguido?

  2. Voz divergente.

    O problema é que esta visão constitucionlista da justiça é que enfraquece e até inviabiliza o golpe. Como manter as ações e decisões se a sociedade sair dos trilhos delimitados pelo golpe? Enquanto forem  poucas as vozes divergentes, nenhuma consequencia, quando o caldo engrossar ai emergirão outras facetas do golpe.

  3. Nos dias de hoje….

    Quando se olha para a historia, é terrivel o tanto de injustiça, por vezes crueldades, que se produziu neste planeta Terra. Fico sempre comovida quando um homem ou mulher se insurge contra a massa e diz não à injustiça ou linchamento que querem perpertrar. Nos dias de hoje…. dizer isso é amargo…. precisamos parabenizar os poucos magistrados que têm coragem de dizer não ao Estado de exceção que a Lava Jato tem produzido.

  4. O poder de polícia imperial e do direito de intervenção

    Como diria Negri, em “Império”̣:

    “Podemos perguntar, a esta altura, se ainda devemos usar o termo jurídico “direito” neste contexto. Podemos chamar de “direito (e especificamente de direito imperial), uma série de técnicas que fudamentadas em um estado de permanente exceção e no poder de polícia, que reduz o direito e a lei a problemas de pura eficácia?”

    “O que está por trás dessa intervenção não é um permanente estado de emergência e exceção, mas um permanente estado de emergência e exceção justificado pelo apelo a valores essenciais de justiça. Em outras palavras, o direito de polícia é legitimado por valores universais.”

    Para ler mais e entender a nova lógica jurídica do “Império”:

    http://institutoveritas2010.blogspot.com.br/2011/04/hardt-michel-negri-antonio.html

     

  5. O óbvio.
    Não é aquele mesmo

    O óbvio.

    Não é aquele mesmo personagem sobre quem o Caetano, em certa ocasião, disse ter estado oculto tanto tempo?

    Ainda está, ao que parece.

  6. Mas são vozes como a desse

    Mas são vozes como a desse desembargador,assim como do procurador Aragão, que pode reverter a barbarie que se caminha.

    Podem encorajar outras vozes de Democratas e Legalistas a fazerem o mesmo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador