José Ugaz: Lava Jato foi possível graças à autonomia dos órgãos de Justiça

Jornal GGN – “Em um contexto de ausência de novas lideranças, existe risco real de a velha política sabotar os avanços da luta contra a corrupção”, essa é a opinião de José Ugaz, presidente da Transparência Internacional, organização de combate à corrupção, que veio ao Brasil para se encontrar com o juiz federal Sérgio Moro e discutir a internacionalização da Operação Lava Jato.

Para ele, não há perseguição política no caso, nem violação severa ao devido processo legal. “Mas ainda há ministros no governo Michel Temer com pendências criminais.
Lamentavelmente, não vemos melhora substancial com a mudança de autoridade no mais alto nível, e isso mostra um problema de corrupção estrutural. Esperamos que, além das investigações policiais, ocorram reformas estruturais”.

Ugaz reconhece que a operação foi possível graças a avanços na capacidade e autonomia dos órgãos de Justiça. Mas está sujeita aos mesmos riscos que a Operação Mãos Limpas, na Itália, já que há movimentos da classe política brasileira para minar as forças dos órgãos de controle e se proteger das consequências.

Em sua opinião, a polarização também ameaça a legitimidade da luta contra a corrupção. “À esquerda, identifica-se um discurso de vitimização e autodefesa, que tenta qualificar a luta contra a corrupção como ‘golpista’ e associá-la de maneira generalizada à luta de classes. À direita, observa-se a associação em protestos anticorrupção com expressões de intolerância e preconceito, o discurso de ódio e ânsia por punição a qualquer custo — inclusive a violação de direitos fundamentais. Ambos os extremos ameaçam a legitimidade da causa anticorrupção e, portanto, a sua sustentabilidade e o seu alcance a longo prazo”.

Favorável à delação premiada, Ugaz diz que a ferramenta deve ser usada com transparência, critérios objetivos e controle. “Sem isso, é real o risco de injustiça ou favorecimento da impunidade. No Brasil, observa-se outro grande problema, o vazamento de informações sigilosas. Em Brasília, é um instrumento dos grandes jogos de poder, usado para eliminar adversários e para influenciar decisões judiciais”.

Abaixo, a íntegra da entrevista:

Da Folha de S. Paulo

‘Velha política’ ameaça a Lava Jato, diz chefe da Transparência Internacional

Por Thais Bilenky

Para o presidente da Transparência Internacional, organização voltada ao combate à corrupção de influência mundial, a Operação Lava Jato não comete abusos ao atingir políticos de alto escalão.

José Ugaz defende a punição de “peixes grandes” como exemplo de que “ninguém está acima da lei”.

Em entrevista à Folha, o peruano alerta, porém, para eventuais fracassos.

“Na ausência de novas lideranças, existe um risco real de que a velha política consiga sabotar os avanços da luta contra a corrupção”. Com um agravante. “Há sinais preocupantes de desmobilização da cidadania”, observa.

Ugaz chegou ao Brasil no domingo (26) para a abertura de uma representação da Transparência Internacional e encontrará o juiz Sergio Moro, o procurador-geral Rodrigo Janot, ministros do Supremo e congressistas.

*

Folha – Que tipo de efeito ações ruidosas como a prisão do ex-ministro Paulo Bernardo (PT) causam?

José Ugaz – É inevitável que casos de grande corrupção, quando descobertos, criem impacto político e midiático. Isso não é mau. Alguns especialistas, como Robert Klitgaard [ex-professor da Universidade Harvard], dizem que um bom começo a um processo anticorrupção vigoroso é “fritar peixes grandes”. É importante para a população ver que não há intocáveis, ninguém acima da lei.

Houve perseguição ou abuso de autoridade na Lava Jato?

Não há corrupto nesse nível que não se diga perseguido político, em qualquer parte do mundo, e normalmente não há base para se afirmar isso. [Uma investigação de fôlego] pode produzir alguma contaminação política, mas a melhor forma de se evitar excessos são a transparência e o monitoramento, não somente dos órgãos encarregados, mas também da sociedade.

Então, até agora, não identificou excessos no Brasil, como alguns petistas alegam?

Não vemos nenhuma violação severa ao devido processo. Investigados, quando têm significativa cota de poder, tratarão de utilizá-lo alegando perseguição política, golpe de Estado. Mas isso ocorre de um e de outro lados. A corrupção não tem distinção de ideologia. Parece-me mais discurso para a opinião pública, quando o que vemos é que se está fazendo justiça.

Mas ainda há ministros no governo Michel Temer (PMDB) com pendências criminais.
Lamentavelmente, não vemos melhora substancial com a mudança de autoridade no mais alto nível, e isso mostra um problema de corrupção estrutural. Esperamos que, além das investigações policiais, ocorram reformas estruturais.

Há, porém, pessimismo quanto ao fim da corrupção.

O pessimismo existe não apenas no Brasil, é generalizado na América Latina. Porém, do meu ponto de vista, vivemos uma época de luzes e de sombras. Efetivamente, há muita corrupção, mas também há sinais de esperança, como o que ocorre no Brasil, em Honduras, na Guatemala.

Temos de explicar à população que é possível mudar, mas é necessário pressionar as autoridades a adotarem as medidas necessárias. Se não fizerem isso, temos que fazer nós mesmos, sair às ruas. Está provado a nível mundial que quando os desafios da grande corrupção não são enfrentados, cria-se problema de governabilidade.

Qual o caminho para uma política sem corrupção em um sistema cuja regra é a corrupção?

Assim como existem os carteis de crime, é necessário formar carteis de integridade, que reúnam aqueles que tenham um plano de bem comum para mobilizar a população e obter o seu respaldo. Por outro lado, há um problema de cultura política. Temos de iniciar processos pedagógicos para que eleitores sejam conscientes.

O senhor quer discutir a internacionalização da Lava Jato. O que isso significa?

Queremos que as empresas do cartel da Petrobras paguem pelos delitos de corrupção praticados no estrangeiro, principalmente na América Latina e África. Em vários desses países as instituições são fracas e corruptas, e é provável que os crimes não encontrem castigo por iniciativa das autoridades locais.

O Brasil tem obrigação de investigar e punir empresas pela corrupção cometida fora. Significa exportar as lições aprendidas. Queremos que os esforços dos brasileiros beneficiem outros países.

A cooperação global cresceu?

Tem tido avanço, mas há um obstáculo que são os chamados “paraísos fiscais”, que deveriam se chamar esconderijos fiscais.

Um exemplo é o caso do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acusado de diversos crimes de corrupção. Ele disse que não era dono do dinheiro achado no exterior, mas “usufrutuário” de um truste. Logo depois, corrigindo-se, disse que era “beneficiário”. É exatamente o fim desses mecanismos de tubulação internacional da corrupção que a Transparência Internacional prioriza.

A Lava Jato contribuirá no combate à corrupção?

A operação foi possível graças a avanços na capacidade e na autonomia dos órgãos de Justiça e de controle da corrupção. É notável, porém, a disparidade a níveis subnacionais.

Todas as conquistas da Lava Jato e outras grandes operações ocorreram em órgãos federais. Se o Brasil não expandir os avanços para a base da corrupção, todo o progresso pode deixar de produzir resultados sustentáveis a longo prazo.

Quais consequências políticas a Lava Jato trará?

A primeira já está ocorrendo, que é a reação da classe política. Encurralada, persegue de todas as maneiras a sua sobrevivência, tentando retardar o progresso das investigações, seja por tentativas de intervenção direta, seja por alterações legislativas que tirem poderes dos investigadores. Em um contexto de ausência de novas lideranças, existe risco real de a velha política sabotar os avanços da luta contra a corrupção.

Por isso, o monitoramento contínuo da cidadania é fundamental, acompanhado de pressão por reformas estruturais. Do contrário, a frustração da população fomenta atitude generalizada de descrença, alienação e cinismo sobre a política, e isso põe em risco o sistema democrático.

Vê paralelos com a Operação Mãos Limpas, na Itália, que iniciou estrondosa, murchou e terminou com Silvio Berlusconi? A Lava Jato corre o risco de cometer erros similares?

A Itália de Berlusconi tem mais a ver com a reação da classe política italiana à operação Mãos Limpas, aprovando leis que minaram o marco anticorrupção, e com o progressivo desinteresse da população, do que propriamente com erros dos agentes.

A Lava Jato está exposta aos mesmos riscos, já que há movimentos similares da classe política brasileira e também sinais preocupantes de desmobilização da cidadania. A polarização exacerbada no Brasil também ameaça a legitimidade da luta contra a corrupção.

À esquerda, identifica-se um discurso de vitimização e autodefesa, que tenta qualificar a luta contra a corrupção como “golpista” e associá-la de maneira generalizada à luta de classes. À direita, observa-se a associação em protestos anticorrupção com expressões de intolerância e preconceito, o discurso de ódio e ânsia por punição a qualquer custo —inclusive a violação de direitos fundamentais.

Ambos os extremos ameaçam a legitimidade da causa anticorrupção e, portanto, a sua sustentabilidade e o seu alcance a longo prazo.

Há manifestações de que é necessário sinalizar um fim para a Lava Jato, sobretudo por motivos econômicos. Concorda?

A Lava Jato tem que ir até onde os indícios de corrupção a levarem, até a apuração total dos crimes cometidos. Pouquíssimos países no mundo em desenvolvimento estão levando tão a sério a luta contra a corrupção como o Brasil dá sinais de estar fazendo.

O fenômeno chama a atenção do mundo e, em particular, de investidores estrangeiros que veem o potencial de criação de novo ambiente de negócios onde haja menos cartéis e mais competição, menos suborno e mais império da lei.

Grandes corporações globais estão sujeitas a legislações duríssimas de alcance universal, por isso analisam riscos com cuidado. O discurso de que a Lava Jato é prejudicial à economia é falácia daqueles que se beneficiaram do sistema antigo e agora começam a pagar por seus crimes.

Como avalia o instituto da delação premiada?

Acordos de cooperação judicial estão entre as ferramentas mais eficazes na luta contra a corrupção. No entanto, devem ser usados com transparência, critérios objetivos e controle. Sem isso, é real o risco de injustiça ou favorecimento da impunidade.

No Brasil, observa-se outro grande problema, o vazamento de informações sigilosas. Em Brasília, é um instrumento dos grandes jogos de poder, usado para eliminar adversários e para influenciar decisões judiciais. É gravíssimo e, quando ocorre em pequenas cidades, é questão de vida ou morte.

Quando um cidadão decide confrontar a corrupção, denuncia uma autoridade local e tem sua queixa ou identidade revelada, sabemos que o resultado muitas vezes é a morte.

A legislação brasileira anticorrupção é adequada?

Avançou, mas há muito a avançar. É preciso enfrentar um problema, comum a outros países, de aplicação da lei. A decisão de que condenados em segunda instância apelem cumprindo sentença de prisão é um avanço enorme. Figuras como o deputado Paulo Maluf (PP-SP), símbolo global de impunidade com uso de manobras, podem começar a ser menos comuns.

Redação

8 Comentários

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  1. Fico p da vida quando vejo

    Fico p da vida quando vejo cometários do tipo “autonomia das instituições” , ” as instituições estão funcionado”. 

    Os caras forçam deleção premiada.

    A deleção só vale para os últimos 12 anos.

    Quando mencionam falcatruas do PSDB, não vem ao caso.

    FHC,Serra,Aécio, entre outros, são comprovadamente ladrãos, estão todos soltos

    Que merda de instituições são essa que estão funcionando ?

    O Cunha tacou fogo no país, está livre leve e solto. Ontem estava almoçando nem restaurante chic que RJ, com certeza a gororoba foi paga com dinheiro de corrupção.

    As instituições só funcionam para prender o Lula por causa de barquinho, pedalinho, triplex, sitio de pobre.

    Ah ! dá um tempo. As instituições está funcionando é o cacete !

  2. Tchau Lava Jato…Tchau PF

    Tchau Lava Jato…Tchau PF autonoma…Tchau MP autonomo…Tchau republicanismo….melhor porque o que é que não está virando pó….se bem que a Lava Jato vai continuar  para atender a parte que cabe ao PT….

  3. Sempre vejo as posições da

    Sempre vejo as posições da Transparência Internacional com cautela.

    Não dá para ignorar que entre seus apoiadores estão fundações como a Open Society e a National Endowment for Democracy (NED); corporações como a Shell e a Siemens; e o departamento de estado americano.

    https://www.transparency.org/whoweare/accountability/who_supports_us/2/

    Por exemplo, quando a presidenta Dilma nomeou Lula para Ministro da Casa Civil, o diretor da TI para América Latina, em entrevista para FSP, fez duras e inapropriadas críticas.

    http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/03/1750841-lula-assumir-ministerio-apos-protestos-e-insulto-diz-diretor-de-ong.shtml

    Vale a pergunta, por trás do discurso de combate a corrupção, qual a agenda real da TI?

    Corrupção e pequena política

    12 de agosto de 2015au

    Rejane Carolina Hoeveler

    Demian Melo

    “Grande política (alta política) – pequena política (política do dia-a-dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política. Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política.” Antonio Gramsci[1]

    O ano de 2015 ficará marcado na história do Brasil como o da volta da direita organizada para as ruas. Como se sabe, o principal mote dessa agitação toda é o “combate à corrupção”, cujo combustível tem sido as revelações praticamente diárias sobre as investigações da Operação Lava-Jato. Entender a adesão do senso comum à agenda anti-corrupção, e o papel da mesma na conjuntura política, tem sido um enorme desafio para a esquerda brasileira.

    Para abordar essa questão é fundamental escapar tanto do enfoque dado pela mídia e pela oposição de direita ao governo do PT, quanto da forma como defensores do governo petista a tratam. Nem o “maior escândalo de corrupção da história do país” – slogan que só pode ser aceitável por quem definitivamente não conhece nada da história do Brasil –, nem uma “conspiração das elites”, como a tese dos apoiadores do governo federal, são explicações plausíveis. Fugindo destes esquematismos simplificadores, nossa intenção aqui é a de situar o problema iluminando-o a partir das ideias de Antonio Gramsci sobre a funcionalidade da pequena política numa conjuntura de crise, situando historicamente a exploração que a direita brasileira fez da questão e da construção internacional dessa agenda anticorrupção no contexto de implementação das reformas neoliberais.

    A corrupção e a pequena política

    Parafraseando Marx, acreditar que a corrupção é a causa de todos os males é equívoco similar ao que faziam certos filósofos da natureza que acreditavam que a febre é a causa das doenças.[2] Indo direto ao ponto, à luz do par conceitual “pequena política”/“grande política” elaborado por Gramsci no trecho em epígrafe, é possível afirmar que a centralidade que a agenda do combate à corrupção assumiu no Brasil nas últimas décadas configura um elemento central do triunfo da pequena política. O lugar ocupado pelos sucessivos escândalos no noticiário jornalístico e no processo político desloca, diminui ou mesmo apaga os problemas mais profundos para a sociedade brasileira, como as contradições do modelo de desenvolvimento econômico – que eventualmente costumam também ser explicadas como efeitos da corrupção – além do debate urgente sobre o sistema da dívida pública.

    Voltando ao par dialético gramsciano, sendo a redução do debate político nacional a essa pequena política parte de uma grande política, cabe indagar sobre a natureza desta. A quem serve? Como serve? Em suma, cabe saber qual é a grande política que está sendo excluída do debate nacional, de modo a poder verificar como se conforma uma certa hegemonia de classe no Brasil.

    O udenismo e os movimentos anti-corrupção no Brasil

    Um rápido olhar no passado brasileiro nos permite verificar como, em outras conjunturas, o predomínio da agenda anti-corrupção no debate político – eficiente na mobilização de camadas médias urbanas – ajudou a produzir resultados profundamente desfavoráveis para os trabalhadores. No segundo governo Vargas, denúncias sobre um “mar de lama no Catete”, que envolveriam o alto escalão do Estado brasileiro, fizeram parte de uma virulenta campanha da imprensa liberal que desembocou na crise política que só seria sustada com o dramático e inesperado suicídio do presidente. Em suas intervenções na rádio e em seu Tribuna da Imprensa, o jornalista e futuro governador da Guanabara Carlos Lacerda, que ficaria conhecido como “o corvo”, agitou contra o governo Vargas todas as acusações disponíveis.

    Na campanha que culminou no golpe de Estado em 1964, o tema da corrupção só não possuiu maior centralidade do que o alegado “perigo comunista”. Entre as principais justificativas ideológicas do movimento golpista estava o alegado propósito do regime ditatorial militar de realizar uma “grande operação limpeza”, para “eliminar do país comunistas e corruptos!”

    Nesses episódios de 1954 e 1964, houve uma simbiose entre a agenda anti-corrupção e o principal partido da oposição da direita oligárquica ao varguismo no período, a União Democrática Nacional (UDN) – a ponto de ficar conhecido pelo epíteto de udenismo o uso sistemático da verborragia anti-corrupção para fazer oposição a um governo.[3]

    A ideologia udenista não apenas compôs a agitação contra o governo Goulart, como fez parte do discurso de justificação da ditadura militar depois de consumado o golpe,[4] como é possível ler no preâmbulo do Ato Institucional n.2 (27/10/1965) – onde está escrito que a “Revolução” (entenda-se, o golpe) tinha por objetivo “erradicar uma situação e um governo que afundava o País na corrupção e na subversão”.[5] A propósito disto, logo no início do regime (27/04/1964) foi criada a Comissão Geral de Investigação (CGI), que se destinava a identificar pessoas envolvidas naquilo que diziam ser “atividades de subversão da ordem ou de corrupção”, denotando como a questão fez parte do processo de estruturação daquele regime.[6]

    A despeito de uma memória que a direita brasileira insiste em construir, o período da ditadura militar foi bastante marcado por casos de notória corrupção na administração pública e de uso da máquina estatal para beneficiar certos grupos privados que naquela quadra se transformaram em verdadeiros impérios econômicos. O czar da economia durante boa parte do regime, Delfim Netto, ficou conhecido por favorecer certos grupos empresariais.[7] No livro Os mandarins da República, de 1984, o jornalista José Carlos de Assis já elencava uma série de escândalos de corrupção ocorridos durante o regime dos generais.[8]

    A agenda do combate à corrupção também esteve fortemente presente na campanha do candidato vitorioso nas primeiras eleições diretas depois do fim da ditadura, Fernando Collor de Mello, em 1989. Aliás, ninguém personificou tão bem a simbiose entre a agenda anticorrupção e a proposta neoliberal do que o “caçador de marajás”, conforme o apelido cunhado à época pelo seu principal patrocinador midiático, a revista Veja. Ironicamente, o envolvimento em outros escândalos de corrupção ficaram na memória nacional como o motivo da derrubada do presidente em 1992.

    É possível dizer que àquela altura o caráter da luta contra a corrupção no Brasil se inseria na dinâmica da reprodução do próprio regime democrático-liberal (bem mais liberal que democrático, diga-se de passagem), tendo assim uma funcionalidade específica em sua legitimação e na canalização do descontentamento popular.[9]

    No plano ideológico, as privatizações de empresas estatais foram apresentadas como a única solução para diminuir a ineficiência de setores da economia “marcados pela corrupção” – um argumento no mínimo cínico, afinal, como é sabido, gritantes irregularidades marcaram a venda das estatais no Brasil, marcada por explícita promiscuidade entre grandes grupos privados nacionais e estrangeiros com os governos, que não se furtaram em oferecer os recursos do BNDES para financiar consórcios que adquiriram a preço de banana as “joias da Coroa” como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em 1993, a Companhia Vale do Rio Doce, maior mineradora do mundo, em 1997, e o lucrativo ramo das telecomunicações, em 1998.[10] Além disso, como também é evidente, trata-se de uma falácia a ideia de que as empresas privadas sejam menos “corruptas” do que as estatais, como os escândalos atuais envolvendo as grandes empreiteiras (elas mesmas, aliás, beneficiadas pela ditadura), demonstram.[11] E é certamente aqui que fica claro como a corrupção é algo intrinsecamente ligada à reprodução da sociedade capitalista, pois se trata da burla que lubrifica as promíscuas relações entre o Estado e o grande capital.

    Nos anos 1990, a identificação da corrupção política com um “estatismo” que deveria ser definitivamente eliminado ganhou corações e mentes, e não somente nas camadas médias. Foi, a propósito, um corolário à ideologia neoliberal sobre as virtudes imanentes da iniciativa privada. Contribuía na formação do consenso a difusão de leitura consagrada que atribuía todos os males do Brasil à herança cultural portuguesa, onde sobressaia o Estado na antiga sociedade lusa, aspecto que teria sido transplantado ao território colonial na América do Sul, como figura no livro clássico de Raymundo Faoro (Os donos do poder­ – de 1957), vulgarizado por Simon Schwartzman em Bases do autoritarismo brasileiro (1975) e nas intervenções do antropólogo midiático Roberto DaMatta sobre o “jeitinho brasileiro”.[12] Uma elaboração sofisticada que tornava a grita midiática e governamental pela “redução do Estado” algo lógico.

    Paralelamente, é justamente nesta década que ganha fôlego um movimento internacional de combate à corrupção. Vejamos como isso sucedeu.

    A agenda internacional contra a corrupção e suas metamorfoses

    Em trabalho de 2003,[13] o cientista político norte-americano Peter Bratsis mostra a profunda diferença histórica entre a concepção antiga de “corrupção” (que de Aristóteles até Maquiavel relaciona-se ao sentido de “decadência” e “destruição”) e a concepção moderna, intimamente relacionada à ascensão da vida social capitalista, que institui a moderna divisão entre público e privado. Lembre-se que, na perspectiva liberal, os interesses privados não podem subverter o bem público, assim como o Estado não pode interferir na vida privada dos cidadãos.

    Nessa leitura, a principal função da agenda anti-corrupção, no fundo, tem sido de legitimar as categorias de público e privado como esferas que, em sua forma pura, são apartadas. A noção moderna de corrupção, nesse sentido, reifica a divisão entre público e privado própria da modernidade capitalista como algo a-histórico e eterno. É bem verdade que o discurso neoliberal buscar burlar a fronteira entre público e privado, como aparece na conhecida formulação de Bresser-Pereira para o que esse chamou de “público não estatal”, um dito cuja intenção primordial é o de suavizar a retórica pró-privatizações no setor público. Entretanto, embora essa justa crítica denuncie com propriedade esse tipo de procedimento ideológico, não é abusivo inverter o raciocínio e pensar que a própria noção de setor privado é própria da sociabilidade capitalista.[14]

    Mas voltemos ao fio da meada. Em artigo mais recente, Bratsis demonstra que certo tipo de agenda anti-corrupção que nasce no mundo pós dissolução da URSS – ação coordenada por diversas organizações internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Open Society Institute, entre outras – respondiam a uma necessidade premente do capital transnacional.[15] Tratada como fenômeno cultural ou institucional, a corrupção aqui é vista como opacidade dos negócios públicos. A principal preocupação é com a garantia dos contratos e com o cálculo do “custo-corrupção” de cada país. A criação da ONG Transparência Internacional, em 1993, seria simbólica do sucesso dessa perspectiva. O combate à corrupção, agora, além de não se limitar às esferas nacionais, deve ser protagonizado por uma “sociedade civil” atuante.[16]

    Bratsis relaciona a emergência desse movimento com a hegemonia de uma fração internacional do capital que molda Estados e regimes, cada vez mais homogeneizados pelas exigências legais e políticas desse capital mundializado. Profundamente ligada à “blindagem” dos regimes políticos contemporâneos, essa hegemonia é marcada por um nítido deslocamento das instâncias de decision-making (no vocabulário da moda), para as mais altas e intocadas esferas, nas quais em alguns casos não se inclui nem mesmo os representantes eleitos (caso patente da União Européia).[17] As diferenças entre os diferentes gestores nacionais se tornam quase que milimétricas – e, nesse sentido, fica claro que o triunfo da pequena política nessa quadra histórica não é exclusividade do Brasil.

    O capitalismo contemporâneo é abalado por escândalos de corrupção envolvendo grandes empresas transnacionais e Estados pelo menos desde 1976, ano em que vieram à tona as provas de um amplo esquema de propina articulado pela grande empresa de aviação civil Lockheed (até hoje uma das maiores empresas do mundo, operando agora no setor militar). As revelações foram um subproduto não intencional da investigação federal sobre o caso Watergate, em 1974, a partir da descoberta de um longo “caixa-dois” em diversas empresas que tinham providenciado um financiamento extra, ilegal, para campanha de reeleição de Nixon[18]. Descoberto o amplo esquema de caixa-dois, viu-se que ele servia não apenas para contribuições políticas. A SEC (Self-Enforcement Committee), órgão federal encarregado, obrigou as companhias envolvidas no caso dos fundos para a reeleição de Nixon a abrirem a lista de pagamentos feitos a estrangeiros num período de cinco anos, com o objetivo adicional de investigar quaisquer outros pagamentos ilícitos. O caso gerou, na época muitas dúvidas jurídicas, pois os advogados corporativos alegavam que, embora pudesse ser imoral, não era ilegal, pela lei americana, fazer pagamentos que ferissem a legislação estrangeira. [19]

    No período imediatamente posterior ao escândalo, que provocou abalos políticos significativos em diversos países, em especial no Japão[20], foram discutidas formas de regulação da atuação das corporações transnacionais, mas nada saiu do papel, já que as mesmas não podiam admitir o que consideravam como mais uma forma do Estado “interferir” nos seus negócios. No entanto, esse episódio ficaria na memória das elites transnacionais como algo a ser evitado, dado seu alto custo político.

    Não é preciso muito para notar como ela é parte central nos programas de todas as principais entidades empresariais brasileiras e internacionais, além, é claro, de uma preocupação crescente no seio das grandes empresas, que se traduz em “estratégias de compliance” e “análise de riscos” de corrupção. Trata-se de uma questão que é discutida entre empresários, advogados e poder público com assiduidade. Um exemplo claro disso é o seminário promovido anualmente no Brasil sobre anti-corrupção: o American Conference Institute’s Brazil Summit on anti-corruption teve sua quinta edição em São Paulo, em maio de 2015. O American Conference Institute é um think-tank com sede em Nova York especializado em consultoria jurídica para empresas,[21] e o principal patrocinador da conferência anual é a Price Waterhouse Coopers (PwC)[22], mas tem, entre outros parceiros, a Fiesp (através de seu “Comitê de Jovens Empreendedores”) e o “Instituto de Formação de Líderes”.[23]

    Entre os temas discutidos no encontro: “Como minimizar os riscos de suborno e fraude em contratos públicos e parcerias público-privadas e trabalhando com estatais”, “Como construir um relacionamento sem cometer um crime: Uma análise prática de contribuições políticas, patrocínios e doações, presentes, entretenimento e hospitalidade”; e talvez o mais curioso, “O que fazer nas primeiras duas semanas se um escândalo de corrupção aparecer nas revistas ‘Veja’, ou ‘Isto É’, ou outros meios de comunicação social”[24]. O discurso de abertura do encontro, que contou com participações de representantes do Ministério Público e da CGU (Controladoria Geral da União) e do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), foi do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Brito, cuja atuação no julgamento do “Mensalão” lhe credenciou esse lugar de destaque neste seminário.

    A agenda da accountability é hoje aceita por todos os líderes mundiais, e se tornou um mantra inquestionável para todos os países que se pretendem bem cotados para os investimentos externos. Note-se que os governos do PT incorporam fortemente esse discurso, como demonstra a participação de Dilma na Cúpula das Américas em abril deste ano, onde a presidenta reafirmou a correlação entre o combate à corrupção e a “eficiência do setor público”. Barack Obama, no mesmo encontro, foi cristalino ao relacionar os investimentos externos a essa agenda: “a transparência não apenas dá as ferramentas para combater a violência, mas também ajuda a atrair investidores, ao mostrar a estabilidade das regras”.[25]

    Assim, fica claro como os discursos predominantes sobre a corrupção, inclusive o do próprio governo, faz parte da mesma ideologia mistificadora. Dessa falsa polarização, fica excluída a grande política das classes subalternas.

    Rumo à “grande política”

    Para a esquerda socialista não parece fácil se opor a um governo como o do PT e não se deixar levar pelo estilo udenista que renasceu no discurso e na prática política da oposição de direita capitaneada pelo PSDB.[26] Sem compreender a natureza desse fenômeno uma política conseqüente é impossível.

    É aliás necessário também lembrar da cota de responsabilidade que o próprio PT tem na constituição dessa agenda no Brasil, pois, como demonstram estudiosos da trajetória do partido[27], nos anos 1990 o discurso classista que havia marcado a identidade petista nos anos 1980 foi substituído pelo tema da “ética na política”. Mesmo a crítica ao neoliberalismo oriundo das hostes petistas nos anos 1990 deram lugar a uma forte dose de denuncismo “contra a corrupção”, daí o profundo mal-estar vivido por parte de sua base eleitoral na classe média em 2005, quando do escândalo do “mensalão”. Como denota o denso estudo de André Singer,[28] naquele ano essa parte da sua base social tornou-se visceralmente antipetista. Curiosamente tal base não havia se deslocado do petismo quando, no início do governo Lula, este desferiu um forte ataque aos direitos sociais com a Reforma da Previdência em 2003.

    Dez anos depois, as manifestações de junho de 2013, que ganharam corpo com suas pautas contra a repressão policial e pela melhoria dos serviços públicos (especialmente no transporte, mas também por “educação e saúde padrão Fifa”), ganharam apoio da grande mídia empresarial na medida em que esta começou a pautar sua agenda. E não por acaso o tema escolhido para isso foi… combate à corrupção![29] (Alguém se lembra da PEC 37?) Estava ali o início da entrada das bases sociais das direitas nas manifestações de rua no país.

    A facilidade com a qual a mídia pôde ao mesmo tempo em que inflava a histeria popular contra as bandeiras vermelhas, conduzir boa parte das pessoas que saíram às ruas a empunhar cartazes “contra a corrupção” deve levar a esquerda a pensar na importância dessa agenda na construção da hegemonia burguesa no Brasil. Acreditar que é possível disputar pela esquerda tal agenda, apenas acrescentando a ela penduricalhos como “pelo confisco dos bens dos corruptos” é cair num simplismo político atroz. Enquanto estivermos tentando combater nesse terreno, que aqui buscamos assinalar como claramente do inimigo, a construção de um campo autônomo em relação à falsa polarização PT x PSDB fica obstaculizada.

    Não há “diálogo” que justifique a adesão de parte da esquerda ao udenismo. A única saída possível diante dos ataques que se avolumam é a anti-pequena política, isto é: colocar permanentemente a política dos subalternos no centro do debate.

    http://blogjunho.com.br/corrupcao-e-pequena-politica/

     

     

     

    1. Ainda que eu discorde de

      Ainda que eu discorde de alguns pontos de vista dos autores, e que o texto seja bem longo, é interessante essa analise do uso do discurso anti-corrupção no Brasil e no mundo e a que ele se presta.

      Jesse de Sousa tambem fala sobre

      O mais importante aqui não é apenas a seletividade com a qual a questão da corrupção é abordada ao se concentrar apenas no PT e procurar atingir de qualquer modo o ex-presidente Lula, de modo a inviabilizar sua reeleição em 2018. Ainda que isso seja parte da verdade, não é, nem de longe, o ponto mais interessante dessa história. Inicialmente, o que fica evidente, como a luz do sol de meio-dia, nesta crise política, criada e manipulada midiaticamente, e tem levado a uma crise econômica em grande medida construída politicamente é o seguinte: o tema da corrupção só pode ser usado para enganar e manipular a população, porque a definição do que é corrupção é arbitrária e pode ser aplicada ao bel-prazer de quem realiza o ataque.

      Como a noção de corrupção é vaga e indefinida, e pode ser aplicada seletivamente, vale tudo a favor dos amigos e tudo contra os inimigos.1 A estratégia passa a ser um “se pegar, pegou”, e manchetes diárias constroem a artilharia pesada contra governos com relações e compromissos com as classes populares.

      http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=2011
       

      1. O Barão de Itararé,,,

        …  já tinha nos dito isso de uma maneira bem simples: “Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados”.

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