Kenarik Boujikian se aposenta e deixa um legado de liberdade e esperança para o Judiciário

A magistrada participou de sua última sessão na última segunda-feira, 25 de fevereiro, e recebeu diversas homenagens de colegas e admiradores de seu trabalho

do Justificando 
Kenarik Boujikian se aposenta e deixa um legado de liberdade e esperança para o Judiciário

Da luta contra um sistema de Justiça racista, elitista e machista, aposenta-se a desembargadora Kenarik Boujikian, que sai do Tribunal de Justiça de São Paulo e deixa um legado de liberdade e esperança para quem fica, após quase 30 anos de carreira. Aposenta-se de um sistema que, entre abusos e inconstitucionalidades cometidas pelo Poder Judiciário, principalmente contra populações minorizadas, o que frutifica é a desconfiança dos brasileiros em relação à Justiça e a legitimação de desigualdades sociais e políticas históricas. Sua última sessão de julgamento foi nesta segunda-feira, 25 de fevereiro.

Marcelo Semer, juiz de Direito e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e amigo de Kenarik, lamentou a aposentadoria da colega, mas demonstrou gratidão. “Um dia feliz e triste ao mesmo tempo. Minha grande amiga, Kenarik Boujikian, celebrou sua última sessão como desembargadora. Todos sabem a luta que foi para chegar aí. Agora teremos a firmeza de princípios e a perseverança em outros cantos, sempre a favor dos vulneráveis. Eu só pude dizer a ela obrigado. Por tudo o que fez na carreira e por ter sido um exemplo para a minha. Toda a sorte do mundo pra ti, amiga!”.

Rubens Casara, doutor em Direito, mestre em Ciências Penais e juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, também desejou sorte “nos novos caminhos e nas novas lutas” à “querida” Kenarik.

A doutora em Direito Internacional e professora de Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carol Proner afirmou que “Kenarik Boujikian não deveria se aposentar nunca, pelo bem da justiça, mas merece descansar. E merece todas as homenagens. Sinto orgulho de ter dividido alguns momentos da luta democrática ao lado dessa mulher incrível”, em suas redes sociais.

A fundadora do Movimento Mães de Maio, que denuncia a violência por parte do Estado contra jovens, negros e periféricos, Débora Silva, agradeceu à desembargadora por “legitimar o movimento necessário e reconhecido pelos seus pares democráticos”. “Caráter existe de sobra, gratidão por esse ser humano tão humano. A sua vitória sempre será na humildade”, completou.

O também desembargador do TJ-SP Luiz Fernando Vaggione agradeceu pelo profícuo trabalho realizado pela homenageada na Câmara. “Trouxe-nos seus valores, suas crenças humanistas e liberais que sempre repercutiram no trabalho do nosso Tribunal e iluminaram os nossos votos”, disse.

Em um artigo escrito ao Brasil de Fato, em agosto de 2018, Boujikian afirmou que “a democracia não pode ficar à mercê do tempo ou da vontade particular dos ministros do STF. Está na hora do Poder Judiciário conectar-se com as razões do povo brasileiro. Sem esquecer que o poder não lhe pertence: o dono é o povo soberano. Respeitemos”.

Para ela, o que mais choca no momento atual é que o órgão que deveria ser o “guardião” do sistema democrático, que tem a obrigação de salvaguardar o Estado brasileiro, os direitos fundamentais e a efetivação destes, é o mesmo que comete e legitima inconstitucionalidades: o Judiciário, “que não admite flexibilização alguma”. Nesse ponto, a ex-desembargadora critica a atuação do Poder Judiciário na área penal, refletida no encarceramento em massa da população pobre, periférica e negra e nos 40% de presos provisórios (aqueles que mesmo sem julgamento continuam aprisionados), que, para ela, só vem intensificando o quadro de violação de direitos humanos “após o julgamento do STF que relativizou o alcance do princípio da presunção de inocência”.

“A questão que o povo pergunta é: por que houve uma mudança de posição do STF pouco antes do julgamento do ex-presidente Lula? E por que, neste caso, a maioria dos ministros pensa de uma forma, mas julga de outra?”

A desembargadora, que integra a magistratura desde 1989, falou sobre os obstáculos enfrentados pelas mulheres no Judiciário, em seu discurso de despedida no Tribunal de São Paulo. “Quando entrei, eram somente 29 mulheres. Hoje, contamos com cerca de 900 e, para que isso ocorresse, houve muita luta. Não falo apenas do Judiciário, mas de todos os setores da sociedade”, disse. “Até o último momento na carreira, que o Poder Judiciário seja um instrumento concretizador das franquias constitucionais”, relembrando a Constituição Federal.

Durante sua carreira, Kenarik passou por momentos de censura de dentro do Poder Judiciário. Em agosto de 2017, a magistrada foi absolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de uma condenação por libertar presos que já tinham cumprido pena.

Em ocasião mais recente, em outubro de 2018, o CNJ instaurou um processo contra Boujikian diante das manifestações da mesma sobre o comentário do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Dias Toffoli, que faz uso da expressão “movimento de 1964” para se referir ao golpe militar de 1964. Durante o seminário “30 anos da Constituição Cidadã – Avanços e Retrocessos”, realizado pela Conectas, Folha de S.Paulo e FGV Direito SP, Kenarik declarou que “um ministro do Supremo Tribunal Federal chamar de movimento um golpe reconhecido historicamente é tripudiar sobre a história brasileira. De algum modo é desrespeitar as nossas vítimas”.

Kenarik Boujikian nasceu em Kessab, na Síria. É bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (turma 1984) e especialista em Direitos Humanos pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Foi advogada da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap) e procuradora do Estado. Ingressou na Magistratura em 1989 e foi nomeada para a 34ª CJ (com sede em Piracicaba). Judicou nas comarcas de São Bernardo do Campo, Pilar do Sul e Cajamar. Foi promovida ao cargo de juíza substituta em 2º grau em 2011 e ao cargo de desembargadora em 2017.

Redação

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