Moro das lamentações: a tragédia do juiz que pensava ser um deus, por Salah H. Khaled Jr

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

do Justificando

Moro das lamentações: a tragédia do juiz que pensava ser um deus

Salah H. Khaled Jr

Feche os olhos e imagine por um instante que você detém os poderes de uma divindade. Você narra a partir de um ponto de vista privilegiado, que consegue discernir com clareza incomparável a complexidade da realidade e sua conexão com a normatividade. Suas decisões não fazem mais do que refletir os fatos de forma perfeita e acabada, sem qualquer nível de distorção: são simples meios de exteriorização de uma convicção que jamais conhece qualquer falibilidade. Essências são extraídas de coisas e pessoas com incomparável facilidade: realidade e alteridade se curvam diante de seu método de revelação da verdade.

Você é firme e obstinado em seu propósito. Enviado pelos céus e movido por energias extraídas do além, sempre mantém os olhos fixos no grande prêmio e jamais se desvia da trajetória inicialmente delineada. Para você, a magistratura é sacerdócio; uma profissão de fé conduzida pelo mais nobre dos propósitos: extirpar o mal do mundo, em nome do bem da sociedade.

Sua vida é cruzada. Seu ritual é uma prática continua de zelo pelo bem comum. Senhor de todas as certezas, lorde de todos os soldados, você faz do trabalho diário um empreendimento de enfrentamento constante contra o mal. Higienizar o país é seu destino e o triunfo, algo certo e inevitável. Palavra da salvação: toda honra e toda glória, agora e para sempre.

Você é objeto de louvor alheio. As pessoas ostentam seu nome em camisetas, adesivos e cartazes. Seu estandarte tremula de Norte a Sul do país: você é reconhecido como salvador e extrai energias de seus devotos. Obtém deles forças para intensificar ainda mais o combate contra o inimigo. Seu poder cresce a cada dia que passa. Ele faz de você uma divindade onipotente e, logo, capacitada para erradicar a maldade que aflora no mundo. Não é de se estranhar que você aprecie cada vez mais a atenção que lhe é dada. Opinião pública e opinião publicada parecem ter por você uma irrefreável paixão, absolutamente profunda e massivamente sedimentada. Você se sente tocado por ela e faz questão de manifestar seus sentimentos para todos que incansavelmente o bajulam. Nem por um instante sequer você considera que possa estar equivocado. Que alguém insinue que você atua como veículo para difusão de ódio é logicamente uma leviandade.

Mais do que um mero mortal, sua existência transcendeu o plano terreno: as regras aplicáveis aos demais não valem para você. Continuamente estimulado e jamais coibido, você saboreia a delícia do poder ilimitado que lhe é conferido. De fato, você acredita que um juiz pode voar: nem mesmo o céu é limite para a sua audácia. Sua vaidade atinge patamares gigantescos: nem mesmo a segurança de seus próprios devotos parece lhe importar. Você propositalmente desconsidera qualquer limite normativo ou ético que possa comprometer o fim que lhe é caro. Utiliza sem o menor pudor os meios que lhe são conferidos para divulgar a irrecusável verdade de sua palavra. Caso venham a ocorrer, danos colaterais não serão nada mais do que perdas aceitáveis para a consecução da meta perseguida. Sua onisciência não permite qualquer vazio. O interesse público lhe é transparente: não pode ser nada além de um reflexo de sua própria vontade, que, ao final, subjugou completamente a realidade.

E assim seria, se ele, o limite, não promovesse uma alucinada reviravolta no roteiro previamente estabelecido por sua santidade. De forma inesperada, uma vertigem democrática surge no horizonte para usurpar o frágil solo moral no qual assentava sua autoridade, destruída como castelo de cartas por um relâmpago de legalidade.

Sua onipotência não era mais que delírio e devaneio. Complexo de grandeza e abuso de autoridade. Possível prática de crime e flagrante ilegalidade. O destino parece ter lhe pregado uma terrível peça: suas razões não são mais do que pálidos reflexos de uma contaminada subjetividade. Vitimada pela própria arrogância, cai por terra a insustentável identificação com o bem da sociedade. Tragédia até então impensável. Quem dizia que falava por todos falava por si mesmo: refém da própria e indevidamente atribuída discricionariedade.

Resta o lamento dramático e a entrega narrativa da própria dignidade, corroída pelo esforço impossível de legitimar uma indefensável ilegalidade. Esgotada sua serventia, desvelada a humanidade, resta a você o papel de cordeiro: passível de ser sacrificado no altar do próprio autoritarismo, ainda que mostre incredulidade diante dessa possibilidade. Talvez a sorte seja generosa e você apenas caia na obscuridade. Lamento de um Moro, Moro das lamentações. Equivocado até o final, ainda lhe escapa a ideia de impessoalidade. A Tragédia de um Moro é a morte metafórica de uma pseudodivindade. Que ela descanse em paz. A democracia agradece.

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

31 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Continua dando as cartas e,

    Continua dando as cartas e,  quando estiver por demais manjado, os irmãos Marinho o substituirão.

  2. No meio do caminho de moro há uma DEMOCRACIA

    Nossa democracia é frágil, mas ainda há muitas pessoas que querem defende-la.

    O momento é díficil, mas temos que passar por ele e superar, e vamos! E devemos agradecer muito a força de Dilma que como mulher compreende a necessidade de abraçar essa luta pela nossa democracia! ela se transforma num grande exemplo e grande nome na história pelo que representa, A LUTA PELA NOSSA SOBERANIA!

    1. Moro das lamentações

      Ana,

      suas reflexões sobre o artigo Moro das Lamentações são muito apropriadas e sérias. E o que mais me espanta nesse Moro é que ele não respeita nada, nem a Constituição. Fico pensando se o STF se acovardou ou se é conivente. A Presidenta Dilma é uma mulher forte, honesta e republicana, às vezes até republicana em excesso, talvez por se lembrar dos sofrimentos a que foi submetida pela Ditadura. Temos de resistir com ela a este golpe. Fico pensando: Quem será que outorga esse poder a Moro? Acho que o artigo do jornal Pravda, publicado no 24/7 é verdadeiro. Toda essa oposição à Dilma veio das passeatas de 2013 em que ela, de uma aprovação de 70% e sem que nada tivesse ocorrido, caiu para 30%. Esse golpe começou lá, e, segundo o jornal Pravada, veio de ordem de Obama, através da CIA, para derrubar Dilma, por causa do Pré-Sal e dos BRICS. Está correndo muito dinheiro verde nessa história. Não poemos deixar que ocorra outra Operação Condor” na América Latina. Dilma fica.

  3. É o que dá acreditar no PiG!

    O Joaquim Barbosa vai ganhar um companheiro para Tuitar e falar dos bons tempos em que a Globo madava no País.

  4. Muito bom!

    O texto é excelente,mas não creio que Moro esteja derrotado ou mesmo perto disso.Basta ver que a já tradicional operação das sextas feiras aconteceu de novo e dessa vez querem desenterrar o cadáver do Celso Daniel mais uma vez.

    1. Mas aí é que esta,

      Mas aí é que esta, desenterrar um caso que já foi exaustivamente investigado e nada se achou que comprometesse o PT é um sinal inequívoco de desespero, coloca o juizeco no mesmo nível dos maniacos com teorias de conspiração que pululam na internet, aliás acho que ele vai ter que juntar esse tipo de material nos autos, o juizeco começou a saltar dos trilhos quando autorizou a condução coercitiva do presidente e agora ministro Lula, ao vazar a conversa privada da Presidenta com o Lula despirocou de vez, agora já esta na nova fase da operação Vaza Jato a do desespero total, nenhum profissional sério da PF, MP ou do Judiciário vai entrar nessa furada, se entrar se queima para sempre, somente o juizeco que esta atolado até o pescoço é que tem que gerar noticias para os seus patrões na Globo, sua única saída é manter uma eterna Lava Jato pois na hora que parar vai ter que explicar muita coisa inexplicável e buscar outra carreira pois como juiz não serve nem para apitar em time de várzea.

  5. Gostei da reflexão

    Professor, sou de Palmas, capital do Tocantins e estudante de direito, estagiei no TJTO, PFN, DPU e MPF e agora num escritório e percebo claramante e sem ideais a profundidade do texto. Eu lerei seus livros para diminuir ao máximo os risco de uma vaidade e suas prováveis implicações num processo.

  6. Moro, o novo Baltazar Garzon?

    em breve o juiz Moro irá provar se de fato no Brasil ninguém está acima da lei. Na Espanha o famoso juiz Baltazar Garzon foi expulso da magistratura por grampear conversas entre presos e advogados. Se de fato existir justiça neste país o mesmo deveria ocorrer com o midiático juiz Moro.

  7. Para nós,  a famosa frase de

    Para nós,  a famosa frase de Bertold Brecht “Pobre do país que necessita de heróis” merece uma adaptação: “Pobre Brasil : além de necessitar de heróis quando erige um ainda é fajuto”. 

    Perdi a fé nesse magistrado quando senti que seu ânimo ia muito além do singelo cumprimento do dever. Uma demarcação válida para qualquer agente público, mas, e especialmente, quando este veste uma toga e cuja função é de caráter estritamente reativo. 

    Analisando em perspectiva, aceitar aquele prêmio “Homem  do Ano” ofertado por uma entidade privada e além do mais protagonista do embate político que ora se trava no país, foi o começo do fim da credibilidade desse Juiz. Daí seguiram absurdos do tipo enviar mensagens e exortações para manifestantes de rua e a onipresença na mídia. 

    Já na prática do seu mister, as perseguições, ilegalidades e abusos de toda monta até atingir o paroxismo que foi afrontar o próprio Supremo Tribunal Federal. 

    Vai se juntar aos que permutaram o exercício do dever a ser cumprido de forma discreta e humilde pelas efémeras glórias transitórias ofertadas por interesseiros e manipuladores. 

  8. JUIZ DE EXCEÇÃO

    O juiz que julga os crimes ou denúncias vãs de um partido, Presidente  LULA e seus familiares e da Presidenta DILMA, com EXCEÇÃO das falcatruas e tramóias do PSDB, FHC e família. 

  9. 30 anos para juizes e promotores

    Na Constitição Federal, há idade mínima para exercer cargo político, ex: Presidente da República tem que ter 35 anos …De alguns anos pra cá, é nítido que os jovens estão cade vez mais velhos…e por isso não têm competência e nem estabilidade suficiente para lidar com decisões, pois, muitas vezes, sofrem de S.A.F – Síndome da Academia Frívola, mal contagioso que acomete, principalmente, aqueles que frequentam a Universidade Pública de Direito. Causando fanatismo de super herói e pouca sensibilidade a realidade humana.

    Então, por que não avançar a idade mínima para ingresso nas carreiras de Juízes e promotores?

  10. JUIZ DE EXCEÇÃO

     O juiz que julga os crimes ou denúncias vãs de um partido, Presidente  LULA e seus familiares e da Presidenta DILMA, com EXCEÇÃO das falcatruas e tramóias do PSDB, FHC e família. 

  11. Mas a tragédia tem um componente extra

    Por mais que tudo de errado; por mais que a verdade me soterre; por mais que meus crimes sejam revelados, nada me atinge pois estou acima dos mortais comuns: sou juiz, sou inimputavel !

  12. Belo texto

    Belo texto Salah, sobre  os sonhos dos ditadores esclarecidos , ungidos pelo divindade do bem, na luta contra o mal doa a quem doer.  Mas eu tenho dúvidas sinceras quanto a Moro e   a crença no bem. Pois existem aqueles, cujos devaneios são similares, mas cujos objetivos são terrenos, pois se sabendo limitados, querem poderes apenas terrenos, ou como diriam os antigos, poderes apenas mundanos. Para alcançá-los se utiliza de simulacros de justiça, simulacros  de boas intenções, mas não ousa a principio  ter  um poder tão grande, se satisfaz com um poder mesquinho, cotidiano,   dobrando  pessoas, contra as quais suas armas , ele sabe, são suficientes. Não ousaria contra outras pessoas, apenas contra aquelas que estão efetivamente em suas mãos. Sabe que seu poder não emana de si mesmo, e por isto sabe de sua limitação terrena. Sabe portanto que ainda tem que agradar, e fazer o jogo de outrem, pois se sabe limitado em todos os quesitos. Mas pensa também que é uma questão de tempo, pois tem ambições maiores,  quem sabe um dia  , sonha a criatura , virar o ditador esclarecido, a pseudo-divindade de Salah.  Mas entendam que não  estou discordando de Salah, pois até os medíocres tem sonhos e devaneios grandiosos. E quando digo mediocres, eu não os  subestimo, pois os mediócres são sempre escolhidos, pelos espertos, para desempenharem papéis num jogo. Os espertos sempre acham que são os criadores que controlam a criatura, mas os mediocres que são conscientes de suas limitações, podem ter calma e paciência e esperar a chance   para controlar o seu criador. Falando em fábulas, Golem  é uma delas.  Moro talvez  não tenha tido tempo de virar borboleta, talvez morra no casulo. Já Cunha, está numa fase pulpar, mais avançada, cuidado.

  13. Simplesmente magistral!

     

    É de prender fôlego, do início ao fim.

    Simplesmente magistral!

    Parabéns ao iluminado Autor.

    Nesta hora sombria que vivemos, seria uma benção cair nas mãos de todos os alucinados para fazê-los voltar à Vida em sociedade.

    1. Moro

      Dr. Juiz Moro com a esposa é fome com a vontade de comer. Quando ela  fez umma pagina no face em agradecimeno 

      a seus seguidores, usando inclusive crianças… Pensei: o castelinho desee casal esta desmorobando, logo o STF trouxe para ele as investigatoes do Lula. Começou a desmoronar. Esta chegando perto desee casal brincar com o povo Brasileiro. 

  14. Prezado Salah,
    Um primor o teu texto. De uma limpidez que nos desvela a “alma” em tela.
    Parabéns, antes de tudo, pela implícita defesa das vítimas da violência e insensibilidade, alimentadas por desmedida arrogância, a atingi-las.
    Lapidar e inspirador.
    Um libelo pela humildade e pelo valor do espírito público, tão esquecido e tão sobrepujado estes dias.

  15. Pensando ao contrário…

    Professor, belas palavras foram expostas para ao final tentar demonstrar apenas uma verdade em que você acredita.

    Penso que se fosse ao contrário, ao tentar escrever algo ao nossos atuais governates, não encontraria se quer, a metade destas qualidades, ou lindas palavras que foram expostas.

    #Brasilcorrupto

    #Chegadecirco

  16. Comentario a exposição do Autor
    carrissimo e emerito Mestre.
    1. Cada macaco no seu galho!Quando VS tiver passado por umprocesso publico de provas e titulos e tiver a Investidura e a Toga de Juiz eestará apto a emitir juizo de valores, até la como diz a fabula De La Fontaine em o Sapateiro e o Pintor… “remendao, nao va alem do teus sapatos!”
    2. Quem tem telhado de vidro, não joga pedras no vizinho.
    3. Competência é para quem tem e não para quem quer.
    Venia Mestre, mas o seu voto vale tanto quanto o meu ou seja democraticamente UM! ..e o mundo não tem dono!!!

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador