Na questão das escolas ocupadas, juízes atuaram contra a judicialização

Do Justificando

Juízes contra a judicialização da política

Frederico de Almeida

 mais de duas semanas estudantes iniciaram uma série de ocupações de escolas estaduais como forma de protestar contra o plano de reorganização da rede pública definido pelo governo paulista. Como é de costume, a primeira reação do governo estadual foi mandar a Polícia Militar às escolas. Em alguns casos – especialmente em locais de mais visibilidade, como na escola Fernão Dias, situada em bairro de classe média da Capital – a PM apenas cercou os prédios e tentou coager as ocupações limitando o acesso e as manifestações de apoio do lado de fora; em outros casos – especialmente na perferia, como na escola José Lins do Rego no Jardim Ângela – a PM invadiu escolas e agrediu professores e alunos.

A segunda medida do governo foi pedir na justiça a reintegração de posse das escolas ocupadas. Logo na primeira semana das ocupações, quando apenas quatro escolas estavam ocupadas, um juiz concedeu liminar pela reintegração. Antes da intimação dos estudantes, outro juiz, que tem a função de corregedor de mandados, convocou governo e estudantes para uma audiência de conciliação.

Já aí está uma ação por parte do Judiciário digna de nota: o esforço de mediar uma situação delicada e de forte conteúdo político, ao invés de simplesmente executar uma decisão tomada liminarmente. Não havendo acordo na audiência, como de fato não houve, a decisão deveria ser cumprida em 24 horas. Acontece que, após ouvir representantes do governo e dos estudantes na audiência convocada pelo seu colega responsável pela execução da decisão judicial, e diante de manifestação do Ministério Público contra a reintegração, o juiz que deu a liminar reconsiderou sua decisão. Em sua decisão, o magistrado considerou que não havia intenção por parte dos alunos na posse dos prédios das escolas, mas sim um objetivo de protestar contra os planos do governo; não se tratava de questão possessória, mas sim, como afirmou o juiz, de política pública.

Naquela decisão, o juiz também admitia a impotência de uma ordem de reintegração de posse diante da força de um movimento eminentemente político, ao afirmar que uma decisão isolada naquele sentido poderia se tornar inócua diante de novas ocupações de outras escolas. O magistrado estava certo: em pouco tempo, o número de escolas ocupadas por estudantes em protesto aumentou radicalmente, chegando a mais de setenta escolas menos de uma semana depois da sua decisão.

Não satisfeito, e sem qualquer iniciativa concreta de diálogo, o governo do estado recorreu da decisão e solicitou em segunda instância a reintegração das escolas ocupadas. Mais uma vez, houve a iniciativa por parte do Judiciário de uma audiência para ouvir governo e estudantes; e, mais uma vez, os desembargadores afirmaram que a questão era política, e não possessória. Mais do que isso, afirmaram o direito constitucional de manifestação por parte dos estudantes, e a necessidade de diálogo para a implementação das mudanças pretendidas pelo governo estadual. Já eram, então, mais de cem escolas ocupadas.

É importante lembrar que, ainda na primeira semana de ocupações, o governador do Estado afirmou, em tom de crítica, “que tinha política no meio” das ações dos estudantes. Com essa frase, colocou a tecnocracia acima da democracia, e repetiu certo senso comum que vê a atividade política como essencialmente ruim – o que é curioso, vindo de um político profissional, eleito pela ação política mais básica de uma democracia, que é o voto. Por sua vez, os juízes de primeira e de segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao reconhecerem a questão como política, o fizeram em sentido contrário ao do governo, defendendo o direito à manifestação dos estudantes e a necessidade de um diálogo democrático na implementação de políticas públicas.

Quando se fala em judicialização da política, fala-se do poder crescente dos tribunais nas sociedades contemporâneas, especialmente na decisão sobre políticas públicas ou com capadidade de influenciar o jogo da política representativa. Diz-se, em geral, que a judicialização da política acontece quando o Judiciário revê uma decisão tomada pelo Executivo ou pelo Legislativo, ou quando toma uma decisão que caberia àquelas instituições, no vácuo deixado por elas. O fenômeno não raro é criticado como sendo uma usurpação, por juízes não eleitos, do protagonismo dos cidadãos na política democrática. Nas recentes decisões judiciais sobre a ocupação de escolas por estudantes, contudo, vimos uma ação judicial em sentido radicalmente oposto: a recusa, por parte dos juízes, à judicialização de uma questão cujo caráter político o governo paulista quis negar, com autoritarismo e tecnocracia, e que os estudantes fizeram questão de reforçar, com uma aula de democracia.

Frederico de Almeida é bacharel em Direito, mestre e doutor em Ciência Política pela USP, e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
Redação

1 Comentário

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  1. Sensibilidade Judicial

    Esses são apenas alguns trechos do voto vencedeor proferido pelo Dembragador Magalhães Nogueira, no julgamento de Agravo de instrumento interposto pelo Fazenda do Estado de São Paulo visando a reitegração dos prédios escolares, a integra pode ser consultada no site do TJSP, processo nº2243232-25.2015.8.26.0000. Em boa hora Juízes se pronunciam em favor da liberdade de manifestação.

     

    Como estamos no espaço da política pública da educação explico pedagogicamente: O movimento de professores e alunos das escolas públicas não tem qualquer intenção explícita ou recôndita de se apossar desses bens públicos.

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    Como se reconheceu na sessão de julgamento, cuida-se tão somente de um processo reivindicatório legítimo e de discussão de uma específica política pública de educação da qual, aliás, são destinatários primeiros. Bem por isso, a meu juízo, o manuseio dessa ação com viés possessório é, na verdade, uma falsa questão, a criar ou a pretender criar um falso problema.

    Claro que não há dúvida de que todos podem se valer dos mecanismos colocados à disposição no ordenamento jurídico para a proteção de direitos ou de alegados direitos. Todavia, de um Estado espera-se um compromisso ético para além das meras conveniências ocasionais de seus dirigentes.

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    Mesmo porque esse Estado está vinculado aos vetores axiológicos da Carta Republicana, dentre os quais destaco, o respeito à dignidade humana, o pluralismo, e à gestão democrática das políticas públicas, no interior de um Estado Democrático e social de direito e de um regime político que se estruturou como democracia participativa.

    Bem por isso, soa estranho a retórica do processo e da própria conduta do Estado de São Paulo, a perpetuar, aqui, a dificuldade atávica que o Estado Brasileiro tem ao lidar em momentos sociais, fundados na matriz autoritária da sua gênese.

    Não se nega ao Poder Executivo o poder dever de propor e implementar suas políticas públicas e, nem ao menos, a política pública da educação que, agora, tenta concretizar. Não se pode negar a ela, inclusive, seus eventuais méritos.

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    A questão é que essa política pública específica que envolve milhares de alunos, professores e pais seja implementada sem o menor respeito à gestão democrática da educação, comando constitucional específico (art. 206, VI, da Constituição Federal).

    Uma política pública que envolve mobilidade urbana, implica reorganização das rotinas de muitas famílias e que diz respeito, inclusive, aos afetos legítimos dos alunos com suas escolas, não pode ser implantada a partir de uma matriz burocrática autoritária.

    Já tarda a hora em que essas questões possam a ser entendidas e enfrentadas a partir de outros paradigmas, como o respeito à cidadania, às famílias, professores e, sobretudo, aos estudantes das escolas públicas. E em boa hora o Poder Judiciário vem entender que uma matéria dessa magnitude não pode ser lida com o viés possessório que o recurso pretende lhe impor. E mesmo, ainda, com a leitura autoritária que o Estado Brasileiro costuma enfrentar as questões sociais.

    Em arremate, a questão não pode ser resolvida pela judicialização na via possessória, mas pelos canais institucionais próprios ao diálogo entre as diversas visões do problema, próprios, aliás, daqueles envolvidos na relevante política pública da educação.

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    Aliás, é preciso ter a coragem de se dizer que o ajuizamento dessa ação, além de sua evidente impropriedade técnica, constitui-se verdadeira irresponsabilidade e irracionalidade, porque não se resolve com repressão um legítimo movimento de professores e alunos, adolescentes na sua expressiva maioria, a merecer a proteção do Estado (art 205 e 227 da C.F.).

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    Não vai longe o dia em que a insensibilidade e o autoritarismo dos governantes, a incentivar o excesso de repressão policial, levou o país à perplexidade com os movimentos sociais e junho de 2.013. Não será, portanto, com essa postura de criminalizar e “Satanizar” os movimentos sociais e reivindicatórios legítimos que o Estado Brasileiro alcançará os valores abrigados na Constituição Federal, a saber, a construção de uma sociedade justa, ética e pluralista, no qual a
    igualdade entre os homens e a dignidade de todos os cidadãos deixe de ser uma retórica vazia para se concretizar plenamente.

    MAGALHÃES COELHO
    Revisor
     

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