O assédio judicial está sufocando a mídia independente, por Lia Ribeiro Dias

O caso mais emblemático do momento é o do jornalista Luís Nassif, diretor do GGN, que teve sua conta bancária e a de sua empresa bloqueadas para pagamento de indenizações.

por Lia Ribeiro Dias

Por falta de compreensão do princípio constitucional que garante a liberdade de expressão e a defesa da liberdade de imprensa, juízes de 1a Instância e mesmo desembargadores vêm acatando processsos que impõem a censura a reportagens e opiniões e estabelecendo multas sem proporcionalidade e critério. O caso mais emblemático do momento é o do jornalista Luís Nassif, diretor do GGN, que teve sua conta bancária e a de sua empresa bloqueadas para pagamento de indenizações.

A censura à imprensa e à liberdade de expressão não é nenhuma novidade na história do Brasil. Vem desde os tempos do Império, quando José Bonifácio, presidente da junta governativa, começou a perseguir jornalistas e jornais. Agravou-se nos períodos ditatoriais, como é próprio dos governos autoritários, ganhou alívio com a redemocratização do país e, desde o início dos anos 2000, adquiriu uma nova roupagem: o assédio judicial. Por meio de ações judiciais na área cível, os reclamantes pedem indenização por danos morais, muitas vezes em uma ação orquestrada.

Se os grandes veículos empresariais de comunicação têm musculatura financeira para enfrentar a enxurrada de processos, bancar advogados e viagens e eventualmente pagar multas, a mídia independente pode ser calada em decorrência do ativismo judicial. O caso atual mais emblemático do cerceamento à livre expressão, garantida pela Constituição Federal, é o do jornalista Luís Nassif, editor do jornal eletrônico GGN, 50 anos de profissão e muitos prêmios pela sua atuação profissional. Em uma denúncia-desabafo, Nassif relata que o cerco que lhe vem sendo imposto por cinco ações judiciais em andamento, nas quais lhe aplicaram pesadas multas e o bloqueio de sua conta pessoal e da conta jurídica de sua empresa, o estão expulsando do exercício do jornalismo.

Não é o primeiro nem o único caso de estrangulamento financeiro da mídia alternativa via ações judiciais. O também premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto, um dos maiores especialistas em Amazônia do país, teve que encerrar, em dezembro de 2018, a publicação de seu Jornal Pessoal, um meio tabloide quinzenal editado desde 1987, financiado apenas por seus leitores e pelo próprio jornalista e seu irmão. Motivo: a falta de recursos, decorrente em parte das 18 ações judiciais que Lúcio Flávio enfrentou, ao longo dos anos, por exercer a sua missão de defender a Amazônia, denunciar os grileiros, desmatadores, garimpeiros e a conivência das autoridades.

Morreu o Jornal Pessoal, mas Lúcio Flávio continuou sua atividade jornalística por meio de seu blog – Jornal do Lúcio Flávio, uma Agenda Amazônica. No meio do ano passado, o veterano jornalista da Amazônia anunciou o encerramento de suas atividades profissionais: diagnosticado com Mal de Parkison não podia mais exercer a profissão.

Assédio judicial

As ações judiciais em cascata que levaram a advogada Taís Gasparian, do InternetLab, a cunhar a expressão “assédio judicial”, hoje adotada por todos os advogados envolvidos com a defesa da liberdade de imprensa e liberdade de expressão, foram iniciadas no final de dezembro de 2007 contra a jornalista Elvira Lobato, então repórter especial da Folha de S. Paulo, em decorrência de reportagem publicada naquele mês sobre os negócios da Igreja Universal, do bispo Edir Macedo.

Foram 111 ações movidas por fieis da Igreja Universal, que deram entrada em cidades pequenas espalhadas pelo país, todas distantes das capitais, todas com argumentação semelhante, em que os que se sentiram ofendidos pela reportagem, embora ela não citasse nenhum dos autores, exigiam reparação financeira por danos morais. Taís, advogada da Folha de S. Paulo e responsável pela defesa de Elvira, não tem dúvidas de que foi uma ação orquestrada, que custou caro à empresa e causou enorme sofrimento à jornalista, acusada por dizer a verdade.

Elvira, em programa recente da TV Cultura sobre o assédio judicial contra a liberdade de imprensa, disse que, embora os fieis da Universal tenham perdido todas as ações, ela considerava que o processo contra ela foi vitorioso, pois viu-se obrigada a abandonar a cobertura sistemática que fazia sobre a expansão da igreja de Edir Macedo e de seus meios de comunicação. “Tinha perdido a isenção, pois era parte do processo”, afirmou.

Se a Folha de S. Paulo bancou todas as despesas do processo contra Elvira, Juca Kfouri, outro jornalista com mais de 100 processos em decorrência do exercício profissional, também teve toda a sua defesa coberta pelos veículos onde trabalhava. “Sempre incluí nos meus contratos de trabalho uma cláusula de garantia de assistência jurídica pela empresa jornalística”, conta o jornalista, um dos nomes mais respeitados da crônica esportiva. Entre 1992 e 2012, Juca enfrentou mais de cem ações impetradas por dirigentes da CBF, então comandada por Ricardo Teixeira, processado em vários países por desmandos e corrupção à frente da entidade. A maioria das ações, conta Juca, era na esfera cível, onde os pretensos ofendidos pediam indenização por danos morais (calúnia e difamação). A maior parte foi encerrada, com vitória do jornalista; algumas ainda estão em fase de recurso, inclusive no STF.

Asfixia financeira

Diferentemente dos profissionais que trabalham para grandes grupos empresariais de comunicação, os profissionais da mídia alternativa não têm respaldo financeiro para enfrentar o custo das ações, que envolve o pagamento de advogados (muitos defendem os jornalistas “pro bono”, ou seja, sem cobrar pelos seus serviços profissionais), as despesas de viagem para participar das audiências (hoje as audiências presenciais estão suspensas por conta da pandemia do novo coranavírus), fora o custo emocional e o assédio nas redes sociais. Quantos são os profissionais de sites e blogs que estão sendo processados?

Falta uma pesquisa mais acurada sobre o fenômeno do assédio judicial envolvendo a mídia alternativa pois o levantamento feito pelo Artigo 19, entidade dedicada à defesa da livre expressão, dos direitos individuais e da liberdade de imprensa, se restringe aos casos mais graves que envolvem ameaças à integridade física dos profissionais, tentativas de assassinato e homicídios. Segundo o último levantamento divulgado pela entidade, referente ao ano de 2019 e o primeiro semestre de 2020, foram 38 casos de violação, dos quais 32 ameaças de morte, quatro tentativas de assassinato e dois homicídios. As ameaças cresceram com o avanço da internet. Ente os casos de repercussão nacional documentados no relatório estão as ameaças feitas pelas redes sociais aos jornalistas Fábio Panunzio, Glen Greenwald, Juca Kfouri e Mônica Bergamo em decorrência de comentários críticos à gestão federal e à colunista Djamila Ribeiro por suas posições relacionadas à temática racial. Todos os demais casos envolvem críticas à gestão municipal e à segurança pública.

Alvo de processos judiciais movidos por autoridades e ativismo político da Justiça em defesa dos poderosos e seus interesses, Luís Nassif não é um caso isolado. Talvez seja o mais emblemático do momento em que vivemos de falta de critério de juízes de promotores, muitos contaminados pelo exemplo nefasto da Lava Jato e seu ativismo em causa própria. Abaixo, um relato dos casos mais recentes envolvendo a mídia alternativa e a liberdade de expressão.

Luís Nassif – responde, no momento, a cinco processos, que estão asfixiando financeiramente a ele e sua empresa. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reverteu sentença de 1ª Instância e o condenou por difamar Eduardo Cunha, ex-deputado federal, condenado e preso. Foi-lhe imposto um bloqueio de R$ 50 mil em sua conta pessoal e estão sujeitas ao bloqueio todas as fontes de receita do Jornal GGN. Em outra ação, por uma fotomontagem que por engano envolveu um homônimo, o Tribunal de Justiça de São Paulo decretou um bloqueio de R$ 30 mil, em conta conjunta do jornalista com sua esposa. O terceiro processos refere-se a uma ação impetrada pelo governador João Dória contra um artigo de um colaborador do GGN, onde pedia indenização de R$ 50 mil. O juizo aumentou de ofício o valor para R$ 100 mil. A quarta ação foi impetrada pelo desembargador Luiz Zveiter, com inúmeros inquéritos contra ele correndo no Conselho Nacional de Justiça. O juiz fluminente de 1a Instância estipulou a condenação em R$ 100 mil e a obrigatoriedade de pagamento imediato sob pena de o nome do jornalistas ser enviado ao SPC. A quinta ação foi impetrada pelo MBL que acusa o jornalista de ter dito que o movimento recebia dinheiro da Lava Jato, embora não houvesse ali nenhuma afirmação de que os R$ 2,5 bilhões da Fundação que a Lava Jato pretendia construir com os recursos da Petrobras tivessem alguma ligação com o MBL. O juiz de 1a Instância recusou a ação, mas o desembargador impôs multa ao jornalista de R$ 10 mil, afirmando que o texto não era claro.

Schirlei Alves e The Intercept Brasil – a jornalista e o TIB estão sendo processados pelo juiz Rudson Matos e pelo promotor Tiago Carriço de Oliveira, de Santa Catarina, por terem divulgado, em vídeo, trechos da audiência do caso Mariana Ferrer, jovem que foi vítima de estupro, em 2018, por parte de um empresário. Os vídeos mostram a violência psicológica a que a jovem foi submetida por parte do advogado do empresário sem que o juiz e o promotor tivessem atuado para coibir o abuso. Juiz e promotor, em sua ação, acatada pela juiza substituta da 3a Vara Cível da Comarca de Florianópolis, acusam a jornalista e o TIB de promoveram “uma verdadeira desinformação no país e a revolta da população contra o autor e o Poder Judiciário”. A juiza não apenas acatou a ação como determinou ao TIB a reedição dos vídeos, eliminando partes sob pena de multa diária. A indenização pedida pelo juiz é de R$ 450 mil e pelo promotor, de R$ 300 mil.

Schirlei, que nos últimos anos tem se dedicados à cobertura de pautas na área de direitos humanos, trabalhava no ND+, de Florianópolis, quando iniciou a cobertura do caso Mariana Ferrer. Pouco depois foi demitida, sob argumento de reestruturação da redação. Foi quando ofereceu a reportagem ao The Intercept.

J.P.Cuenca – responde a 111 ações movidas por pastores da Igreja Universal que se sentiram ofendidos por um tuite publicado pelo escritor e colunista no Deustche Welle, em  2020, que dizia: “O Brasil só estará livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”. Segundo Cuenca, o tuite foi motivado por um notícia que informava que o governo brasileiro subsidiaria emissoras evangélicas e é uma paráfrase de uma metáfora escrita, há 300 anos, pelo francês Jean Mellier. Seguindo o mesmo padrão das ações contra Elvira Lobato, as ações contra Cuenca estão espalhas em todo o país em cidades remotas. Nelas, os pastores pedem indenização de R$ 10 mil ou R$ 20 mil, o que dá um total de R$ 1,1 milhão a R$ 2,2 milhões. “A ideia deles é criar um caso indefensável… Não tenho capacidade logística ou econômica de me defender”, disse Cuenca, em entrevista. O advogado Fernando Lacerda, que assumiu a defesa gratuitamente, explicou que, embora as ações não sejam idênticas, ele vê nelas um padrão, o que o faz pensar em uma ação orquestrada. Em alguns casos, no entanto, as ações são quase idênticas, como as assinadas pelos pastores Lucio Furtado, de Unaí (MG), e Rogério Furtado, de Ariquenes (RO). Em tempo: Cuenca perdeu sua coluna no DW, que considerou o tuite que indignou os pastores contrário aos seus valores.

Marcelo Auler – repórter investigativo com longa carreira na imprensa empresarial, edita há quase seis anos o “Blog Marcelo Auler – Reporter”. Em sua relativamente curta vida, o Blog já acumulou sete processos judiciais; em quatro deles lhe foi imposta a censura em matérias publicadas e, em três, solicitadas indenizações que acabaram extintas. Embora Marcelo não tenha sido obrigado a pagar multas nem a enfrentar bloqueio de conta bancária, ele relata que os processos geraram gastos como despesas de cartório, xerox e viagens a Curitiba, Belo Horizonte e Brasília, que comprometeram seu apertado orçamento. Isso porque não teve que pagar advogado. Sua defesa foi “pro bono”. Dos sete processos, dois permanecem em andamento. Um deles se refere à censura imposta pelo juiz Luís Decossau Machado, da 5a Vara Cível de Curitiba, impetrado pela juíza estadual Márcia ReginaHernandez de Lima referente à reportagem publicada no Blog e no Jornal do Brasil impresso sobre a separação de crianças hatianas de seus pais, todos refugiados no país.

(#Envolverde)

Redação

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