O momento para discutir as cotas no Judiciário

Enviado por Osvaldo Ferreira
 
No mês de junho do presente ano de 2014, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou os dados coletados para o primeiro Censo do Poder Judiciário realizado em todo o País. Em relação à distribuição racial da magistratura brasileira, o censo revelou que apenas 14% dos juízes de direito se declararam pardos, 1,4% se identificaram pretos e 0,1% se declararam indígenas; tais dados, em contraste com a esmagadora maioria de 84,5% que se declarou branco.
 
Trata-se de mais um, dentre tantos outros informes estatísticos divulgados diariamente por todo o País, que desmonta a tese da existência da democracia racial brasileira. Dois séculos de independência política frente a metrópole portuguesa não lograram eliminar relações eminentemente coloniais baseadas em critérios raciais, onde o branco ocupa as funções inseridas no ápice da pirâmide social-econômica, ao passo que o preto e o indígena, aquelas situadas na base da mesma pirâmide.
 
Tal quadro é socialmente naturalizado, vindo a legitimar o formato dos concursos de ingressos à carreira da magistratura baseados em uma adulterada meritocracia que desconsidera o pressuposto da existência de ponto de partida igual entre os candidatos.  O que se tem em tempos atuais são concursos que nem sempre refletem o mérito de todos os extratos da sociedade brasileira, realizando, conforme explicitado pelo censo, “[…] discriminação, subalternização  e desumanização com base nos atributos de raça e cor, ou seja, trata-se de racismo.”1
 
Racismo
 
A despeito de consistir em reflexo de problema que alcança todo o País, a prevalência de brancos nas atividades-fins do Poder Judiciário traz consigo efeitos políticos e jurídicos peculiares à atividade jurisdicional. Não se pode olvidar que a interpretação e a aplicação de documentos legais exigem a emissão de “[…] juízos morais sobre questões que dividem profundamente os cidadãos, como o aborto, o auxílio ao suicídio e a justiça racial”2, a depender da visão de mundo de cada magistrado.
 
Ora, um Judiciário que, internamente, não contribui para a democratização racial apresenta, como consequência imediata, dificuldade em externar a visão de mundo das raças historicamente colonizadas. Os juízos morais que influenciam a atividade jurisdicional limitam-se, quase exclusivamente, aos adquiridos pelos brancos nunca escravizados e nem submetidos a qualquer processo de dizimação.
 
A promulgação de uma Constituição Federal (CF) que estipulou como um dos objetivos do estado brasileiro a promoção do bem de todos sem qualquer forma de discriminação (art. 3o, IV) não foi, portanto, suficiente para inserir a visão de mundo das raças colonizadas nas decisões judiciais.   Trata-se de circunstância que parece não deixar dúvida de que a positivação de direitos, embora de suma importância para o alcance de demandas dos excluídos, não basta para a correção de injustiças históricas e para a promoção de democracia pluralista.
 
A implementação de ações afirmativas por parte do Estado revela-se, assim, importante instrumento para a efetivação dos valores emancipatórios positivados. No caso do Judiciário, a possibilitar que a visão de mundo das raças de há muito colonizadas também seja externada na resolução dos conflitos de interesse, gerando maior sensibilização sobre velhos problemas relativos à discriminação e ao preconceito não sentidos na pele da maioria branca que atualmente ocupa a magistratura.
 
Acesso
 
Há, é bem verdade, políticas de cotas nas universidades que podem ampliar o acesso de pretos e indígenas à formação jurídica, imprescindível ao ingresso na carreira da magistratura. Todavia, trata-se de ação, isoladamente, insuficiente, na medida em que os concursos para os cargos de juiz de direito apresentam etapas – especialmente a fase oral – sujeitas à subjetividade dos membros das bancas julgadoras, em sua maioria formada pelos mesmos brancos que ocupam a quase totalidade do Judiciário brasileiro, compartilhando uma visão de mundo que nem sempre conhece o histórico de colonizado da imensa maioria excluída da carreira.
 
A implementação das política de cotas não significa, outrossim, que haverá distribuição aleatória de vagas em concursos para a magistratura. Os candidatos que pleitearem o ingresso na carreira submeter-se-ão às mesmas provas que os demais concorrentes, com a diferença de que se identificarão como pretos ou indígenas no ato de inscrição.  
 
O fato de o atual formato dos referidos concursos dificultar a aplicação das cotas (por exemplo, aprovando número menor de candidatos ao de vagas abertas, ante a insuficiência das notas dos reprovados, conforme exigência de edital) não pode ser óbice às políticas afirmativas.  O certame é uma construção humana – e não um fato da natureza -, podendo, por tal motivo, sofrer modificações para se adaptar às exigências de democracia racial.
 
Por fim, lembra-se que as ações afirmativas, além de se amoldarem à igualdade material projetada constitucionalmente (art. 5o, caput , da CF), encontram amparo jurídico na Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial. O artigo 1o, parágrafo 4o desse diploma normativo estabelece que não serão consideradas discriminatórias “as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais e étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em igualdades de condições.”
 
A Associação Juízes para a Democracia entende que está na hora de a sociedade brasileira discutir a promoção de políticas de cotas raciais para o Poder Judiciário. Sob uma ordem normativa que cerca de um quarto de século atrás prometera ser a Constituição-cidadã, não se pode continuar a negar a cidadania à grande parcela da população, impedindo-a de ingressar na função estatal de aplicar o Direito ao caso concreto, essencial aos fins emancipatórios do Estado brasileiro consagrados em sede constitucional.
 
São Paulo, 6 de agosto de 2014.
 
André Augusto Salvador Bezerra
 
Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia
Redação

5 Comentários

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  1. Meritocracia?

    Antes que os suspeitos de sempre comecem a falar em meritocracia, peço que me expliquem a nomeação, feita por Aécio Neves,  de Hélio Valentim para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Sendo o segundo colocado na lista tríplice apresentada ao então governador, Valentim foi nomeado, conrariando a tradição de se nomear o primeiro. Passado pouco tempo, descobriu-se que, no exercício do cargo, participava de um esquema de venda de liminares favoráveis a traficantes de drogas.

  2. Teve pelo menos um País em

    Teve pelo menos um País em que seu dirigente, sensível às desigualdades, por conta própria e sugestão de amigos e assessores resolveu dimimuí-la. E anunciou faceiro sua corajosa decisão. Festejada por todos seus simpatizantes. Seria interessante ver as experiências desse País para ver se seu dirigente, hoje ex, repetiria o ato. Daí a importância da discussão. A qualquer momento. Só não se aconselha em momentos de grande trauma e profunda decepção. Que precede julgamentos em que o clamor popular possa influenciar, por exemplo. Parece que o tal País já é acostumado com a falta decaráter, decoro e preparo profissional de alguns de seus mais seletos homens públicos. Penso que certas discussões, precedem à outras.

  3. e o perfil?

    em todo concurso público, objetiva-se determinado perfil “ideal” do aprovado.

    do jeito que o judiciário e ministério público estão aparelhados pelo que há de mais retrógrado, o problema está nesse tal “perfil adequado”, e no responsável por ele nos concursos.

    o judiciário é um poder que não emana, pelo menos diretamente, do povo; do voto. por isso, esse perfil reacionário do judiciário, em descompasso com o eleitorado brasileiro atual e as urnas é uma aberração.

    urge uma reforma política profunda do judiciário, incluindo punições severas aos juízes que envergonharem a magistratura.

    1. Cotas no Judiciário

      Mauro, pegando seu gancho, acrescento que a tal impunidade, que tanto impede o avanço social, econômico e cultural do país começa, no bojo do Poder Judiciário.

      A corrupção grande, não se inicia de baixo, pra cima, mas, de cima pra baixo. São nos Tribunais Estaduais e Federais onde se desenrolam os grandes conchavos. O Juiz de 1ª Instância muitas vezes é ccoptado pelo Des. e assim por diante. 

      Há grandes interesses, por tráz de nossas mazelas, que são defendidos a ferro e fogo, por magistrados de todo naipe.

      Concordo também, que há Juízes que já entram na carreira para se locupletarem do cargo, para se venderem. E não são poucos. Porém, há uma boa parcela desses Juízes que querem a eleição direta para Pres. de Tribunais, para se iniciar a democratização nesses cargos relevantes, aumentando a participação da base nos processos decisórios.

      O arejamento do Judiciário, pelas cotas, além de necessário, representa uma mudança de paradigma da visão elitista atual dos magistrados, para uma posição mais condizente com as necessidades e direitos legítimos do cidadão comum, este que como nós, carrega o piano.

      Contra o aparelhamento do Judiciário pelo capital hegemônico e, especialmente das grandes corporações multinacionais, pela transparência e pelo resgate de nossa cidadania, Cotas já. É um começo.

      1. o quinto …

        samuel

        sou totalmente contrário ao chamado 5º constitucional, que só agrava as distorções atuais, porque entendo que os tribunais superiores devem estar ocupados por juizes de carreira exclusivamente.

        questiono também esse “perfil” citado em comentário acima.

        note bem: em todo e qualquer concurso, é combinado com aquele que o administrará o ‘perfil ideal do aprovado’, e a prova; o concurso é montado para se chegar a esse perfil almejado.

        a questão que venho levantando há tempos é: quem ‘fornece’ esse tal ‘perfil almejado’?

        porque, no frigir dos ovos, o resultado prático disso foi o aparelhamento do judiciário por muitos reacionários, alguns até nazi-fascistas.

        daí a atual crise de credibilidade do judiciário que lhe corroi o único bem que o sustenta junto ao cidadão: a isenção. sem ela, a presença de juízes pode ser substituída por qualquer máquina; qualquer programa de computador, com a vantagem de ficar muito mais barato para o contribuinte.

        só que isso pode ser um ‘admirável mundo novo’ que não tem nada de admirável.

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