O Pós-CNJ e acusação de maleficiis feita contra Rubens R.R. Casara, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O Pós-CNJ e acusação de maleficiis feita contra Rubens R.R. Casara

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Não fiquei surpreso ao saber que o CNJ decidiu processar o juiz Rubens R.R. Casara em razão das manifestações dele contra o golpe de estado que levou ao poder uma quadrilha de mafiosos. A escalada antidemocrática do judiciário era previsível e começou quando o presidente do TST passou a perseguir juízes que se colocaram contra a reforma trabalhista.

De fato, a conduta do CNJ neste caso demonstra a evidente revogação dos direitos e garantias individuais do juiz pela razão neoliberal que assaltou o poder. Como disse o próprio Rubens R.R. Casara em seu livro:

“Na pós-democracia, o significante ‘democracia’ não desaparece, mas perde seu conteúdo. A democracia persiste como uma farsa, uma desculpa que justifica o arbítrio. Em nome da ‘democracia’, rompe-se com os princípios democráticos.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R.R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 31)

“Na pós-democracia não existem obstáculos ao exercício do poder: os direitos e as garantias fundamentais também são vistos como mercadorias que alguns consumidores estão autorizados a usar. Da mesma maneira que judeus se converteram ao cristianismo para escapar da Inquisição (os ‘cristãos-novos’), direitos, garantias e tudo aquilo que antes era considerado inegociável foram transformados em mercadorias (‘mercadorias-novas’) em nome do neoliberalismo, um fundamentalismo que só não pode ser tratado como ‘religião porque nele não há espaço para o perdão e a expiação, isso porque a fé neoliberal só reconhece a existência de dívidas e culpas.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R.R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 41)

No imaginário do corregedor do CNJ, Casara é obviamente culpado. Ele ousou utilizar uma mercadoria-nova (o direito à liberdade de consciência e de expressão) que foi reservada pelo mercado àqueles que apoiaram o golpe de 2016. Não apoiar o golpe ou resistir à sua expansão pela sociedade se tornou, portanto, um crime de lesa-majestade (ou melhor, de lesa-neoliberalismo).

Muito embora não seja descrito na legislação, o crime de lesa-neoliberalismo cometido por Rubens R.R. Casara é agravado pelo fato dele ter dedicado cinco capítulos inteiros de seu livro ao Poder Judiciário. Num deles o neo-criminoso disse que:

“…No Estado Pós-Democrático o que há é uma empresa punitiva. E a pena consiste, em última análise, sempre na imposição de um sofrimento, apresentado como resposta aos fato rotulados como criminosos, a determinada pessoa de carne e osso. Em meio a confusão entre crime e pecado, entre direito e moralismo, os direitos e as garantias fundamentais, ainda quando previstos formalmente na legislação de um país, acabam percebidos e afastados como obstáculos à atividade repressiva do Estado.”  (Estado Pós-Democrático, Rubens R.R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 101)

No caso especificamente do Brasil, de um Estado que agora se organiza de alto-abaixo para proteger uma quadrilha de ladrões que assaltou o poder com o intuito de desnacionalizar o petróleo e destruir as empresas genuinamente nacionais (dentre elas a Petrobras, o Banco do Brasil e a CEF). Casara foi especialmente feliz ao mencionar a confusão entre crime e pecado. Ao fazer isto creio que ele cometeu o maior de todos os pecados, razão pela qual ele será inevitavelmente punido pelo CNJ: ele apontou os juízes e disse j’accuse.

A acusação aos juízes feita por Casara é política e, portanto, inofensiva. Num Estado Democrático de Direito as palavras dele seriam admissíveis e ele mesmo se encontraria protegido pelo princípio constitucional que garante a liberdade de consciência e de expressão. Mas no Estado Pós-Liberal qualquer tentativa de levantar o véu que encobre o simulacro de democracia que existe sob o significante ‘democracia’ se torna passível da acusação de maleficiis.

Onde a razão-neoliberal impera, colocar o mercado-imperador em risco equivale a cometer o mesmo crime que foi imputado a Claudia Pulchra em 26 dC, durante o reinado de Tibério, e a Barea Soranus, Thrasea Paetrus e Servília (filha de Barea Soranus) durante o reinado de Nero (54 a 58 dC). A perseguição de Casara pelo CNJ confirma duas teses que divulguei aqui mesmo no GGN  (Uma breve pax romana no Brasil e Vidas paralelas: Calígula e Michel Temer).   

É fato notório que vários juízes aderiram ao golpe de estado antes de sua consumação. Muitos deles atacaram Dilma Rousseff nas redes sociais e alguns foram às ruas se manifestar contra a presidenta legitimamente eleita pela maioria dos brasileiros. Apesar de terem pregado uma ruptura da legalidade (e, portanto, violando seu dever funcional de cumprir e fazer cumprir fielmente a Lei) aqueles juízes não foram punidos pelo CNJ.

No Estado Pós-Democrático o CNJ se torna assim um Pós-CNJ, órgão com poder de censurar os juízes dividindo-os entre aqueles que merecem ser punidos e aqueles que podem se manifestar. A razão neoliberal que garantiu os direitos constitucionais dos juízes que apoiaram o golpe de 2016 é a mesma que revogará a liberdade de consciência e de expressão de Casara e de seus colegas perseguidos pelo Pós-CNJ.

Logo após o golpe de 2016 escrevi um texto sobre as duas representações daquele fenômeno. A única coisa que mudou desde então é que o Pós-CNJ decidiu adotar uma delas como versão oficial dos fatos. Qualquer dissonância manifestada pelos juízes será considerada um desvio passível de punição. Isto também confirma as palavras do juiz perseguido:

“Na pós-democracia, há uma tendência à criação de um inimigo imaginário com base em estereótipos hostis que impedem a percepção do que há de singular no outro, no diferente. O inimigo é construído a partir tanto de preconceitos quanto de estereótipos e passa a ser identificado como uma ameaça e, por vezes, a causa de todos os males. O outro torna-se um monstro, em uma espécie de regressão a padrões de pensamento da primeira infância, e a exclusão/extermínio da diferença é a solução para a superação do medo.”  (Estado Pós-Democrático, Rubens R.R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 80)

O medo que Casara despertou no corregedor do Pós-CNJ é evidente. Não tão evidente é a inveja que o grande juiz-escritor desperta em todos nós. O medo é um péssimo conselheiro, especialmente quando orienta as ações de uma autoridade levando-a a violar deliberadamente a Lei.

A inveja, porém, pode ou ser ser benéfica. Se alguém satisfeito diz “Ah, como eu gostaria de escrever como aquele autor” as sementes de uma nova obra podem estar sendo lançadas. Mas quando um leitor infeliz rumina “Oh… aquele desgraçado não poderia ter dito isto de maneira tão eloqüente e elegante” o resultado é quase sempre funesto para o invejoso. No caso de Casara, o crime cometido pelo acusador contra si mesmo é e sempre será mais infame do que o maleficiis que ele imputou ao perseguido.

Fábio de Oliveira Ribeiro

4 Comentários

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  1. Na vigente escalada da

    Na vigente escalada da implantação do estado pós-democrático, qual poderia ser o próximo passo, o mercado impor obstáculos diretos a obras como a de Casara ?

  2. Muito interessante o texto,

    Muito interessante o texto, mas faltou (mencionar) quais foram as penalidades aplicadas…, seria muito interessante saber (…)!!!!.

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