Os problemas do primeiro presídio realmente privado do Brasil

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – O primeiro presídio do País feito por meio de uma parceria público-privada (PPP) não impede que presos fujam, registra denúncias de violações aos direitos humanos e levanta debates acalorados sobre a mercantilização do sistema penitenciário para garantir lucro às empresas. É o que mostra um documentário da Agência Pública sobre a penitenciária de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, idealizada em 2009 pelo então governador Aécio Neves (PSDB) para servir de modelo nacional e, eventualmente, plataforma eleitoral.
 
A obra do complexo penitenciário foi concluída durante a gestão de Antonio Anastasia, correligionário e sucessor de Aécio. O plano é ter cinco pavilhões funcionando a todo vapor, mas em 2014, um ano após a inauguração, a maioria ainda não estava em operação. 
 
A Agência Pública teve acesso restrito ao local para uma reportagem em vídeo, em 2014, reproduzido pelo GGN abaixo. Nela, a primeira experiência de penitenciária PPP – que já inspirou projetos semelhantes Rio Grande do Sul, Pernambuco, Distrito Federal e São Paulo – deixa transparecer, na fala de dirigentes e especialistas em segurança pública, os problemas de um sistema privado.

Durante a passagem pela penitenciária, a reportagem da Pública colheu relatos de humilhação de familiares de presos nas revistas feitas minutos antes das visitas, queixas de detentos que já cumpriram toda a pena e ainda assim não foram soltos, além de regras do cotidiano questionadas pela massa carcerária, como a obrigatoriedade de tomar banho em até três minutos, e corte de água durante o dia. Além disso, o sistema não impediu que o mesmo detento fugisse duas vezes.
 
Um dos pontos que a penitenciária se orgulha de ter implementado, mas foi questionado por um defensor público, é o fato de até a assistência jurídica ser privatizada. Isto é, se um preso quiser denunciar uma tortura ou outro tipo de violação, terá de fazer isso ao advogado contratado pela empresa que administra a unidade penitenciária. “Tudo foi arquitetado de maneira muito perversa”, disse o defensor Patrick Cacicedo.
 
Outro problema levantado está no uso e precarização da mão de obra dos detentos. A ideia é que todos os presos estudem e trabalhem, mas sem nenhum contrato e custando menos da metade dos custos que um assalariado CLT custaria. A lei, aliás, permite que eles recebam até três quartos de salário mínimo, e em alguns casos, parte desses recursos podem ser investidos nas melhorias do próprio presídio.
 
O trabalho geralmente é feito para a indústria da segurança pública – produção de equipamentos de viligância e vestuário – e para o próprio Consórcio que ganhou a licitação para construir a penitenciária PPP. Pública aponta, inclusive, que nomes do chamado Consórcio GPA estão ligado a escândalos de corrupção.
 
O resultado de um modelo que quer o preso como mão de obra obrigatória é que estupradores e traficantes não são aceitos, pois dificultam a sedução de contratantes. Outro fator que faz a gestão da penitenciária ser seletiva está relacionada ao seu próprio lucro: o Estado pode suspender parte dos pagamentos se houver rebelião ou qualquer outro incidente que demonstre a fragilidade da segurança interna. E como estupradores e traficantes são considerados presos de difícil ressocialização, o governo de Minas decidiu impedí-los de entrar na penitenciária PPP para não “atrapalhar o projeto”. 
 
Segundo a reportagem, o Estado pagava, em 2014, cerca de R$ 2,7 mil por mês por cada preso do sistema PPP. No sistema público, o preso custava a mensalidade de até R$ 1,7 mil – o que faz o argumento de que a PPP é mais vantajosa para o Estado ser colocado em xeque. Por contrato, o governo mineiro ainda se comprometeu a garantir 90% de preenchimento de vagas. 
 
Ao contrário da terceirização de presídios, que mantém a chave da cadeia com o poder público, mas obriga o Estado a fiscalizar a empresa gestora, na PPP, a fiscalização é reduzida. Isso fez com que o governo mineiro fosse condenado pela Justiça do Trabalho em 2014, porque a penitenciária de Ribeirão das Neves fez contratações indevidas.
 
Certo é que o tema privatização de presídios é polêmico. Previsto na Agência Brasil do PMDB antes mesmo do impeachment, a ideia recebe críticas porque não rompe com a lógica da “política criminal de encarceramento em massa”. Pelo contrário. A lógica é: usar a superlotação nas unidades públicas para justificar a privatização e, uma vez privatizado, o sistema vai querer garantir cada vez mais presos para garantir lucros.
 
Hoje, no Brasil, existem mais de 600 mil presos, mas pouco mais de vagas para dar conta dessa semana. O décifit é de pouco mais de 250 mil vagas.
 
O presídio de Manaus, o Compaj, onde ocorreu o maior massacre desde Carandiru, é terceirazado, a exemplo de pelo menos outros 22 presídios em várias cidades de sete estados: Santa Catarina, Minas Gerais, Espírito Santo, Tocantins, Bahia, Alagoas e Amazonas.
 
A reportagem da Agência Pública, na íntegra, está aqui.
 
 
 
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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    Por que os EUA decidiram deixar de usar prisões privadas

     

    Alessandra CorreaBBC Brasil27 agosto 2016APImage copyrightAPImage captionPrisão de Walnut Grove, no Mississipi, é uma das instalações que será atingida pela decisão

    Depois de uma análise detalhada sobre condições de segurança e custos, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos anunciou na semana passada que pretende deixar de usar prisões privadas para abrigar presos sob custódia federal, em uma decisão que encerra décadas de parceria e, segundo analistas, sinaliza uma mudança histórica de postura do governo americano.

    “As prisões privadas tiveram papel importante durante um período difícil, mas o tempo mostrou que têm desempenho inferior se comparadas às nossas instalações (administradas pelo governo)”, disse a subsecretária de Justiça, Sally Yates, em memorando.

    “Não oferecem o mesmo nível de serviços correcionais, programas e recursos, não apresentam redução significativa de custos e não mantêm o mesmo nível de segurança e proteção.”

    A medida atinge apenas uma pequena fração da população carcerária do país, já que somente 12% dos presos federais estão em estabelecimentos administrados por empresas, e a maioria das prisões privadas são estaduais ou locais e não serão afetadas pela mudança.

    “Apesar disso, é uma importante medida simbólica e poderá contribuir com o atual debate sobre encarceramento em massa”, disse à BBC Brasil o especialista em justiça criminal Marc Mauer, diretor-executivo do Sentencing Project, grupo que defende reformas no sistema de justiça criminal american

    “O sistema de prisões privadas nos Estados Unidos cresceu tremendamente desde seu início, nos anos 1980. Este é o primeiro revés significativo em 30 anos”, observa Mauer.

    Agressões e contrabando

    A decisão foi anunciada após a divulgação de um relatório do Office of Inspector General (divisão de fiscalização do Departamento de Justiça) que analisou como as prisões privadas são fiscalizadas, se cumprem determinados padrões de segurança e como se comparam em relação às instalações operadas pelo governo federal.

    O relatório concluiu que é preciso melhorar a fiscalização e revelou que as prisões privadas registram mais casos de agressões, contrabando e motins, além de oferecerem menos serviços de reabilitação, como programas educacionais e de treinamento profissional.

    O documento cita motins provocados pela má qualidade da comida e de atendimento médico e incidentes nos últimos anos que “resultaram em amplos danos a propriedade, ferimentos e a morte de um agente penitenciário”.

    A mudança será gradual. O Departamento de Justiça instruiu sua agência responsável pela administração do sistema federal de prisões, o Bureau of Prisons, a não renovar os contratos com empresas privadas que começarem a vencer ou, nos casos em que ainda seja necessária renovação, reduzir “substancialmente” o número de leitos previstos.

    A decisão deve ser facilitada pela redução da população carcerária federal que, segundo Yates, depois de crescer cerca de 800% entre 1980 e 2013 – o que levou o governo a recorrer a prisões privadas para aliviar a superlotação -, começou a declinar.

    O número de presos em unidades federais caiu de 220 mil em 2013 para menos de 195 mil atualmente – uma pequena parcela da população carcerária total nos Estados Unidos, de cerca de 2,2 milhões de pessoas, incluídas prisões estaduais e locais.

    Dos 195 mil presos federais, cerca de 22 mil estão em 13 prisões privadas, localizadas nos Estados de Novo México, Oklahoma, Texas, Califórnia, Carolina do Norte, Georgia e Mississippi. Yates espera reduzir esse número para cerca de 14 mil até maio do ano que vem.

    APImage copyrightAPImage captionCCA, uma das administradoras das prisões dos EUA, se disse ‘decepcionada’ com a decisão

    Reações

    As três empresas que operam essas prisões privadas – Corrections Corporation of America (CCA), GEO Group e Management and Training Corporation (MTC) – se disseram “decepcionadas” e criticaram as conclusões do relatório e a decisão do Departamento de Justiça.

    “Se fosse baseada somente no declínio da população carcerária, poderia haver alguma justificativa. Mas basear esta decisão em custos, segurança e oferta de programas é errado. Os fatos não sustentam essas alegações”, diz a MTC em nota, ressaltando que as prisões privadas abrigam uma população carcerária mais homogênea, o que levaria a maior ação de gangues e, por isso, mais incidentes.

    Segundo especialistas, porém, os problemas apontados no relatório não são novos. “Esses problemas já foram identificados há mais de 20 anos”, afirma Mauer.

    Para ele, o que mudou foi o ambiente político no país e o debate sobre justiça criminal. “Agora temos tanto liberais quanto conservadores defendendo reformas e redução da população carcerária. As lideranças políticas se sentem mais confortáveis em examinar o sistema e descrever seus problemas”, salienta.

    De acordo com o especialista em justiça criminal Martin Horn, professor do John Jay College of Criminal Justice e ex-chefe do departamento de correções e liberdade provisória da cidade de Nova York, há nos Estados Unidos uma crescente objeção filosófica ao conceito de prisões privadas.

    “As pessoas sentem que a administração de Justiça, punição e segurança pública não deve ser algo sujeito a controle privado. E que é um modelo inerentemente falho, devido à motivação dos operadores de lucrar”, disse Horn à BBC Brasil.

    Histórico

    Os Estados Unidos começaram a utilizar prisões privadas nos anos 1980, quando sentenças duras eram a resposta a uma onda de criminalidade no país, em meio à guerra às drogas, e fizeram a população carcerária explodir.

    No início, as empresas começaram a operar prisões privadas no nível local e estadual e, a partir de meados da década de 1990, em instalações federais.

    “A indústria de prisões privadas começou a se aproximar dos governos e sugerir que poderia encarcerar pessoas a um custo menor e ajudar a combater a superlotação. Mas, ao mesmo tempo, também estavam prometendo a seus acionistas que poderiam gerar lucro”, observa Mauer.

    Segundo Mauer, uma das maneiras de cortar custos em uma prisão é pagar salários menores e oferecer menos treinamento aos guardas, o que leva a maior rotatividade e a uma força menos experiente.

    “Isso é parte do motivo pelo qual vemos relatos de problemas de segurança”, salienta.

    Horn ressalta que os problemas não são exclusividade das prisões privadas. “Há muitas prisões públicas que são simplesmente horríveis. E há prisões privadas que são boas”, diz.

    Federal Bureau of PrisonsImage copyrightFEDERAL BUREAU OF PRISONSImage captionA prisão federal de Yazoo, no Mississipi

    Segundo Horn, cabe ao governo fiscalizar o cumprimento dos contratos. “Nas situações em que o contrato é bem escrito e a fiscalização é rigorosa, acho que uma prisão privada pode ter bom desempenho, e há exemplos disso nos Estados Unidos e em outros países”, afirma.

    Brasil

    As mesmas empresas que dominam o mercado americano de prisões privadas também têm atuação no exterior, administrando unidades em países como Austrália, África do Sul e Grã-Bretanha.

    No Brasil, está em discussão um projeto de lei que prevê a contratação de parceria público-privada para a construção e administração de estabelecimentos penais.

    Enquanto defensores afirmam que seria a solução para um sistema carcerário marcado por superlotação, instalações insalubres e ações de facções criminosas, críticos temem que a privatização possa levar a um número ainda maior de presos, sem melhorar condições ou reduzir custos.

    Horn não descarta a ideia de que poderia ser uma oportunidade para melhorar as prisões brasileiras. “Por meio de parceria público-privada, o governo poderia encomendar novas construções utilizando capital privado. E a possibilidade de competição poderia criar incentivo para o sistema público melhorar”, afirma.

    Para Mauer, muitos dos problemas estruturais das prisões privadas nos Estados Unidos se aplicam a outros países. “É muito difícil gerar economia sem um efeito negativo sobre a segurança”, destaca.

    Mauer reconhece que prisões públicas também têm problemas. “Mas quando estão sob administração pública, há possibilidade de maior fiscalização, os contribuintes podem fazer cobranças”, ressalta.

    “Não há nada de errado em o governo trabalhar com o setor privado, mas quando estamos falando de privação de liberdade, me parece perturbador entregar essa função a quem oferece o menor preço e está buscando lucro”, diz Mauer.

    APImage copyrightAPImage captionDos 195 mil presos federais, cerca de 22 mil estão em 13 prisões privadas

    Efeito limitado

    Todos os envolvidos no debate, contrários ou a favor da mudança, reconhecem que seu efeito imediato será limitado, já que a medida não se aplica às prisões privadas estaduais e locais, nem àquelas que abrigam acusados de violar leis de imigração – que são federais, mas ligadas ao Departamento de Segurança Interna, não ao Departamento de Justiça.

    “A decisão serve de alerta para a indústria de prisões privadas, de que deve corrigir os problemas. Mas não será o seu fim”, prevê Horn.

    A medida, porém, pode ser um primeiro passo para uma mudança mais ampla.

    “Pode influenciar a maneira como os Estados usam prisões privadas. Eles não têm obrigação de seguir o governo federal, mas como ações no nível federal recebem muita atenção, pode gerar um efeito cascata em alguns Estados nos próximos ano”, afirma Mauer.

     

    http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37195944

     

     

     

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