Porque processo penal e garantias jamais rimam com “heterodoxia”!, por Lenio Luiz Streck

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do ConJur

Porque processo penal e garantias jamais rimam com “heterodoxia”!

por Lenio Luiz Streck

O título deste texto também poderia ser: O ministro Fachin, a heterodoxia e os fins que justificam os meios.

O papel da doutrina é fazer cobranças epistêmicas. Como faço de há muito, procurarei exercer essa função hoje novamente. Com efeito, o ilustrado ministro do STF Edson Fachin foi o autor de uma frase intrigante na semana passada. Explico: analisando a atuação do juiz Sérgio Moro e o pedido da defesa do ex-Presidente Lula no Habeas Corpus n. 164.493, cujo resultado até o momento é dois a zero pró não conhecimento do writ, o ministro falou em “procedimentos heterodoxos”:

“Não deixo de anotar que houve procedimentos heterodoxos, mesmo que para finalidade legítima“, disse o ministro. No entanto, para o ministro Fachin, exige-se “mais que indícios ou narrativas” para se comprovar que houve eventual falha do juiz. Os grifos são meus. A notícia é da ConJur, e está também aqui e aqui. E aqui está o voto na íntegra (voto transcrito). [1]

Então, o que será que ele disse ou quis dizer com isso? O ministro é um professor culto, diferenciado, estudioso da linguagem, conhecedor dos autores contemporâneos que introduziram o giro linguístico na filosofia. Há vários textos escritos por ele em que se pode ver isso. (Ver, por exemplo, aqui, e aqui, por todos.)

Não vou falar do linguistic turn e a revolução que provocou na linguagem. A linguagem constitui. O mensageiro já vem com a mensagem, diz-se na hermenêutica.

Segundo os dicionários à disposição, procedimento heterodoxo é algo contrário aos padrões, às normas ou às regras preestabelecidas. Enfim, para ser bem simples, heterodoxo é o contrário de ortodoxo. Logo, quando o ministro diz que Sergio Moro pode ter lançado mão de procedimentos “heterodoxos”, admite, por decorrência lógica, a possibilidade de um desvio de padrões ou crenças, presentes no direito processual-constitucional, por parte do juiz.

Não é só isso. Há um elemento, ainda na frase, que torna tudo ainda mais complexo. Indago: ainda que não devam ser “beneplacitados” (a expressão é do Ministro) segundo o próprio ministro, admite-se que procedimentos heterodoxos (i) tenham finalidade e que (ii) esta pode ser legítima?

Vários problemas. Assumir que, no Direito, mesmo que hipoteticamente, procedimentos heterodoxos tenham finalidade (teleologia), qualquer que seja, já é um problema por si só. A premissa segundo a qual se pode atribuir finalidade a um procedimento sustenta a velha tese instrumentalista. Procedimento, sob essa ótica, vira algo a partir do qual se pode atingir algo. E a teleologia é atribuída pelo juiz, no caso, Sérgio Moro. Trata-se de uma perigosa justificativa de um pragmatismo ad hoc. Por exemplo: é possível ignorar uma prova ilícita por motivos legítimos? É possível “heterodoxizar” uma prova ilícita? No aeroporto, o funcionário, por motivos legítimos, pode dispensar alguém de passar pelo raio x? “- Ah, mas era uma velhinha e eu a dispensei, porque, se não, ela perderia o voo”. Mas a segurança dos demais passageiros não está acima dessa possibilidade de praticar heterodoxia? Não seria melhor que, em ambos os casos, a ortodoxia fosse o único caminho a ser seguido? Fins não justificam meios – principalmente se estivermos falando de garantias de liberdade.

Mais: qual a finalidade (por exemplo, a condenação do réu?) poderia ser legítima ao ponto de justificar a adoção de um procedimento heterodoxo? Que fim pode ser legítimo quando algo já nasce problemático, ab ovoProcedimentos heterodoxos, mesmo que para finalidade legítima? Isso é conforme à ordem constitucional?

Em uma interpretação generosa, os “fins legítimos” – mesmo que admitidos apenas hipoteticamente pelo ministro – seriam aqueles internalizados por Moro. Assim, ler-se-ia assim: “Moro procedeu de modo contrário às normas pré-estabelecidas (aí está a heterodoxia), porque, para ele, os fins (condenação) eram legítimos”. Mesmo com essa minha interpretação generosa, estamos em face de um sério problema, pois não?

O episódio nos insta a pensar. Alguém dirá: “Professor, não procure pelo em ovo perscrutando o sentido de uma frase de um Ministro”!

Ok. Só que se trata do lugar da fala mais poderosa da República em termos de juris-dicção: a Suprema Corte. Cada palavra que vem dali é lancinante. Palavra, como já escrevo há décadas, é pá-lavra (pá-que-lavra). Há vários textos meus sobre isso. E dezenas de conferências em que uso essa construção no fecho da fala. A pá-lavra abre sulcos. Porque lavra. Ela salva. Mata. Dilacera. Platão dizia: a linguagem é um pharmakon – bálsamo, veneno, arma. (Os mais interessados em filosofia podem ver aqui.)

Já que falo aqui sobre as palavras, recorro-me daquele que ensinava como fazer coisas com elas: Austin. Não o jurista John. O John L, J. L. Austin, de Oxford. Pois bem. Ao trabalhar os atos de fala, Austin inaugurou o conceito dos illocutionary acts (geralmente traduzidos por aqui como “atos ilocucionários”). O exemplo torna tudo mais simples: suponhamos, leitor, que eu pergunte a um grupo de pessoas: “Alguém tem um cigarro?” Essa pergunta, a frase literal, é o ato locucionário: perguntei se alguém tinha um cigarro. O ato locucionário é o ato de dizer a frase.

O ato ilocucionário, contudo, no meu exemplo, é um óbvio pedido subjacente: “Por favor, um cigarro!” É, portanto, o ato executado na fala. Ao perguntar se alguém tinha um cigarro, estava pedindo um cigarro.

Não me alongo. O que quero dizer já ficou bastante claro, até porque fui bem explícito. As coisas são ditas mesmo quando não são ditas. A linguagem ordinária – lembro de Wittgenstein – mostra que tenho razão.

Com todo o respeito e lhaneza que tem marcado esta coluna nas críticas à Suprema Corte, há coisas que devem ser ditas. O STF deve accountability à sociedade, e aquilo que diz produz efeitos.

Ademais, o STF estabelece precedentes. Se o STF acena no sentido de que juízes podem atribuir finalidades aos procedimentos, e que essas finalidades podem ser legítimas em toda sua heterodoxia, qual será o limite dessa teleologia instrumental? Dito de outro modo, qual será o limite dessa heterodoxia?

Falei há pouco de dois atos de fala de Austin: o ato locucionário e o ilocucionário. Perguntar se alguém tem um cigarro, pedir um cigarro. Pois é. Porém, Austin falava ainda de um terceiro ato: o ato perlocucionário, que é o efeito produzido. Traduzindo no meu exemplo, é alguém efetivamente entregar a mim o cigarro que pedi.

E traduzindo na Suprema Corte: Quais serão os terceiros atos de tudo aquilo que decorre logicamente da frase do Ministro? Quais serão os atos perlocucionários? Quais podem ser os efeitos de uma juris-dicção que diz ser possível atribuir finalidades ao procedimento legal, e que estes podem ser heterodoxos?

Coisas que por vezes podem passar despercebidas, são, na verdade, “perlocuções” (se me permitem o neologismo). Por vezes, lidos e compreendidos apenas no futuro. Como o famoso item 9 de um famoso acordão do TRF-4, bem recente:

“9. Não é razoável exigir-se isenção dos Procuradores da República, que promovem a ação penal. A construção de uma tese acusatória – procedente ou não -, ainda que possa gerar desconforto ao acusado, não contamina a atuação ministerial.”(aqui).

Quem quer ou aceita ser processado por um MP não imparcial/isento? Isso não é prova também de um olhar heterodoxo sobre o papel do Ministério Público? Então: Qual será o ato perlocucionário exsurgente desse item 9?

Somemos: se o juiz pode ser heterodoxo, se o MP não precisa ser isento, se, via instrumentalidade do processo, fins legítimos justificam meios, o que sobrará das garantias e do texto constitucional? Texto esse que, como sabemos, deve sempre ser lido de forma ortodoxa. Ele só sobrevive desse modo.

Post scriptumO carimbo da Procuradora e a culpa é do borracheiro!

Muito intrigante (eufemismo) o carimbo usado por uma Procuradora Federal (aqui) para, em contrarrazões, “reinterar” (sic) os termos da contestação de processo do INSS. Pois é. Já vi um monte de gente justificando o “carimbo”, com argumentos – pragmáticos – dos mais variados. Por mim, podem dizer o que quiserem, mas isso apenas mostra o fracasso da operacionalidade do direito. Warat chamava a isso de “construção de próteses para fantasmas”. Isso apenas simboliza o produto da cultura prêt-à-porter, prêt-à-parler e prêt-à-penser. E de livros resumidos. E de resumidões. Livros e ensino jurídico tipo “sinopses”. Que impedem sinapses. Parafraseando Elis Regina, parece que eles venceram e o sinal está fechado para nós, que pensamos criticamente. Assim, por que as contestações e contrarrazões não podem ser resumidinhas? E com erros de português? O salário da Procuradora subscritora? Bom, que eu saiba, não é baixo, não. E tem honorários. Desculpem-me os demais procuradores, mas não posso deixar de trazer isso à lume. Há coisas que são como filme trash: aparece o zíper da fantasia do monstro. Simples assim. Ah: também já escrevi aqui no Conjur sobre prisão preventiva decretada em formulário. Tudo para dizer que há muitos filmes trash na República. E zípers à mostra! Há mais de 25 anos denuncio isso. Eu aviso e avisei.


[1] Obs: não discutirei o mérito do voto acerca do não conhecimento ou do conhecimento de ofício discutido pelo Ministro e as razões para a rejeição. Habeas corpus é sempre um terreno minado, eis que dependente de critérios dúcteis como a sumula 691, seus requisitos e a (im)possibilidade de concessão de ofício. Minha discussão, aqui, é outra, como veremos no decorrer da Coluna.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

6 Comentários

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  1. Fachin, o homem que fala
    Fachin, o homem que fala javanês, foi a maior decepção dentre os onze do STF. E isso não é pouco dada a “qualidade” dos concorrentes. Ele é o único da corte que precisa de um tradutor juramentado para converter sua língua heterodoxa para o português ortodoxo que conhecemos.

  2. Direito virou jogo de azar

    Uma paródia para os Onze ministros, seus segredos, nosso degredo.

    Música original: Pelo telefone (Donga, 1916)

    Paródia: GolP’ela Internet – 2016 ad infinitum (Cristiane N. Vieira, 2018)

     

    Pelo Telefone – Donga 

     

    [video:https://www.youtube.com/watch?10=&v=woLpDB4jjDU%5D 

    https://www.youtube.com/watch?10=&v=woLpDB4jjDU 

     

    Paródia 

    “GolP’Ela internet (2016 ad infinitum)”

    O general golpista

    pelo seu twitter  manda avisar

    Que lá no STF tem um habeas corpus para se negar

     

    Ai, ai, ai

    Deixa a Constituição para trás, oh mendaz

    Ai, ai, ai

    Cumpra a lei se for audaz e verás

     

    Tomara que tu aprendas

    Que qualquer coturno, noviço

    Vale mais que a fina toga

    Que a ele presta serviço

     

    Olha a Rosinha, sinhô, sinhô

    Se embaraçou, sinhô, sinhô

    Tremeu de medo, sinhô, sinhô

    Zero-um ameaçou, sinhô, sinhô

     

    Porque este drama, sinhô, sinhô

    De envergonhar, sinhô, sinhô

    Põe na corda bamba, sinhô, sinhô

    O país “tropicar”,  sinhô, sinhô

     

    O rato me disse

    Se o abutre visse

    Fazer tanta tolice

    Que  eu então fingisse

    Que essa esquisitice

    É judicial-expertise

     

    Ai, ai, ai

    Aí está o manto surreal do bananal

    Ai, ai, ai

    Viva o  judiciário antinacional

     

    Se quem tira o direito dos outros

    Pelo povo fosse castigado

    O Estado estava vazio

    E o inferno disputado

     

    Queres ou não, sinhô, sinhô

    Dar o acórdão, sinhô, sinhô

    Jus à legislação, sinhô, sinhô

    Não à convicção, sinhô, sinhô

     

    Porque esta trama, sinhô, sinhô

    Quer o país destruir, sinhô, sinhô

    De novo Pindorama, sinhô, sinhô

    Desconstituir, sinhô, sinhô

     

    Quem tiver desgosto

    Com este esgoto

    Não vire seu rosto

    Tenha o bom gosto

    De fingir-se composto

    De vergonha o oposto

     

    Ai, ai, ai

    Dança a farsa

    Com fervor, meu senhor

    Ai, ai, ai

    É a festança

    Sem pudor pro ditador”

     

    Todos os direitos renegados, denegados, preservados apenas para “os amigos das cortes”.

     

    Sampa/SP, 13/12/2018 – 14:30 – alterado às 14:38 e 14:45 (por que o vídeo não aparece?) – (em luto).

      1. Já pensou num programa de comédia sobre o Judiciário/MP?

        Obrigadinha.

        Eu não sei fazer memes. Se soubesse mexer com edição de imagem ia fazer um clipe pra tocar no Fantástico (mundo do Golpe) da Globélica, quando o país passar por seu terceiro impeachment (dizem que quem faz 3 gols pode pedir música, rs), que está cozinhando em fogo brando no STF só à  espera das ordens dos militares, hahahaha. 

        Quem é bom mesmo de paródia não se atreveria (o Adnet), está na coleira dourada da Globélica. Então eu vou ofendendo a música popular brasileira com meus rabiscos. 

        (Tentei anexar o vídeo novamente mas parece que não é possível; segue outro com a letra utilizada para a paródia) 

         

        [video:https://www.youtube.com/watch?v=ix7QmEy0NgE%5D

        https://www.youtube.com/watch?v=ix7QmEy0NgE

         

        Sampa/SP, 13/12/2018 – 19:40 – alterado às 19:44 (em luto).  

         

  3. Heréticos do Direito

    Não por acaso que muitos e bons escritores e ensaistas nos ensinam como as palavras são importantes e o seu significado. A madrasta do texto ruim esta sempre dando bons exemplos da linguistica. Acho que nosso maior mal é o fato de o brasileiro ser um povo que acredita em qualquer coisa que lhe digam, sobretudo se vier de algum “doutor”. 

    Ja o ministro Edson Fachin mostrou-se ser um juiz que aceita “heterodoxias” daqueles que lhe contaram um conto e aumentaram alguns pontos e virgulas. 

  4. O judicibista golpista criou um novo
    Pronunciamento judicial a fim de manter a impunidade do $érgio Moro: o despacho- consulta.
    Esse tipo de pronunciamento judicial é uma jaboticaba, so existe aqui nesse Bananistão

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