Provimento nº 71, um clone administrativo do AI-5, por Fábio de Oliveira Ribeiro

 
Por Fábio de Oliveira Ribeiro
 
Compete a União organizar e manter o poder judiciário (art. 21, XIII, da CF/88), bem como legislar sobre a organização judiciária (art. 22, XVII, da CF/88). O Estatuto da Magistratura será objeto de Lei Complementar de iniciativa do STF e deverá obedecer os princípios estabelecidos na Constituição Federal (art. 93, da CF/88).
 
A competência do CNJ foi prevista no art. 103-B, § 4º, da CF/88 com a redação dada pela EC nº 45/2004: 
 
“§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:”
 
Todo ato administrativo praticado pelo CNJ tem que cumprir os requisitos de competência, forma, finalidade, motivo e objeto. Além destes requisitos, o ato deve obedecer o princípio da legalidade expressamente prescrito no art. 37, caput, da CF/88.  Recentemente a Corregedoria do CNJ fez publicar um ato administrativo criando regras para a utilização das redes sociais pelos juízes (Provimento nº 71, de 13 de junho de 2018). 
 
A competência do CNJ é limitada ao “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”. Portanto, em tese o órgão poderia editar atos administrativos acerca dos deveres funcionais dos juízes. Mas ao fazer isso, o CNJ teria necessariamente que respeitar os limites destes deveres funcionais que foram estabelecidos pelo Estatuto da Magistratura em vigor. Afinal, em razão do princípio da reserva legal (art. 37, da CF/88) todo ato administrativo é vinculado e não pode criar obrigações ou definir infrações funcionais que não estiverem expressamente prescritas na Lei.
 
A Lei Complementar nº 35/1979 não faz qualquer alusão expressa ao uso de redes sociais pelos juízes. Qualquer ato administrativo vinculado àquela Lei deve necessariamente respeitar os limites dela. A validade do ato exige que o autor  dele tenha competência para editá-lo. A inexistência de norma legal sobre o uso de redes sociais não autoriza o Corregedor do CNJ a legislar sobre a matéria completando a lacuna.
 
De tudo que foi aqui exposto, podemos extrair uma conclusão inevitável. Ao editar o Provimento nº 71, de 13 de junho de 2018, o Corregedor do CNJ usurpou indevidamente a competência atribuída exclusivamente à União para legislar – através de Lei Complementar de iniciativa do STF – sobre a atuação dos juízes nas redes sociais. Portanto, o ato dele não tem qualquer valor jurídico e o conteúdo do referido Provimento nº 71, de 13 de junho de 2018 pode e deve ser questionado no Judiciário. 
 
Os limites da exposição pública dos juízes foram definidos pela Lei Complementar nº 35/1979 (art. 35, VIII e art. 36, III). Portanto, o máximo que o CNJ pode fazer ao exercer a competência que lhe foi atribuída (art. 103-B, § 4º, da CF/88 com a redação dada pela EC nº 45/2004)  é, mediante representação de qualquer cidadão interessado, avaliar e julgar caso a caso, se a manifestação do juiz por qualquer meio de comunicação merece ou não ser objeto de punição. 
 
Nesse sentido, além de ilegal o Provimento nº 71, de 13 de junho de 2018, revela a ambição do Corregedor de evitar representações pelo uso abusivo das redes sociais mediante a instituição administrativa da autocensura. Curiosamente, ele parece ignorar que o dever de autocensura já foi instituído pela Lei Complementar nº 35/1979 (art. 35, VIII e art. 36, III), competindo ao CNJ apenas julgar os casos concretos de violação da norma quando se manifeste publicamente de maneira inadequada. 
 
O art. 4º, do Provimento em questão tem a seguinte redação:
 
“O magistrado deve agir com reserva, cautela e discrição ao publicar seus pontos de vista nos perfis pessoais nas redes sociais, evitando a violação de deveres funcionais e a exposição negativa do Poder Judiciário.”
 
A norma não estabelece qualquer critério objetivo para que se possa aferir quando ocorreria ou não a exposição negativa do Poder Judiciário. Portanto, ainda que o Provimento não fosse ilegal pelas razões anteriormente expostas, estaríamos aqui diante de uma regra obtusa, autoritária e incompatível com as garantias constitucionais e legais atribuídas aos magistrados. Afinal, a critério  exclusivo do Corregedor qualquer manifestação de um juiz no Facebook poderá ser considerada passível de punição em razão de expor negativamente o Judiciário. 
 
Romero Jucá foi gravado dizendo que Michel Temer deveria ser levado à presidência “para estancar a sangria” através de “um grande acordo nacional com o Supremo com tudo”. Os adversários do Impedimento mediante fraude imposto à Dilma Rousseff quase sempre mencionam essa gravação do senador peemedebista para concluir que o PT sofreu um golpe de estado. 
 
A frase “um grande acordo nacional com o Supremo com tudo” associada à idéia de que ocorreu em golpe de estado em 2016 expõe de maneira negativa o Judiciário, pois dá a entender que alguns ou todos os ministros do STF foram responsáveis pela destruição da democracia brasileira. Portanto, com base no art. 4º, do do Provimento nº 71, de 13 de junho de 2018 qualquer juiz compartilhar textos criticando o golpe de 2016 que cite a gravação de Romero Jucá poderá em tese ser punido.  
 
No prática a norma comentada funciona exatamente como o art. 6º, do AI-5, que foi comentado aqui mesmo no GGN: 
 
“Art. 6º – Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.”
 
§ 1º – O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.” 
 
https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/comentarios-ao-ai-5-e-a-sua-repristinacao-desejada-pelos-tucanos
 
Enquanto o AI-5 estava em vigor, o general-presidente tinha poderes excepcionais para garantir em última instância a higidez do regime ditatorial imposto ao país pelos militares em 1964. Ele podia punir qualquer juiz que ousasse desafiar sua autoridade excepcional ou revogar as atos e normas excepcionais que ele editasse. O art.  4º, do do Provimento nº 71, de 13 de junho de 2018 cumpre a mesma finalidade, com uma pequena diferença: doravante o Corregedor do CNJ terá poderes excepcionais para garantir em última instância a higidez do golpe de 2016 “com o Supremo com tudo”.
 
Felizmente sou apenas advogado e posso desafiar o Corregedor do CNJ e criticar abertamente a norma ilegal e draconiana que ele editou. O clone do AI-5 não poderá ser invocado para me punir. De fato, a mim parece extremamente negativo para a imagem do Poder Judiciário que uma quadrilha de juízes tenha se associado a uma quadrilha de ladrões para dar o golpe de 2016 “com o Supremo com tudo”.  Os juízes que desejam calar seus colegas de profissão que lutam contra o Estado de Exceção é que estão comprometendo a distribuição de Justiça no Brasil. “Cale a boca seu juizinho de merda, a narrativa oficial do que está ocorrendo no país pertence apenas aos golpistas e ao CNJ” não funcionará comigo.
Fábio de Oliveira Ribeiro

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