Reis e Rainhas Ubus: crepúsculo dos ídolos jurídicos, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Reis e Rainhas Ubus: crepúsculo dos ídolos jurídicos

por Eliseu Raphael Venturi

O Direito é humano, demasiadamente humano. A fundação humanista e voluntarista do Direito moderno o coloca para fora da revelação metafísica e o devolve à política mundana, imperfeita, mortal e amoral, da carne e do corpo, nem sujeitos nem objetos.

O fundamento dos direitos humanos diante de uma história de catástrofes é a escolha política deontológica internacional pelo respeito e reconhecimento destes direitos criados e declarados, e sua deliberação em documentos constitucionais instituindo direitos fundamentais nada mais é do que isso: uma escolha, uma interpretação, uma valoração, uma instituição social.

Adoção de uma linguagem aberta, frágil e débil, mas talvez ainda muito forte diante de nossa fragilidade e debilidade, e sem a qual a produção da conduta humana parece, no mínimo, confusa, senão minimamente obscura e inexplicável.

Tais pressupostos, embora simples, ainda hoje tem sido excessivamente complicados, inclusive, por parte da Filosofia do Direito, que insiste em uma morta natureza humana, sem maiores horizontes pragmáticos ou indiferente a estes, ou, ainda, em ecos de esclerosadas explicações obsessivas.

A prática do Direito, ao mesmo tempo, em suas relações de força há muito suspeitas, insiste em construir figuras míticas, sacras e heroicas, e não se economiza linguagem e ritos eclesiásticos de louvor. Mídias, seriados e produtos afins de uma confusa era pós-massa elevam ao cômico o sacrossanto contemporâneo: fragmentado, sem talento, artificialóide e indistinto, mas festivo, entretenimento da própria autofagia.

O senso comum reforça tais artificialidades; a vida forense os reitera e, aliás, neles sustenta grande parte do seu vigor e coerção; a vida acadêmica cria deuses, seitas e devotos, coloniza conhecimentos e cultiva visões de mundo. Algumas etiquetas são elevadas a dogmas ao mesmo tempo em que alguns dogmas caros são barateados a “bobagens”. Técnicos do Direito se tornam burocratas, pensadores do Direito se tornam inauditos, mas no mundo da mera circulação o importante ideológico é circular (um meio em que pouco importa a mensagem).

A realidade social e as atitudes cotidianas secretamente reforçam grandes personalidades em capilaridades ocultas, a história (historiadores) as acolhe ou não, mas o crepúsculo dos ídolos parece uma imposição da vida, da mudança, da transformação, dos novos papeis que se assume ou simplesmente pelo movimento natural de uma força que, por um ou outro caminho, se encobriu pelos mais diversos artifícios: afinal, em um mundo de dificuldades à sobrevivência, ser celebridade jurídica é algo oportuno para si e para os descendentes. Privilégios não parecem o bastante, nunca.

Há dez ou vinte anos, ou há um pouco antes quando da redemocratização, o cenário jurídico era um tanto diferente, seja na agenda de prioridades, seja nas teorias da moda. Muitos dos autores que estudamos e que, em alguma medida, nos formaram, hoje ocupam graus definitivos de jurisdição, contradizem a aparência de suas teses, chocam e decepcionam contingentes de antigos admiradores, promovendo a limpeza de prateleiras ao mesmo tempo em que o fortalecimento dos seus círculos de interesse e influência: ciência e política como dimensões idênticas de um mesmo fenômeno – a despeito do que isso signifique ao conhecimento que, há muito, foi elevado ao grau de acessório, secundário e pretextual.

Nada de novo sob o sol; decepções, contradições, incoerências e mascaramentos há muito não são novidade no tragicômico teatro humano e nem precisariam chocar tanto – nem, e muito menos, aos amigos, que denunciam hipocrisias, traições, suspeitam de ameaças ou apenas não entendem o que se passa. E quem, de fato, entenderia? Haja psicanálise.

Reis e rainhas Ubus, tais quais o personagem de Alfred Jarry 1896, expuseram a nudez de suas faces nos teatros do Direito: a encarnação de grostescos poderosos cujos egos inflados são o ridículo de si mesmos; estandartes da ganância, crueldade, disposição para tudo distorcer, gosto pela ditadura, tiranos pelo anarquismo próprio que se impõe sobre o mundo em nome de um voluntarismo próprio incivilizado.

Reis e rainhas Ubus, contudo, que olvidaram que a capacidade do discernimento em muitos lhes antecedia: senhores e senhoras que não inventaram o Direito, não criaram a Literatura, e a queda de seus discursos e engodos não produz lacuna alguma.

Pois eis que o pensamento jurídico e o direito como potencial e infinito da linguagem continuam e continuarão vivos como o segredo de gerações, a despeito destas figuras, a despeito destas decepções, a despeito de toda a destruição de autoridades autoritárias.

Não se pode extrair nada mais, nada menos, do que conhecimento de todo este corpo de evidências, lamentos e espantos; porque os discursos de defesa e de acusação, estes correrão soltos com suas razões e desrazões, a despeito dos quais a advertência e a desconfiança seguirão.

Podemos substituir os livros, eliminar os dizeres mais obscenos em face da incongruência, simplesmente deixar de acreditar nas promessas e nos cantos daqueles reis e rainhas e dos correligionários e trupes, daqueles que, quando do exercício de suas nobres funções, a distorcem em nome de finalidades evidentemente abjetas: punitivistas, populistas, midiáticas, pós-neoliberais, da manutenção dos feudos, confrarias, irmandades e congregações, e o que os valha no sentido da antijuridicidade em um país cuja impessoalidade há muito se sepultou.

É preciso enfocar a fortuna histórica, ao invés da miséria histórica.

Com o crepúsculo dos grandes mestres de uma velha doutrinação, a pedagogia do Direito poderia se voltar ao conhecimento e aos alunos; a cada um dos indivíduos, ao espaço de cada uma das singularidades, ao seu potencial criativo de vozes únicas.

Para além da formação de coros, doutrinados, seguidores, entusiastas, massas políticas, os alunos poderiam ser o foco do investimento de uma tradição que apostou em ídolos, que formou gerações de rebanhos e esqueceu da diversidade, do pluralismo e da amplitude absurda das ciências humanas e sociais, reduzidas aos donos das metodologias corretas, adequadas e oportunas. Pois que do vácuo da queda emerja alguma criatividade da vida.

O jogo seguirá com perdões, reconciliações, resgates, mortes e condescendência. E os ídolos, reis e rainhas, estes seguirão ocos, porque esta é sua vocação originária, embora seus nomes prossigam estampados e falados a todo momento. A transvaloração – mais do que um mero dever – uma filosofia da vida sempre maior, que ao mesmo tempo em que tudo consome, tudo renova; criação. Afinal, o espaço de livros esclerosados abre espaço a outros; demanda novas críticas, máquinas, linguagens, escrituras, homens.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. “Par ma chandelle verte!”

    Quem diria que no Brasil até o Judiciario age como se fosse um reizinho totalitario. Não à toa a classe média vocifera em lugares publicos por qualquer não pronunciado. Todos se pensam privilegiados, a quem tudo é devido. Somos bufões prisioneiros em nosso proprio enredo.

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