STJ e o respeito à diversidade

do Sul 21

STJ autorizou Katia e Letícia a casar: “Queremos os mesmos direitos”

Apesar de ser baseado num caso específico, caso de Kátia e Letícia abre um precedente para que outros casais homossexuais possam casar no civil 

Samir Oliveira

No dia 25 de outubro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por cinco votos contra um, que Katia Ozório, de 38 anos e Letícia Perez, de 37, poderiam se casar no civil. O julgamento foi histórico: apesar de ser baseado num caso específico, abre um precedente na Justiça brasileira para que outros casais homossexuais possam garantir o mesmo direito.

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Emocionadas com a vitória, Katia e Letícia têm evitado o contato com a imprensa. As duas gaúchas, naturais de Panambi e Santa Rosa, respectivamente, vivem em Brasília, onde aguardam a publicação do acórdão do julgamento.

Nesta entrevista exclusiva ao Sul21, Katia e Letícia comentam a decisão do STJ e os caminhos que trilharam até lá. Elas relatam que foram discriminadas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). “Os votos dos desembargadores foram bastante preconceituosos. Diziam que casamento tem a ver com família e procriação”, lamenta Katia. Letícia considera que “o julgamento foi um episódio bastante traumático”.

“O promotor disse que o Estado não podia permitir isso, porque daqui a pouco duas mulheres iriam querer casar com um homem, ou quatro homens casariam entre si”

Sul21 – Como foi o início de todo o processo?
Katia Ozório –
 Quando fizemos o pedido de casamento no cartório pela primeira vez, em 2009, já estávamos juntas há três anos. Compartilhávamos a casa, o trabalho, e queríamos ter alguma garantia, até em questões como bens e saúde. Já aconteceu de a Letícia fazer uma cirurgia e não tínhamos como comprovar ao hospital que éramos uma família.

Sul21 – E a opção foi sempre pelo casamento, não por uma união estável?
Katia –
 Na época estava começando a ficar mais comum a união estável entre casais homossexuais. Mas queríamos os mesmos direitos, a união estável não comprova um casamento. Então fomos ao cartório, mas o pedido foi negado. Nesse momento procuramos a ONG Somos, e através do suporte jurídico deles entramos com recurso em primeira instância, no Fórum de Porto Alegre, que também foi negado.

Sul21 – E então recorreram ao TJ-RS.
Katia –
 Sim. Tivemos três votos negativos e a posição do Ministério Público também foi contrária. Os votos dos desembargadores foram bastante preconceituosos, assim como o pronunciamento do promotor. Ele disse que o Estado não podia permitir isso, porque daqui a pouco duas mulheres iriam querer casar com um homem, ou quatro homens casariam entre si. Ficamos muito revoltadas. O relator do processo chegou a dizer que não nos concederia sequer uma união estável. A palavra casamento pesou muito no Tribunal. Diziam que casamento tem a ver com família e procriação, toda aquela história conservadora que a gente já conhece.
Letícia Perez – Esse julgamento foi um episódio bastante traumático. Eu tinha uma esperança de que ao menos um voto favorável nós conseguiríamos, até pelo histórico de alguns desembargadores, como o Rui Portanova e a Maria Berenice Dias.

“Quando saiu a decisão, me veio uma carga emocional e me lembrei do bullying que eu sofria na infância, no colégio e na adolescência”

Sul21 – E como foi a decisão de recorrer ao STJ?
Katia –
 Decidimos logo após o julgamento do TJ-RS. Ficamos indignadas, foi um ato de muito preconceito. E foi uma surpresa, ficamos sabendo junto com a imprensa, cinco dias antes, quando o nosso processo seria julgado no STJ. Tínhamos alguma ideia de que o relator poderia ser favorável, pois ele já tinha permitido adoção de crianças por casais homossexuais. Mas depois da forma como fomos tratadas no TJ-RS, estávamos preparadas para uma decisão negativa. Então foi uma surpresa a votação ter sido tão bem sucedida. Foram seis votos de cinco ministros (porque um votou duas vezes) e somente um voto contrário. E o único argumento contra era de que o caso deveria ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Todos os ministros disseram que não há argumentos jurídicos para nos negar o direito ao casamento.

Sul21 – Vocês estavam presentes na sessão. O que sentiram naquele momento?
Letícia –
 Fiquei emocionada e chorei muito. Naquele momento me dei conta da importância do que estávamos fazendo. Não demos início ao processo para ganhar visibilidade e sequer somos militantes. Pensamos numa demanda específica nossa: a vontade de ter os mesmos direitos dos nossos irmãos casados. Mas na medida em que o assunto foi evoluindo, as pessoas e entidades foram se aproximando da gente e fomos recebendo apoio, inclusive do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). Então quando saiu a decisão, me veio uma carga emocional e me lembrei do bullying que eu sofria na infância, no colégio e na adolescência. Há pessoas morrendo única e exclusivamente por ser homossexuais, então essa decisão foi muito significativa.
Katia – É uma questão de Justiça, de ter exatamente os mesmos direitos. É um direito meu casar. Tenho as mesmas obrigações que qualquer outra pessoa, então quero também os mesmos direitos.

“Não existe preconceito quando o homossexual está em determinado nível social. Gay rico é aceito”

Sul21 – Pouco antes dessa decisão do STJ houve o julgamento no qual o STF considerou constitucional a união estável entre pessoas do mesmo sexo. As instituições do Estado brasileiro estão mudando em relação a esse tema?
Katia –
 Está acontecendo uma mudança bem rápida. Mas, ao mesmo tempo, no Poder Legislativo as coisas não andam. A lei para criminalização da homofobia e a proposta de emenda constitucional do Jean não avançam. Os deputados não valorizam essas causas e, nesse sentido, estamos muito atrasados.
Letícia – A geração que se tornou adulta nos anos 1990 não tem referências ou modelos de homossexuais, a não ser aqueles pejorativos. Hoje os jovens já se abraçam e se beijam publicamente. Eu e a Kátia nunca tivemos problema na rua e somos bem carinhosas uma com a outra.

Sul21 – Vocês acreditam que sociedade está aceitando com mais tolerância os homossexuais?
Katia –
 Uma coisa importante de dizer é que não existe preconceito quando o homossexual está em determinado nível social. Gay rico é aceito. O mesmo ocorre com o chamado turismo gay. É bom, desde que os gays tenham dinheiro para gastar e sejam vistos como um público-alvo. A parada gay de São Paulo lota hotéis e restaurantes. Mas se não fosse o dinheiro, os gays não seriam aceitos. Em Porto Alegre há um exemplo claro disso. Ninguém aceita o pessoal que fica bebendo em frente ao Nova Olaria porque eles não estão frequentando os restaurantes ou indo ao cinema. Não estão gastando. Se estivessem consumindo, seria diferente.

“Não podemos brincar com que estamos conquistando. Existe uma reação contrária muito forte”

Sul21 – Recentemente, há uma onda de protestos e ações organizadas contra homossexuais. Religiosos convocam marchas contra gays. Ainda há muitos avanços a serem conquistados?
Letícia –
 Estamos num momento muito difícil. Toda ação ou conquista gera uma reação muito forte. A reação ao nosso processo ainda não ocorreu, mas estamos aguardando o trânsito em julgado. Estamos nos resguardando. Há muita gente feliz com nossa vitória, mas precisamos ficar vigilantes. Não podemos brincar com que estamos conquistando. Existe uma reação contrária muito forte. Ao mesmo tempo que temos pela primeira vez um deputado federal assumidamente gay, outras causas não avançam. Precisamos cobrar uma posição do Congresso Nacional, que virou um balcão de negócios, onde os deputados estão mais preocupados com a liberação de suas emendas parlamentares.
Katia – Isso faz parte, quando algo começa a evoluir tem sempre alguém que tenta segurar. Os evangélicos estão se organizando e suas igrejas estão crescendo. Isso é o que mais temo: que nos tornemos um país fundamentalista. A pior coisa que pode acontecer a um país é a junção entre religião e Estado.

Luis Nassif

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