Um estudo sobre o papel democrático do Judiciário

Por Ana Maria Goiana

O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política

Marcos Faro de Castro

Introdução

O funcionamento das cortes judiciais e seu papel na democracia têm sido pouco estudados pela Ciência Política brasileira. Não obstante, é fácil perceber que a atuação de juízes, advogados privados e do setor público (procuradores e promotores) é um componente essencial do processo político da democracia. A iniciativa de procuradores de moverem ações judiciais (processos criminais, ações civis públicas, ações diretas de inconstitucionalidade etc.), a “mobilização social judicializada” dos grupos de interesses representados por advogados e as decisões de juízes podem ter resultados cruciais para a definição e reforma de instituições públicas e privadas, como também para a formulação e implementação de políticas públicas, a distribuição da riqueza e a definição de identidades sociais.

Portanto, o processo judicial em si mesmo (Dworkin,1985) e em sua interação com o conjunto do sistema político, por suas implicações abrangentes, constitui um meio de articulação de conflito e uma forma de exercício da autoridade política extremamente importante, nas democracias constitucionais. A cogitação do desenvolvimento de condições que restrinjam a institucionalidade democrática, em países como o Brasil, impondo um padrão de “cidadania de baixa intensidade”, decorrente da “legalidade truncada”, que expressa a incapacidade do Estado de assegurar a todos os cidadãos os direitos que lhes são genericamente reconhecidos (O’Donnel, 1993) acrescenta interesse ao tema.

Nos anos recentes, a dimensão política prática judicial na democracia tem despertado interesse crescente entre cientistas sociais e juristas (Adorno et al., 1994; Shapiro e Stone, 1994; Tate e Vallinder, 1995; Habermas, 1996; Santos, Marques e Pedroso, 1996; Neves, 1994; Carvalhosa, 1993; Cardoso de Oliveira, 1996; Faria, 1995; Ferreira Filho, 1994; Castro, 1993; Guarnieri, 1991).

Nas Ciências Sociais, uma das abordagens dessa dimensão política da atuação das cortes judiciais procura avaliar especificamente como oprocesso judicial interage com o sistema político democrático, especialmente os poderes executivo e legislativo, e quais os seus efeitos em termos de formulação e implementação de políticas públicas (Stone, 1994; Tate, 1995). O termo “judicialização da política” (Valhnder, 1994) tem sido proposto para designar esse papel político dos juízes, sobretudo dos tribunais constitucionais.

No Brasil, muito pouco ainda é conhecido a respeito do impacto político do funcionamento cias cortes judiciais. O presente trabalho pretende expor o conceito de “juílicialização da política” usado na literatura recente, dar exemplos do fenômeno é oferecer uma análise do impacto político do comportamento do Supremo Tribunal Federal (STF).

Judicialização da política: conceito e exemplos

A judicialização da política corresponde a um fenômeno observado em diversas sociedades contemporâneas. Esse fenômeno, segundo a literatura que tem se dedicado ao tema, apresenta dois componentes:

(1) um novo “ativismo judicial”, isto é, uma nova disposição de tribunais judiciais no sentido de expandir o escopo das questões sobre as quais eles devem formar juízos jurisprudenciais (muitas dessas questões até recentemente ficavam reservadas ao tratamento dado pelo Legislativo ou pelo Executivo); e (2) o interesse de políticos é autoridades administrativas em adotar (a) procedimentos semelhantes aos processo judicial e (b) parâmetros jurisprudenciais em suas deliberações (muitas vezes, o judiciário é politicamente provocado a fornecer esses parâmetros).

A judicialização da política é, portanto, um fenômeno observado de comportamento institucional, que tem essas duas características (Vallinder, 1995).(1)Tal “expansão” do poder das cortes judiciais, segundo a caracterização de Vallinder (id.), seria o resultado de diversas características do desenvolvimento histórico de instituições nacionais e internacionais e de renovação conceitua) em disciplinas acadêmicas. Assim, a reação democrática em favor da proteção de direitos e contra as práticas populistas e totalitárias da II Guerra Mundial na Europa, que deu origem, por exemplo, à adoção de uma ampla carta de direitos naGrundgesetz alemã; a preocupação das esquerdas com a defesa de “direitos” contra “oligopolistas e oligarcas”, como no caso do trabalhismo inglês (anos 50) ou sueco (anos 70); o resgate intelectual e acadêmico de teorias de “direitos liberais”, presente em autores como Kant, Locke, Rawls e Dworkin e o concomitante desprestígio de autores como Hume e 13entham; á influência da atuação da Suprema Corte americana (especialmente a chamada Warren Court, nos anos 50-60); a tradição européia (kelseniana) de controle da constitucionalidade das leis; os esforços de organizações internacionais de proteção de direitos humanos, sobretudo a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948 – todos esses fatores, segundo Vallinder (1995), contribuíram para o desenvolvimento da judicialização da política. Acrescente-se, ainda, como outro fator determinante da judicialização da política, o declínio da eficácia da política macroeconômica a partir do final dos anos 60 (Castro, 1994).

Do ponto de vista do processo político como um todo, a judicialização da política contribui para o surgimento de um padrão de interação entre os Poderes (epitomizado no conflito entre tribunais constitucionais e o Legislativo ou Executivo), que não é necessariamente deletério da democracia. A idéia é, ao contrário, que democracia constitui um “requisito” da expansão do poder judicial (Tate, 1995). Nesse sentido, a transformação da jurisdição constitucional em parte integrante do processo de formulação de políticas públicas deve ser vista como um desdobramento das democracias contemporâneas. A judicialização da política ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento do Legislativo e do Executivo se mostram falhos, insuficientes ou insatisfatórios. Sob tais condições, ocorre uma certa aproximação entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se mais difícil distinguir entre um “direito” e um “interesse político” (Castro, 1994), sendo possível se caracterizar o desenvolvimento de uma “política de direitos” (Tate, 1995).

Por outro lado, a judicialização da política corresponde também, como é óbvio, a unia politização da justiça.(2) Essa condição institucional de introdução da jurisdição (sobretudo a das cortes constitucionais) no processo de formulação de políticas públicas é em parte auxiliada pelas regras orgânicas dos tribunais ou do Poder judiciário como um todo. Assim, regras referentes ao recrutamento, composição, competências e procedimentos dos diversos órgãos e poderes, e especialmente do tribunal constitucional, são importantes para a judicialização da política.

Na França, por exemplo, o fato de que os nove membros da Corte Constitucional sejam nomeados, em partes iguais, pelo Presidente da República (três), pelo Presidente da Assembléia Nacional (três) e pelo Presidente do Senado (três), auxiliou na politização da justiça. Na Alemanha, a nomeação dos membros da Corte Constitucional, realizada pelo Bundestag e pelo Bundesrat, atua no mesmo sentido (Stone, 1994). O processo de recrutamento em ambos os casos é, portanto, “altamente partidário, com vinculaçóes partidárias geralmente bem conhecidas” (id., p. 444). Nos Estados Unidos, a nomeação dos juízes é também um processo extremamente . politizado, cabendo aos presidentes republicanos e democratas o preenchimento de vagas da Suprema Corte por juízes mais “conservadores” ou mais “liberais”, respectivamente.

São inúmeros os exemplos de judicialização da política na Europa.(3) Na França, o papel do Conseil Constitutionnel foi decisivo para a sorte de diversas iniciativas de reforma, tais como o programa de nacionalização patrocinado pelo governo de François Mitterrand, a política universitária e a política de competitividade incluída na Lei de Imprensa de 1984 (Stone, 1994). Na decisão que bloqueou o programa de nacionalização de Mitterrand, o Conseil Constitutionnel adotou claramente razões alheias a critérios de política econômica em sentido estrito, apoiando-se na Declaração dos Direitos do Homem de 1789.(4) A evolução do número de “recursos” ao Conseil Constitutionnel e decisões desse órgão está indicada na Tabela 1. 

 

Na Alemanha, de modo semelhante, a atuação do Poder Judiciário revelou-se de extrema importância para a determinação da dinâmica do processo político e de seus resultados em diversas áreas substantivas, que vão desde a política externa (Ostpolitik.) até a política universitária e a política de relações industriais (id.). A interação político-judicial foi tão relevante nesses casos que Stone a caracteriza como parte de um processo de “construção coordenada” de políticas públicas na França, entre 1981 e 1985, e na Alemanha, entre 1969 e 1976 (id.).

Na Inglaterra, a proibição administrativa, estabelecida pelo governo de Margaret Thatcher, de formação de sindicatos no serviço público, bem como a política de fechamento de escolas do sistema público de ensino secundário, sem consulta prévia aos pais de alunos, sofreram a intervenção dos tribunais (Sterett, 1994). Na Itália, a “politização” da magistratura judicial através de reformas na estrutura da carreira e dos órgão de representação profissional desde o final da década de 1960 (Guarnieri, 1991), determinou um aumento de intervenções judiciais em setores como as relações industriais, a defesa de “interesses difusos” e a repressão ao terrorismo (e mais recentemente à corrupção).

O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política

As formas da ação política do Judiciário brasileiro

É possível afirmar que se vive hoje, no Brasil, um processo de mudança no que diz respeito às questões de definição do significado cultural e de determinação do papel institucional do judiciário. A atuação dos tribunais, em sua interação com o sistema político, têm se dado em dois planos: (a) o plano das ações políticas ou não jurisdicionaís, definidas pelo exercício informal (ou insdtucionalmente marginal) do poder; e (b) o das ações jurisdicionais, caracterizadas pelo exercício formal da autoridade judicial. No primeiro caso, encontram-se pronunciamentos de juízes (discursos de posse, declarações à imprensa) distintos dos que decorrem do exercício da autoridade judicial, mas que são freqüentemente complementares a ela, do ponto de vista político. Por outro lado, as ações jurisdicionais compõem-se de pronunciamentos oficiais dos juízes, no exercício de sua autoridade judicia! (despachos, sentenças, votos, acórdãos, decisões liminares).

O judiciário brasileiro, sobretudo após 1988, passou a interagir com o sistema político, num processo complexo, do qual participam: (a) os tribunais judiciais, especialmente o STF; (b) governo e partidos políticos; (c) associações profissionais relevantes, especialmente a Associação dos Magistrados Brasileiros e a Associação Juízes para a Democracia, que têm orientações, valores e concepções distintas acerca do pape! institucional do Poder judiciário; e (d) a opinião pública.

Pronunciamentos não-jurisdicionais (mas às vezes oficiais, como discursos de posse) de juízes têm efeito político relevante do ponto de vista da interação entre o sistema judicia! e o sistema político. Assim freqüentemente, ministros do STF têm se pronunciado contrariamente à instituição do “controle externo” do judiciário (Castro, 1995). De modo semelhante, o presidente do STF tem por vezes se pronunciado sobre políticas governamentais, implementadas ou em processo de tramitação no Legislativo, como no caso da reforma da indústria de telecomunicações (id), subseqüentemente levada a julgamento. Também relevantes do ponto de vista político têm sido os pronunciamentos das associações de magistrados sobre as relações entre os poderes, tal como a “Carta de Fortaleza” (Associarão dos Magistrados da Justiça do Trabalho, 1995) e a “Carta de Macapá” (Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de justiça do Brasil, 1997).

Por outro lado, as ações jurisdicionais dos tribunais judiciais, especialmente o STF, têm sido freqüentemente marcadas por confrontações institucionais nas quais não raro se envolvem partidos políticos, que procuram agir através do Judiciário (Castro, 1993). Em tais episódios de confrontação institucional, misturam-se ações jurisdicional com ações de caráter não -jurisdicional. Um exemplo foi o episódio da “revisão constitucional” de 1993.(5) Outros foram o da cassação do senador Humberto Lucena em 1994; o da absolvição do ex-presidente Collor de Mello também em 1994; o da suspensão da desindexação dos contratos de trabalho, em 1995; o da suspensão da reforma da previdência, em 1996; e o da concessão de 28,86% de reajuste salarial para servidores civis da União, em 1997. Em todos esses casos, houve decisões judiciais (em sua maioria liminares não confirmadas no julgamento definitivo) contrárias ao interesse dos políticos ou do governo, reações de políticos e%u membros do Executivo e “réplicas” e “tréplicas” através de pronunciamentos informais de juízes e outros atores.

A relação do judiciário com o sistema político agrega portanto também a influência da opinião pública. Políticos e juízes publicam suas opiniões e avaliações mútuas na imprensa e concedem entrevistas, firmando posições freqüentemente antagônicas sobre gastos excessivos atribuídos ao judiciário e “privilégios” de parlamentares, políticas governamentais, decisões judiciais, princípios como o das “cláusulas pétreas”, “separação e independência dos poderes” ou sobre possibilidades de reforma institucional. Além disso, os tribunais passam a se preocupar objetivamente com a sua imagem perante a opinião pública (Conselho da justiça Federal, 1995 e 1996).

Esses fatos indicam que o judiciário e especialmente o STF, têm causado algum impacto sobre o Legislativo e sobre o governo, freqüentemente através de concessão de liminares e de ações não jurisdicionais. Por outro lado, a atuação do STF mediante a produção jurisprudencial resultante do uso de garantias constitucionais, como o mandado de injunção (MI) e a ação direta de inconsdtucionalidade (ADIn), não se coaduna com uma clara disposição para a interação institucional estável. (6) Minha pesquisa sobre as ADIns dos partidos políticos entre 1988 e 1992 mostrou, por exemplo, que uma parcela diminuta dessas ações resultaram em decisões substantivas de mérito (Tabela 2).

Diante de tal desempenho institucional do STF (decisões liminares com impacto político, ações não-jurisdicionais e uso parcimonioso das garantias constitucionais como a ADIn e o MI), cabe indagar qual o caráter da atuação do tribunal como órgão político. Na verdade, não se conhece qual o impacto político do. funcionamento rotineiro do STF, calcado em sua produção jurisprudencial regular. Em sua atuação como órgão da República, que tipos de conflitos o STF julga? O tribunal tem decidido predominantemente a favor ou contra as políticas governamentais? Tem favorecido algum tipo de interesse?

A análise de acórdãos publicados do STF, como se verá a seguir, fornece indicações relevantes para que se formulem respostas a essas questões.

O padrão de julgamento do STF

A amostra de acórdãos

A análise que se segue utilizou uma amostra de 1.240 ementas de acórdãos publicados no Diá rio deJustiFa da União (DJU) no primeiro semestre de 1994 (Tabela 3).(7)

A amostra corresponde a uma parcela do total de 7.855 acórdãos publicados pelo tribunal naquele ano. 8 A amostra compreende, portanto, todos os tipos de processos julgados mediante acórdão pelo STF e publicados nas datas indicadas.

Critérios de análise

Foi feita uma análise de conteúdo (10) dos acórdãos (ementas) da amostra. Os acórdãos foram classificados por: (a) número do processo; (b) tipo de ação ou recurso; (c) data de publicação; (d) origem do processo; (e) natureza do conflito de interesse; (f) classe de matéria; (g) tipo específico de decisão; e (h) tipo geral de decisão.

No que diz respeito à classificarão pela natureza do conflito de interesse, consideraram-se três possibilidades de estruturação processual do litígio: os conflitos entre ,interesses públicos e privados (conflitos Pu-Pr); os conflitos entre interesses privados e públicos (conflitos Pr-Pu) e outros tipos de conflito (O). A determinação da natureza do interesse em cada cesso fez-se pelo tipo de parte. Assim, nos casos em que, por exemplo, a União recorreu contra uma ou mais partes privadas, os acórdãos foram classificados no tipo de conflito Pu-Pr. Por outro lado, nos casos em que indivíduos ou empresas recorreram, por exemplo, contra o INSS, os acórdãos foram classificados no tipo de conflito Pr-Pu. As demais possibilidades de estrutura processual de conflito de interesses foram consideradas como integrante da classe “outros tipos de conflito”. Assim, todos os conflitos entre partes privadas, entre panes públicas (e.g., governadores contra assembléias legislativas etc.) e entre atores coletivos (e.g.. sindicatos, partidos etc.) foram incluídos nessa última classe de natureza de conflito.

Os tipos específicos de decisão registrados foram: deferimento ou provimento total; deferimento ou provimento parcial; indeferimento, improvimento ou rejeição total; indeferimento ou improvimento parcial; julgamento de prejudicialidade; (11) não conhecimento. Por outro lado, os tipos gerais de decisão utilizados na análise foram: favorável (ao recurso ou pedido); desfavorável (ao recurso ou pedido); e outras (parcialmente favorável/desfavorável).

Finalmente, as classes de matéria empregadas na análise dos acórdãos foram:

(1) política fiscal e tributária (decisões sobre tributos e exações, incluindo as contribuições sociais);

(2) política monetária (decisões referentes a taxas de juros);

(3) política de rendas (decisões referentes a índices de correção monetária, vencimentos etc.);

(4) políticas setoriais (decisões sobre políticas públicas federais, excluídas as políticas macro-econômicas);

(5) processo eleitoral;

(6) política penal (decisões em habeas corpos e processos de natureza penal, exceto os de extradição);

(7) política local (decisões em conflitos entre autoridades locais, ou referentes a políticas públicas de governos estaduais ou prefeituras);

(8) processo político nacional (decisões em conflitos entre poderes nacionais ou unidades da Federação);

(9) política externa (somente e todas asdecisões em processos de extradição);

(10) matéria exclusivamente processual;

(11) matéria não-classificada.


Muitos acórdãos, dada a abrangência da questão julgada nos diversos casos, poderiam ter sido incluídos em mais de uma classe de matéria, mas esse procedimento foi evitado. Para fins deste trabalho, cada acórdão foi classificado segundo a matéria considerada preponderante em sua ementa.

Resultados

Através da análise realizada, verificou-se que mais da metade (58,1%) dos julgamentos do STF se dão em processos em que se discutem tributos (Tabela 4). Esse fato, por si só, talvez justificasse a criação de um ramo da justiça federal especializada no julgamento de tais litígios.

Foi também possível verificar que uma elevada proporção dos acórdãos do STF (23,2%) é de conteúdo puramente processual (Tabela 4). A esse propósito, cabe indagar se um tribunal encarregado de exercer o controle da constitucionalidade deveria dedicar tanto recurso institucional a essa finalidade. Os dados demonstram também a completa ausência de decisões sobre direitos fundamentais não-econômicos (Tabela 4).

Por outro lado, a pesquisa revelou que a quase totalidade (94,54%) dos conflitos julgados pelo STF são entre autoridades públicas e partes privadas (Tabela 5). Além disso, foi verificado que o tribunal decidiu, em 3/4 dos casos julgados (75,57%), completamente a favor dos interesses privados e, portanto, contrário aos interesses representados pelas autoridades públicas.

Assim, enquanto mais da metade dos casos julgados pelo tribunal (60,32%) foram recursos apresentados por autoridades públicas, e cerca de 1/3 (34,22%) por partes privadas, as decisões favoráveis ao interesse público foram em proporção muito menor do que as favoráveis aos interesses privados (isto é, 75,57% foram favoráveis aos interesses privados e 9,96% favoráveis ao interesse público), conforme ilustrado no Gráfico 1. Isso indica, claramente, que o STF, mesmo em sua atuação rotineira, tem julgado contrariamente à prevalência das iniciativas do poder público, o que inclui a implementação de políticas públicas.

A análise dos acórdãos também revelou que as decisões que mais freqüentemente beneficiaram as pessoas privadas foram as relativas a tributos (50,88%) e as que julgaram matérias exclusivamente processuais (22,75%). O Gráfico 2 indica a proporção de decisões favoráveis ao poder público e aos interesses privados nos litígios entre autoridades públicas e pessoas privadas por tipo de matéria.

Deve-se observar, contudo, que, apesar do amplo favorecimento do tribunal aos interesses privados e a conseqüente contrariedade ao interesse das autoridades públicas, isso não se dá com refarão a todas as classes de matéria. Com efeito, desconsiderados os acórdãos relativos às políticas tributária e penal e os que trataram de matéria exclusivamente processual, verifica-se que o tribunal atendeu duas vezes mais ao interesse público do que ao interesse privado. Os dados pesquisados de fato mostram que em praticamente todas as demais classes de matéria objeto de conflito entre autoridades públicas e interesses privados, o STF decidiu preponderantemente em favor das primeiras (Tabela 6).

 

Comentários Finais

Como dito acima, a interação dos tribunais com o sistema político tem atraído a atenção de cientistas sociais recentemente. A forma dessa interação depende de diversos fatores, que podem variar de sociedade para sociedade (Tate, 1995).

No caso cio Brasil, a literatura de Ciência Política dedicada ao assunto ainda é escassa. O presente trabalho procura contribuir para ampliar o conhecimento dos fatos relevantes para o entendimento do papel do STF na política brasileira contemporânea.

O STF tem feito uso parcimonioso de garantias constitucionais de amplo alcance, limitando as medidas de impacto político mais visível a decisões liminares. Contudo, a análise dos acórdãos do tribunal revela que também a produção jurisprudencial rotineira do STF tem uma direção marcante na proteção de interesses privados e, portanto, de impacto negativo sobre a implementação de políticas públicas. Isso se dá, porém, de maneira concentrada nos processos em que se discute o pagamento de exações fiscais (tributos e contribuições).

Portanto, uma conclusão feral que se pode extrair das análises acima, é que, com exceção da política tributária, o STF preponderantemente não tem desenvolvido jurisprudência em proteção a direitos individuais e em contraposição às políticas governamentais.

Finalmente, embora muito freqüentemente os ministros dos tribunais superiores se queixem de sobrecarga de processos, é possível reconhecer, com base nos dados analisados, que a criação de um tribunal especializado em matéria tributária e a própria disposição do STF em abandonar o estilo de julgamento restrito a questões puramente procensuais seriam medidas provavelmente capazes de contribuir para o aprimoramento da função do tribunal no exercício do controle da constitucionalidade e na interação institucionalmente mais estabilizada com o sistema político como um todo.

NOTAS

(*) – Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada. no XX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 22-26 de outubro de 1990.

1. Nas palavras do autor: “A judicialização da política deve normalmente significar (1) a expansão da área de atuação das cortes judiciais ou dos juízes às expensas dos políticos e/ou administradores, isto é, a transferência de direitos de decisão da legislatura, do gabinete ou da administração pública às cortes judiciais, ou, ao menos, (2) a propagação dos métodos judiciais de decisão para fora das cortes de direito propriamente ditas.” (Vallinder, 1995, p. 13 – minha tradução).

2. O termo é usado com sentido crítico por Ferreira Filho (1994).

3. No caso dos Estados Unidos, a participação dos tribunais no processo de formulação de políticas é importante desde o século 19 (cf. Horowitz, 1978) e, como fenômeno político mais recente, caracterizado como “ativismo judicial”, a partir da década de 1950 (Shapiro, 1995).

4. Ver Journal Officiel de Ia République Française, 17 de janeiro de 1982, pp. 299-304.

5. A revisão em si foi objeto de acirrada disputa entre a esquerda e a centro-direita, a primeira acusando a segunda de adotar um “regimento golpista”, que garantiria ilegitimamente a aprovação das reformas propostas (Castro, 1995). No início de outubro de 1993, um ministro do STF (Marco Aurélio Mello) concedeu liminar a um mandado de segurança impetrado por partidos de esquerda, suspendendo a revisão constitucional, por alegada ausência de verificação eletrônica de quorum. Subseqüentemente, o STF derrubou a liminar do ministro Marco Aurélio. Na mesma ocasião, o então presidente do STF (ministro Octávio Gallotti) deu entrevista defendendo a supremacia da jurisdição constitucional sobre o poder dos políticos de modificarem a Carta Política (id.). Houve também a reação negativa dos políticos, exemplificada na declaração do deputado Miro Teixeira, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que especulou sobre a possibilidade de se derrubar o “veto do judiciário” (id.).

6. O mandado de injunção foi criado pela Constituição de 1988. Para uma discussão da evolução da jurisprudência dos mandados de injunçào no STF, ver Medeiros (1993, pp. 171-354).

7. Em virtude de dificuldades de classificação, em algumas análises, a saber, nas classificações relativas ao tipo de parte e tipo geral de decisão, foram excluídas da amostra todos os processos de habeas corpies e demais processos de natureza penal, que correspondem a lOC processos (Tabela 4) ou 8,55% da amostra original. Assim, com exceção dos dados das Tabelas 3 e 4, todos os demais números apresentados como resultados da pesquisa sobre o padrão de julgamento do STF excluem os processos de natureza penal. A amostra considerada passou a ser, portanto, de 1.134 acórdãos.

8. O número total de acórdãos publicados pelo STF em 1994 foi obtido nas estatísticas oficiais do tribunal (Supremo Tribunal Federal, 1995).

9. Ver nota 7.

10. A análise realizada foi direta (human-coded content analysis”). A metodologia de análise de conteúdo é discutida em Weber (1990).

11. O julgamento de prejudicialidade ocorre quando algum evento toma inútil o julgamento originalmente pretendido pelas partes.

12. Ver nota 7.

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Luis Nassif

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