Por Fábio de Oliveira Ribeiro
Há mais ou menos dois anos publiquei aqui no GGN um texto demonstrando como evoluímos do princípio “Aos amigos, tudo; aos inimigos, os rigores da Lei” ao “Aos bandidos tudo; aos inimigos o simulacro da Lei”.
Volto ao assunto, porque uma nova evolução parece ter ocorrido. A mesma Justiça que autoriza a alguns prisioneiros dar entrevista na TV se recusou a permitir que Lula faça o mesmo. Curiosamente, Lula pode produzir artigos escritos que são publicados nos jornais de grande circulação.
No Brasil não deveria haver a prolação de decisões judiciais desligadas dos textos legais. A correlação entre o ato do juiz a norma legal escrita que ele faz aplicar é um imperativo categórico da validade e eficácia da ordem que ele proferiu. Não por acaso ele tem o dever funcional de “Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício” (inciso I, do art. 35, da Lei Orgânica da Magistratura).
O juiz pode e deve interpretar a Lei. Mas ele deve fazer isso de uma maneira cuidadosa e, sobretudo, plausível.
“Um texto é um dispositivo concebido para produzir seu leitor-modelo. Repito que esse leitor não é o que faz a ‘única’ conjetura ‘certa’. Um texto pode prever um leitor-modelo com o direito de fazer infinitas conjeturas. O leitor empírico é apenas um agente que faz conjeturas sobre o tipo de leitor-modelo postulado pelo texto. Como a intenção do texto é basicamente a de produzir um leitor-modelo capaz de fazer conjeturas sobre ele, a iniciativa do leitor-modelo consiste em imaginar um autor-modelo que não é o empírico e que, no fim, coincide com a intenção do texto. Desse modo, mais do que um parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar a interpretação, o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circular de validar-se com base no que acaba sendo o seu resultado. Não tendo vergonha de admitir que estou definindo assim o antigo e ainda válido ‘círculo hermenêutico’.” (Interpretação e Superinterpretação, Umberto Eco, Martins Fontes, São Paulo, 2012, p. 75/76)
Se a Lei o proíbe o juiz de fazer algo ele não pode extrair dela um princípio diametralmente oposto (sua conjetura não se ajustaria ao leitor-modelo). Se a Lei concede aos cidadãos um direito, o juiz não pode colocar a Lei fora do alcance de alguém como se ele mesmo tivesse o poder de estabelecer as distinções entre as pessoas (o autor-modelo também disse que todos são iguais perante a Lei). Sobretudo, não compete ao juiz reescrever o texto legal. Ele aplica a norma geral e abstrata, não pode inventar uma norma específica para cada caso concreto durante o ato de decidir.
O Judiciário brasileiro, que já havia inventado um tipo penal para condenar o ex-presidente petista* inventa agora um regime especial de cumprimento de pena aplicável apenas à pessoa Lula. A seletividade na aplicação da Lei pressupõe que, durante sua aplicação, o texto legal é interpretado de alguma maneira. Não é isso o que nós estamos vendo. O regime prisional imposto ao ex-presidente do PT não é fruto de qualquer interpretação. Ele é uma criação que não obedece nenhum padrão definido. A imagem do ex-presidente preso está censurada, as palavras dele não.
Portanto, podemos concluir que o simulacro da Lei deixou de existir. O princípio que está em vigor agora é o seguinte “Em se tratando de Lula os juízes são inimigos da Lei”. Romancista prolífico, criativo, sofisticado e engenhoso, Umberto Eco poderia conceber uma obra prima se tivesse a oportunidade de se debruçar sobre o que os juízes brasileiros estão fazendo a si mesmos para, sequestrando Lula e sua imagem, poder retirar a soberania popular da equação democrática.
*A Lei aplicada no caso do Triplex prescreve que o réu teria que ter praticado um ato específico em troca de um benefício econômico; o processo revelou que a construtora tinha a posse e a propriedade do Triplex e o MPF não conseguiu provar o ato praticado por Lula para beneficiá-la.