Xadrez da grande armação da delação da OAS, por Luis Nassif

Apagão jornalístico da época, impediu Folha e The Intercept de contextualizar os diálogos capturados sobre a delação de Leo Pinheiro.

A Folha colocou repórteres experientes para se juntar à jovem equipe do The Intercept na cobertura do dossiê sobre a Lava Jato. A dificuldade que enfrentam é a ausência de acompanhamento anterior sobre tema, tanto por parte da Folha como do The Intercept, o que impede de contextualizar devidamente os diálogos (aqui).

Essa é uma das grandes dificuldades do dossiê. Cada capítulo expõe, ainda que de forma indireta, o grande apagão da mídia no período.

Tome-se o episódio de hoje, publicado pela Folha, sobre a delação de Léo Pinheiro, da OAS (aqui) As implicações são bem maiores do que foi sugerido pela reportagem. Foi a primeira evidência efetiva de que o Procurador Geral da República Rodrigo Janot havia entrado de cabeça nas armações da Lava Jato.

Expliquei o jogo no artigo “Xadrez de Toffoli e o fruto da árvore envenenada” (aqui), de 22 de agosto de 2016, em plena efervescência do episódio.

Simplificadamente, ocorreu o seguinte:

  1. Havia evidências de que Léo Pinheiro, presidente da OAS, entregaria tucanos, especificamente o governador José Serra, em sua delação.
  2. De repente, há o vazamento de um falso escândalo para a revista Veja.
  3. Com base nesse factoide, o Procurador Geral da República Rodrigo Janot ordena a interrupção das negociações com Pinheiro.

Vamos entender esse jogo em detalhes.

Peça 1 – Leo Pinheiro e o buraco do Metrô

Antes da delação de Leo Pinheiro, circularam informações, entre advogados de São Paulo, que ele seria decisivo nas denúncias contra políticos do PSDB, especialmente José Serra.

Em duas operações que, de alguma forma, envolviam Serra, a Justiça acatou a tese do “fruto da árvore envenenado” para anular o inquérito. Foi assim na Satiagraha e na Castelo de Areia – na qual há acusações graves contra o Ministro do Superior Tribunal de Justiça que anulou o inquérito. Ou seja, pegava-se qualquer irregularidade (no caso da Castelo de Areia não havia) e se recorria ao conceito do fruto envenenado para anular toda a operação.

A Castelo de Areia, por sua vez, permitiria comprovar uma das grandes suspeitas de crime do então governador José Serra, no episódio do buraco do Metrô, que deixou 7 mortos.

O trabalho era executado por um consórcio formado pela Norberto Odebrecht, CBPO, Construtora Camargo Correia, OAS Construção, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão.

Quando houve o acidente, as empreiteiras foram colocadas no corner por duas ações simultâneas. A primeira, as declarações do Secretários dos Transportes José Luiz Portella, de que eles sabiam do problema (aqui), portanto, haveria dolo. E o Ministério Público Estadual pretendia indiciar os próprios presidentes das empreiteiras.

Houve uma dura negociação, com participação direta de Serra, ao cabo da qual o MPE teria concordado em indiciar engenheiros indicados pelas próprias empreiteiras. Na época, havia suspeita de pagamento de R$ 15 milhões. A Castelo de Areias identificou pagamentos de R$ 5 milhões, da parte da Camargo Correia, que poderiam estar ligados ao acerto. Mas o caso acabou anulado.

Aliás, uma das figuras-chave para a anulação da Castelo de Areias foi o intimorato Ministro Luis Roberto Barroso (aqui).

Tudo indicava que, sem ter como atender a Lava Jato, no caso do tríplex, Pinheiro ofereceria as provas contra o PSDB no episódio do Metrô.

Há uma conversa de Deltan Dallagnol comprovando essa suspeita.

Peça 2 – a jogada do falso vazamento

Aí veio a grande jogada, que consistiu em um vazamento de um episódio anódino para a Veja, envolvendo o Ministro Dias Tofolli, do Supremo Tribunal Federal (STF). Era uma denúncia falsa, conforme descrevi na época:

Fato 1 – já era conhecido o impacto das delações de Léo Pinheiro sobre Serra e Aécio (http://migre.me/uJKsj). Tendo acesso à delação mais aguardada do momento, a revista abre mão de denúncias explosivas contra Serra e Aécio por uma anódina, contra Toffoli.

Fato 2 – a matéria de Veja se autodestrói em 30 segundos. Além de não revelar nenhum fato criminoso de Toffoli, a própria revista o absolve ao admitir que os fatos narrados nada significam. Na mesma edição há uma crítica inédita ao chanceler José Serra, pelo episódio da tentativa de compra do voto do Uruguai. É conhecida a aliança histórica de Veja com Serra. A reportagem em questão poderia ser um sinal de independência adquirida. Ou poderia ser despiste.

Era em tudo similar ao famoso grampo de Demóstenes Torres, que serviu para afastar o delegado Paulo Lacerda da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência). Era um grampo a favor, no qual o Ministro Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres trocavam elogios entre si. Havia em tudo o mesmo estilo, uma versão tupiniquim do mesmo padrão do incêndio do Reichstag, recurso utilizado desde tempo imemoriais.

No mesmo domingo, Janot acusa os advogados da OAS de terem vazado o episódio e ordena a anulação das negociações com ele. Não tinha pé nem cabeça. Como observei na ocasião

A alegação dos procuradores, de que o vazamento teria partido dos advogados de Léo Pinheiro, visando forçar a aceitação da delação não têm o menor sentido. Para a delação ser aceita, os advogados adotariam uma medida que, na prática, anula a delação? Contem outra.

Não havia nenhum indício de autoria do vazamento. Mais ainda: em nenhum momento a delação mencionava o episódio narrado por Veja, como se comprova, agora, nos próprios diálogos dos procuradores. Mas havia uma estratégia nítida por trás.

“Sem comprometer Toffoli, o vazamento estimula o sentimento de corpo do Supremo, pela injustiça cometida contra um dos seus. Ao mesmo tempo, infunde temor nos Ministros, já que qualquer um poderia ser alvo de baixaria similar”.

Era evidente a armação. Só não se conheciam os autores intelectuais.

De qualquer modo, trata-se de um ponto de não retorno, que ou consagra a PGR e o Ministério Público Federal, ou o desmoraliza definitivamente.

Afinal, quem toca a Lava Jato é uma força tarefa que, nas eleições presidenciais, fez campanha entusiasmada em favor do candidato Aécio Neves. Bastaria um delegado ligado a Serra e Aécio vazar uma informação anódina contra um Ministro do STF para anular uma delação decisiva. Desde que o PGR aceitasse o jogo, obviamente.

Era esse o contexto central, onde deveriam entrar os diálogos revelados pela Folha e pelo The Intercept.

Peça 3 – o fator Janot

Janot sempre foi uma figura menor no MPF, que se destacava apenas na política interna menor, tratando dos micro temas da corporação. Enquanto o PT era poder, aproximou-se de lideranças do partido, como José Genoíno, em um esquema bajulatório que incluía jantares em sua casa, regados a vinhos caros, nos quais atuava como cozinheiro e garçom. Seu principal padrinho para a PGR, e melhor amigo, procurador Eugênio Aragão, narrou em detalhes a atuação bajulatória de Janot, depois que ele mudou de lado.

No artigo em que analisamos o episódio, levantamos as suspeitas sobre a armação

Afinal, quem toca a Lava Jato é uma força tarefa que, nas eleições presidenciais, fez campanha entusiasmada em favor do candidato Aécio Neves. Bastaria um delegado ligado a Serra e Aécio vazar uma informação anódina contra um Ministro do STF para anular uma delação decisiva. Desde que o PGR aceitasse o jogo, obviamente.

Será curioso apreciar a pregação dos apóstolos das dez medidas, se se consumar a anulação da delação.

E colocava foco em Janot:

A incógnita é o PGR Rodrigo Janot. Até agora fez vistas largas para todos os vazamentos da operação mais vazada da história. E agora?

Se ele insiste na anulação da delação, a Hipótese 1 é que está aliado a Gilmar na obstrução das investigações contra Aécio e Serra. A Hipótese 2 é que está intimidado, depois do tiro de festim no pedido das prisões de Renan, Sarney e Jucá. A Hipótese 3 é que estaria seguindo a lei. Mas esta hipótese é anulada pelo fato de até agora não ter sido tomada nenhuma providência contra o oceano de vazamentos da Lava Jato.

Os diálogos revelados pela Folha servem para comprovar que a armação, nesse caso, não partiu da força tarefa.

Peça 4 – o apagão do jornalismo

Na época, toda a imprensa se calou ante uma manobra escandalosa. Aliás, seria um bom tema para ser abordado no evento da ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). A própria Veja, que, agora, se esmera em retomar os caminhos do jornalismo, poderia esclarecer melhor o episódio.

A reportagem de hoje, na Folha, esclarece muito mais pelo que não revela.

  1. A Lava Jato estava empenhada, sim, em anular a delação de Pinheiro, por não trazer elementos que incriminassem Lula.

Isso já era nítido na época:

Na semana passada o procurador Carlos Fernando dos Santos lima já mostrava desconforto com a delação da OAS, ao afirmar que a Lava Jato só aceitaria uma delação a mais de empreiteiras. Não fazia sentido. A delação depende do conteúdo a ser oferecido. O próprio juiz Sérgio Moro ordenou a suspensão do processo, sabe-se lá por que. E nem havia ainda o álibi do vazamento irrelevante. 

  1. A Lava Jato sabia que a delação de Pinheiro incriminaria os tucanos, como revelou a fala de Dallagnol.
  2. Mesmo assim, foram apanhados de surpresa pelo vazamento, indicando que a estratégia partiu de Brasília, mas especificamente de Rodrigo Janot.

A extraordinária incompetência política do PT, e de Dilma Rousseff, orientada pelo arguto Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso, levou à recondução de Janot ao cargo de PGR, preterindo Ella Wiecko. Seguramente ali selou o destino do seu governo. Janot foi elemento central para o impeachment.

Os episódios narrados ocorreram em pleno apagão jornalístico. E é essencial para desnudar de vez as armações e comprovar que não se limitavam aos provincianos de Curitiba, mas ao próprio centro de poder.

De qualquer modo, Folha e The Intercept poderão retomar o tema em futuras reportagens.

Luis Nassif

22 Comentários

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  1. Sérgio Moro para assumir o Cargo POLÍTICO de Ministro da Justiça teve que OBRIGATORIAMENTE RENUNCIAR o cargo TÉCNICO de Juiz de Direito. Ou seja, isto EVIDENCIA que um Juiz não pode decidir de forma política mas sim de forma técnica. Ocorre que o STF, a mais alta corte brasileira, em nome da governabilidade, em nome disso ou daquilo, tem DECIDIDO POLITICAMENTE os casos que lhes são apresentados. Ocorre que a política é que nem nitroglicerina: é muito volátil. E seguindo os passos de seus maiores, os Juízes de comarcas também passaram a decidir POLITICAMENTE, afinal essa é a valsa do dantesca que está sendo tocada. Isto explica a BALBÚRDIA jurídica e institucional pelo qual passa o Brasil.

  2. Os rodeios dos Jatoeiros: em vez de mandar seus cupinchas disfarsarem, indo direto ao ponto, o Dallagnol os manda não deixar parecer que a celebração de acordo de delação premiada com o Leo Pinheiro é prêmio pela condenação do Lula.

    Premia-se o LP condenando-se o Lula.

  3. VEJA como os promotores se mostram SURPRESOS com a citação duma tal conta NUNCA localizada, e com a destruição de provas ..FATOS que só foram levados a conhecimento do MP na frente do JUIZ MARRECO, por orientação dum advogado que NÃO VALE NADA, segundo os procuradores

    Anna Carolina
    19:52:11
    Tinha isso de conta clandestina de Lula?
    19:52:19
    Esses Advs não valem nada

    Jerusa
    19:53:02
    Nao que eu lembre

    Ronaldo
    20:45:40
    Também não lembro. Creio que não há.

    Sérgio Bruno
    21:01:10
    Sobre o Lula eles não queriam trazer nem o apt. Guaruja. Diziam q não tinha crime. Nunca falaram de conta.

    Anna Carolina

    08:00:43
    Li a reportagem e ela tenho quase certeza q ela está fidedigna. Só
    não achei a parte da conta. Talvez tenha sido mais um estelionato
    contra o leitor. Tá no título mas não está no conteúdo

    Jerusa
    08:01:59
    Foi o que pensei tb. Pq nao houve mencao a essa conta

    Jerusa

    13:32:25

    Houve ordem para destruição das provas. Nisso a empresa foi
    desleal, pois nunca houve afirmação sobre isso. Salvo quando leo falou
    no interrogatório sobre destruição de provas, não houve menção a este
    assunto.

  4. Nassif mostrou a “big picture” que ajuda a encaixar as peças desse imenso quebra-cabeças. A conspiração foi muito maior que a república de Curitiba.

  5. O que me leva a crer que a redução em 70% da pena foi por ter livrado a cara tucana do sistema, ou centro do poder, cujo principal mediador deve se revelar como STF

    o maior perigo do fascismo, no caso judicial, não são os fascistas por convicção ideológica, o que nunca foram, são os mediadores ou a submissão deles ao sistema, um sistma eterno por inalcançável quando dentro de uma suprema corte

  6. Quem me acompanha aqui no Blog,a gosto ou a contragosto,sabe que sempre afirmei de forma peremptória que a Presidente Dilma Rousseff e esse inacreditavel Zé Cardoso,foram os responsáveis diretos por “azeitar”essa criminosa Operação Lava Jato,seja por ingenuidade,incompetência,me perdoem,mas também já contaminados pelo vírus da mosca azul.Sem mais delongas,o Gringo de Ouro devia contar com os prestimosos serviços do maior jornalista de sua geração Luís Nassif,para mais rapidamente e precisamente montar o quebra cabeça deste tesouro que ele tem mãos.O buraco é bem mais em cima senhoras e senhores que deste comentário compartilham.

  7. Que me lembre o marreco no desespero retirou esse cidadão da cadeia e fez um acordo, que acreditou ilegal, e utilizou o seu testumunho contra Lula para condená-lo, apenas alguns dias antes de apresentar a sentença condenatporia, até aquele momento, nenhuma das testemunhas haviam corroborado a fantasiosa ladainha do maldito triplex, os proprios engenheiros disseram que Lula era potencial comprador e a reforma foi com recursos da empreiteira………
    Tem tantas lacunas que poderiam ser elucidadas, mas to achando que só querem sujar o marreco, para tirá-lo do caminhos, sem melindrar os outros poderes…..até agora nada de audio, nada de video, nada da pf, nada dos tribunais superiores, nada de politicos……….nada dos dias mais sensiveis como o do hc, da prisão ou da condução coercitiva, deve estar dificl de achar no meio de tantos dialogos…….um cheiro queimado de panama papers…..

  8. Causa-me estranheza o fato do site The Intercept procurar fazer parcerias apenas com empreendimentos jornalísticos de centro-direita, como a Folha, e de direita como a Band (Reinaldo Azevedo) e Veja e deixar de lado os sites e blogs de centro-esquerda e de esquerda.
    Parece-me que Glenn Greenwald imaginou que Folha, Band e Veja tem mais credibilidade perante a opinião pública para divulgar a grande armação da Operação Lava Jato e do juiz Moro contra Lula, o PT e o Estado Democrático de Direito e, por outro lado, considera-os empreendimentos profissionais de jornalismo que encenam com legitimidade o jogo democrático.
    Entretanto, nenhum deles tem a expertise do jornalismo investigativo de alto nível.
    Pelas reportagens em parceria divulgadas até agora, há o risco evidente de que a narrativa, baseada, sem dúvidas, em fatos reais devidamente comprovados, fique prejudicada pela parcial incapacidade de contextualização dos fatos apurados nas reportagens aos demais fatos não citados ocorridos à época, o que impossibilita a ligação dos pontos da apuração, inviabilizando, em parte, a revelação aprofundada da gravidade das denúncias.
    Fiquei impressionado pela revelação de como os jornalistas do The Intercept checaram a identidade de uma das procuradoras denominada nos diálogos como “Mô”, porém, é aconselhável que o jornalista Glen Greenwald alargue o seu espectro de parcerias e incorpore algum empreendimento de jornalismo investigativo.

    1. O Demori explica, que motivo maior que credibilidade, seria alcance, mas principalmente antagonismo ideológico. Se as informações ficassem apenas no campo da esquerda, elas seriam sumariamente ignoradas. Eu tinha um receio semelhante ao seu, quanto à possibilidade de omissão de um determinado veículo sobre informações que os comprometam, mas hoje me ocorreu uma provável situação curiosa e até inteligente… ainda que exista a hipótese de omissão de algum eventual veículo, o outro por sua vez vai lá e aponta, criando um ambiente interessante de auto fiscalização.

  9. Muito nebuloso a ” delação” do Leo Pinheiro.
    1- A delação não foi feito em acordo de delação, so posteriormente foi efetivada;
    2 – Leo Pinheiro fez a suposta delação na condição de Réu ( podendo mentir ) e não na condição de testemunha ( sujeito a perjúrio );
    3 – A verificar se o acordo rendeu que tipos de benesses ( redução da pena, liberação de multas, soltura de prisão ou prisão domiciliar )
    Estes fatos são importantes e acho que o apagão da midia foi providencial para tornar mais nebuloso este episodio.

  10. Pois é! Cada um monta sua verdade! Vai saber a verdade original vesse fusue de pilantras empresários políticos e jornalistas… Todos ganhando o seu de forma sinistra….

  11. FORA DE PAUTA (talvez seja esse o problema, nos atemos aos detalhes de casos específicos e o grande cenário aos quais se articulam fica obnubilado, como quem só o céu por uma fresta estreita de um apartamento – nome muito apropriado para a condição de apartheid que representa… fecha digressão).

    Tenho visto os últimos artigos e vídeos do sr. Nassif e espero ansiosa o que o blogue está preparando sobre “a nova geração da esquerda/pensamento político progressista”. Tenho acompanhado de esguelha tanto os desdobramentos da revelação da armação Lesa-Pátria (interessante que continua acontecendo enquanto seus bastidores podres são expostos, por quanto tempo durará a anestesia/boa noite cinderela que permite a continuidade da queda da “democracia” concedida que temos?) quanto os elogios ao documentário de Petra Costa – que não vou assistir, assim como não assisti ao de Maria Augusta Ramos, porque as feridas ainda estão abertas demais para serem tocadas… -, acima de tudo, tenho falado com desconhecidos nos trens (interessante que tem sido mais profundas e politicamente ricas nesse local de alienação popular – o lugar onde as vidas estão se fazendo no caminho entre realidades tão longe dos holofotes documentaristas cult, volto a isso depois – do que em ônibus e metrôs frequentados pela classe média escolarizada e que “não sabe que não sabe”, rs) e entrevisto a desolação nos olhos e corpos emudecidos daqueles que deveriam fazer a democracia. Hoje, li o artigo de Wilson Ferreira sobre o documentário de Petra Costa e me incomoda que a narrativa ainda seja feita apenas por aqueles que detêm os meios de produção de sentido – acho que Marx falou disso mas não conheço o suficiente para enveredar por aí -, como um reflexo metalinguístico do objeto cultural – a democracia no Brasil não é fruto de esquecimento mas de uma fraude: o povo, o cidadão comum sem lastros econômicos e culturais que o separam da elite, só aparece em reportagens, discursos, produtos culturais, debate público, como um sujeito impessoal, alguém em nome de quem se pretende falar, e olhe lá, mas a quem nunca é dado o direito a sua própria voz. Não vou cometer revanchismo desmerecendo a elite bem intencionada que transforma em arte seus recalques de classe, é um lugar de olhar e falar, os donos do poder, que deve ser conhecido, mas acho que a falta de diversidade em produtos culturais a retratar a ação e reação dos comuns, populares, a esses eventos, é a demonstração cabal de que esse é o problema da democracia no Brasil, o povo é apenas um álibi, um aliado de ocasião, o depositório das fantasias do bom, ou do mau, selvagem, nunca o sujeito de fato de constituição da Nação.
    Vi a manchete e pretendo ver a reportagem com sugestão do GGNista Alfeu sobre a dança nas periferias pobres, e me lembrei, em conexão com o incômodo referente à ausência de retratos audiovisuais da opinião do povo sobre o Golpe, de um fato recente que aconteceu no trem e que só agora recebeu de mim a atenção que estou cobrando, de interpretação e representação no Teatro do Oprimido (ave, saudade, Augusto Boal): a disputa entre a cultura e o capital, entre o ócio criativo e ódio destrutivo e recalcado da máquina avassaladora do ganhar dinheiro rápido, o reflexo de duas visões de mundo que explicam nossa miséria e porque a elite mantém o seu cabresto e o povo que poderia realizar a democracia, abandonado à sua própria sorte e luta interna surda e muda – que mesmo quando grita, ninguém dá atenção… O fato a que refiro aconteceu numa tarde qualquer; os trens, e metrôs, cada vez mais cheios de vendedores ambulantes tentando ganhar a vida, de um lado, e fugir do rapa, de outro, e dois jovens, brancos, que costumam fazer apresentação de hip hop alegraram por alguns minutos a letargia dos que carregam a vida como cruz pesada; ao final de sua apresentação, um bate boca com um brutamontes que ameaçava e dizia que não podia esperar para ganhar seu dinheiro, que ele estava trabalhando enquanto os jovens eram pedintes – ao que, em conversa mantida com uma mulher também apoiadora dos jovens na disputa que por pouco não chegou às vias de fato dentro do trem e se manteve fora dele…, falei que eles estavam oferecendo seu trabalho a quem quisesse pagar, e que quem vai ao cinema ou teatro não adquire nada mas paga para assistir a apresentação da arte de alguém… e a reação fisionômica dos mudos espectadores da disputa a me revelar que a consciência das pessoas precisa ser ativada e admitida no espaço público, sob pena de que o façam nas urnas como ato de vingança.
    Desse flashback, das reportagens que mencionei, do que vejo em trens e lugares públicos por aí, a confirmação de algo que considero o verdadeiro problema da democracia fraudulenta do Brasil: o papel da cultura como vetor de participação dos comuns na arena pública, que o mobiliza mais diretamente que qualquer discurso político abstrato porque o ultrapassa e contém os germes da expressão das diversas individualidades aliada à possibilidade de comunicar seus afetos de maneira imune a julgamentos estigmatizantes. Nesse período de Golpe – que começa bem antes dele, a partir de meados dos 2000, vimos surgir uma geração de comediantes em sua maioria apolítica ou politizada de direita, que quando não contribuiu para o debate, por omissão, o envenenou por ação deliberada sob suposta liberdade de expressão, a elitização da forma de cultura mais acessível ao povo, o humor com seus stand-ups e enlatados, e a aposentadoria de gente como Jô Soares porque, mesmo um liberal de centro, um artista que não se vendeu ao discurso de ódio. Não se fez ainda, que eu saiba, mas um diagnóstico das mudanças na programação de TV aberta e nos meios acessíveis como streaming nesse período pode revelar como foi criado, de maneira premeditada, um caldo de cultura para a violência política como resultado das gotas diárias de violência simbólica sobre a maioria do povo, os comuns, e nisso o papel dos programas ditos policiais e o empobrecimento dos produtos de dramaturgia, reduzido a entretenimento com o qual o jornalismo foi confundido, tudo em desfavor do respeito ao espírito crítico das massas.
    E o segundo aspecto, que deriva deste, é a constatação de que ninguém conta com o povo, não o conhece, não confia nele, não quer de fato que ele construa a democracia – vejo isso nas manifestações em que quase sempre o povo é o que vendedor ambulante que assiste (democracia feita de espectadores? Você vê na Globélica!) gente bonita, bem vestida, com ar de que sabe do que está falando, se referindo a ele como se ele não estivesse ali… E isso até mesmo entre os que deveriam ter o povo ao menos como objeto do seu trabalho acadêmico; precisou uma provocativa e promissora intelectual vinda de Espanha, Esther Solano, para acordar os intelectuais daqui para a necessidade de ouvir o que o povo tinha a dizer, antes de falar em seu nome. Por fim, vejo que o problema do Brasil é mesmo sua elite, bem pensante, bem nascida e bem de grana, que faz de tudo para manter seu feudo mesmo que leia e assista revolucionários em livrarias de luxo em que o povo não entra ou em cinemas “de arte” onde o povo só entra como empregado, e é de comemorar que ainda não o tenham substituído por robôs. Vejo tanta vitalidade nos comuns quando são mobilizados, do cara que faz mágica no trem e, com simpatia e em poucos minutos, engaja mesmo os mais tímidos e refratários, os artistas populares que teimam em romper a letargia, ganhando ou não um trocado, e as pessoas que não agem porque sabem, e têm razão, que o país não é feito para elas, incômodos visitantes. O povo precisa ser mobilizado, e não apenas em palanques com data e hora de eleição marcados. E mobilizado significa também ser ouvido e ter respeitada sua autonomia e não ser tratado como massa de manobra. Significa ser admitido no canteiro de obras da democracia, como participante ativo e criativo e não apenas um servidor que quando as casas do poder político e econômico estão construídas, são postos de volta no olho da rua e do furação. Que pessoas com a sensibilidade e coragem intelectual de Esther Solano encontrem artistas para ir ao povo e registrar para a história que se constrói no presente como esse protagonista mantido nas sombras vê o país que dizem que é dele mas muitos têm sérias dúvidas a respeito… – os índices de abstenção precisam ser ouvidos.

    Desculpem pela escrita vertiginosa mas sentei e escrevi, num jorro de indignação com a miopia dos que teimam em deixar o povo, tutelado, de fora do discurso de sua própria vida.
    Para terminar, uma música que muito me emociona – e o faz agora, escrevendo e a recebendo como uma lembrança dos poros de um tempo em que eu ainda se acreditava ingenuamente no futuro do Brasil -, um contrapartida popular à canção de Chico, Construção.

    Cidadão (Zé Geraldo)
    https://www.youtube.com/watch?v=XxipzhpjytY

    E como a consciência é algo que não controlamos, pode ter sido esse texto nos Jornalistas Livres que trouxe à tona da memória inconsciente a música acima.

    https://jornalistaslivres.org/as-paredes-do-canto/

    “por Helio Carlos Mello
    Vestia a mesma roupa que era sua,

    dignifica, tal Pandora de macacão,

    vela no mar.
    Era dia de São João e eu procurava balão

    no céu.

    Vi um homem no risco da vida, um céu em riste.

    Por que arrisca-se tal gente,

    morando em casa de fundo?

    Ou nem casa tem, sei bem.
    Descia da cobertura

    em corda e tinta, nem sua moradia era, pensava eu.

    Será que pensa em Maria, quando desce

    em dia de São João?

    Sabia que ia gente presa naquele dia

    para cadeia fria, feia,

    por lutarem por moradia.

    Mas ele pinta, sério, decidido desce.

    Procurava balão proibido no céu, naquele dia,

    mas vi o homem pintando prédio, tantas moradias em poleiro de ricos.

    Era corda.

    Nem tão solto assim,

    arriscava voo aquele homem,

    mas pintava só.

    Para tantos é cela,

    é corda.
    Será força.”

    E aqui, a paródia que fiz e legendei no vídeo da música.

    Construção – Chico Buarque [Destruição – paródia]
    https://www.youtube.com/watch?v=Qfx3OqL1y6Q

    Sampa/SP, 30/06/2019 – 14:43

    1. Enquanto fazia o comentário, lembrei de algo que tinha ouvido sobre democracia de condomínio, e vi que o professor Vladimir Safatle é um dos que falam do conceito feito livro, do professor Christian Dunker. Descobri outro dia que Safatle não é mais articulista da Folha de SP – parabéns, a vida acadêmica e seu potencial político terão agora mais tempo e mais experiência com a conciliação fadada ao fracasso que deve encorajar a ruptura e a revolução.

      “3 de junho de 2015
      O filósofo Theodor Adorno chamava a atenção para a nossa incapacidade de lidar com o sentimento trágico. Para ele, assumir a dimensão da tragédia exigia coragem, não medo.

      Essa relação deve ser entendida a partir da ideia de que o medo e o desamparo são afetos políticos centrais da contemporaneidade, afirmou o filósofo Vladimir Safatle, colunista da Folha de S.Paulo e da CartaCapital, durante o Café Filosófico CPFL sobre “A lógica do condomínio”. O debate encerrou o módulo de debates sobre “Mal-estar, sofrimento e sintoma”, que teve a curadoria do psicanalista da USP Christian Dunker.

      De acordo com Safatle, não é por acaso que a distopia de Godard no filme “Alphaville” tenha aparecido no nome do 1º condomínio do Brasil. “Nosso problema não é com a violência, mas com a construção da violência descrita de uma forma tal que ela não diz nada. Depois que você vê a mesma cena (de violência) 50 vezes, você não sente nada diante dela.”

      O sofrimento, por sua vez, é o impulso fundamental da crítica. Ele nos mostra que algo não se enquadrou na narrativa do que precisamos ser ou contra quem nos defender. “Precisamos confiar mais no nosso desconforto. Ele pode nos levar a lugares que não imaginamos.”

      A legitimação do Estado como administrador desse afeto (o medo), segundo o filósofo, vem da capacidade do próprio Estado de lembrar os cidadãos dos riscos de sair do seu circulo de proteção. Nesse sentido, coerções e arbítrios são aceitos a partir da ideia de que somos cidadãos e precisamos ser protegidos.

      Essa ideia de medo e proteção é construída em um contexto em que somos ensinados a ser empresários de nós mesmos. “Investimos em nós mesmos. Somos treinados para calcular benefícios. Não pagamos academia. Investimentos. A ideia de que você é responsável pelo seu sucesso ou fracasso, e mais ninguém, leva o sujeito a agir apenas por si. Nosso medo é sermos incapazes de organizar a vida numa lógica empresarial.”

      Para Safatle, a vida social é sempre uma esfera contínua de riscos. Então, por que nossa percepção desses riscos aumentou de forma brutal?, questionou. “Por que precisamos repetir as mesmas narrativas e limitar os afetos? Não seria essa a razão da nossa impotência de transformação social? Como não ter medo dentro dessas modalidades de segurança?”

      Nesse contexto, disse, as pessoas votam de acordo com a expectativa de um mal que pode ocorrer. Com um adendo: não há medo sem esperança nem esperança sem medo.

      De acordo com Safatle, projetos como o do Estatuto da Família é protofilosófico. A proposta determina que as famílias estão em processo de desconstrução. Mas quem deu ao Estado a autorização de definir o que é família?, perguntou. “É tirânica e totalitária a ideia de que o Estado precisa impor uma ideia unitária de família. De onde vem a ideia de que estamos vivendo numa degradação porque a família está sendo destruída?”

      Ele citou a manifestação de comportamentos antissociais e neuroses oriundas de famílias consideradas “estruturadas” para criticar o argumentou.

      Ele criticou também propostas como o da redução da maioridade penal. “O número de crimes cometidos por adolescentes é baixo. (…) O projeto de redução da maioridade é desconectado das reais causas de violência no Brasil. Como crimes contra mulher.” ” (https://www.institutocpfl.org.br/2015/06/03/33743/)
      Vídeo, a que ainda não assisti, mas aos interessados já sugiro, independente de concordância, porque certamente é alimento nutritivo para a reflexão.

      (Outro dia, ouvindo o professor Alysson Mascaro, pensei o que aconteceria se pessoas que falam tanto da necessidade de uma democracia radical como ele e Safatle, aceitassem o desafio de falar ao povo em praças públicas! Montar palcos na praça da Sé para apresentar teatro, de Martinez Correa aos parlapatões, para realizar debates públicos ao ar livre. Saiamos das cavernas iluminadas pelo conforto da bolha.)

      (digressão 2: Vou colocar em outro comentário, mas estou tão animada de ver o que os ativistas ambientais estão fazendo: o biólogo David Attenborough, de 93 anos, num festival de música na Europa lançando sua série sobre a Natureza dos sete continentes… É do ativismo ambiental que virá o resgate do espírito democrático e civilizado.)

      Música e Trabalho: Milho aos Pombos (Zé Geraldo)
      https://www.youtube.com/watch?v=ol-qlxO5ONE

      Sampa/SP, 30/06/2019 – 16:20

      1. Finalmente, ficou pronto: o vídeo legendado do trailer da nova série do Sir David Attenborough na BBC, Sete Mundos, Um Planeta, que foi exibido para uma multidão no festival de música de Glastonbury, na Inglaterra. Lindo!
        Porque a arte e a cultura dos sapiens começou como observação e admiração, e depois imitação reverente, da Natureza. Onde perdemos o contato?
        Me lembro da definição de filosofia em um livro do ensino médio: a capacidade de admirar-se. Quando perdemos essa capacidade e passamos a endeusar a nossa imagem miragem de Narciso? Tudo o que ser humano tem e faz de bom ele deve ao que rouba, porque não lhe dá o devido crédito nem restitui, da Natureza.

        Aqui, a participação do meu mais novo ídolo rock’n roll, Sir David Attenborough, de 93 anos, no festival de Glastonbury.

        David Attenborough Presents Seven Worlds One Planet Live From Glastonbury | BBC Earth (tradução livre: David Attenborough apresenta Sete Mundos, Um Planeta, ao vivo de Glastonbury)
        https://www.youtube.com/watch?v=Ru5JYf7X5Ck
        (para quem assistir ao vídeo) É disso que precisamos! As pessoas reunidas compartilhando de responsabilidades coletivas, a celebração da vida e não a alienação do mero entretenimento.

        Aqui, o vídeo que foi exibido em Glastonbury, legendado (o original, sem legendas, está na descrição do vídeo).

        BBC Seven Worlds One Planet extended trailer [7 mundos, 1 planeta]
        https://www.youtube.com/watch?v=9QQ_ftgAKJo

        Aqui, o clipe da música que é trilha sonora da série, da cantora Sia e de Hans Zimmer
        Sia, Hans Zimmer – Out There (Seven Worlds, One Planet Soundtrack)
        https://www.youtube.com/watch?v=HOBDdfN-wN0

        Gal, estratosférica, cantando Novos Baianos, porque a Bahia é linda, rs. Rock’n roll made in Bahia, como agradecimento a Glastonbury pela lição de educação ambiental.

        DÊ UM ROLÊ – Gal Costa
        https://www.youtube.com/watch?v=IxziLb1EjYQ

        Aqui, sobre a tragédia do plástico, a que Sir David Attenborough fez referência, debate na TV pública de Toronto, no Canadá.

        Canal TVO – The Problem with Plastics
        https://www.youtube.com/watch?v=6ZyEXSW5za4

        E aqui, como o festival de Glastonbury tratou do lixo gerado pela festa. Parece que as boas ideias e alternativas já existem, falta mesmo é divulgação e boa vontade.
        What Happens To The Waste Of 200,000 People At Glastonbury? | BBC Earth
        (tradução livre: O que acontece aos resíduos de 200 mil pessoas em Glastonbury?)
        https://www.youtube.com/watch?v=AXKbgBbD5Qo

        Já pensaram se grandes eventos assumissem a responsabilidade ambiental que lhes cabe, não só nos bastidores mas como plataforma pública de esclarecimento dos espectadores?
        Ano que vem tem Olimpíadas, mas sabemos que esses caras são apenas capitalistas do esporte e não vão fazer nada que ameace seus lucros, e quem são os atletas que podem aproveitar a visibilidade para dar esse recado? Os surfistas profissionais, que dependem da natureza diretamente para a prática de seu esporte só pensam em… quê mesmo?

        Acabou minha bateria, rs.

        Sampa/SP, 30/06/2019 – 21:55

  12. O Gel Heleno e intimo amigo do ladrao juiz LALAU.Foram amigos no DOI_COID de Sao Paulo e socios em grandes jogadas no passado.O jornalista Janio de Freitas pode dar mais detalhes desta corja de bandidos.

  13. Nassif, por favor, deixe de ser ingênuo, não foi um “grande apagão de mídia” pois os coleguinhas certamente seguiram no mínimo o GGN durante todo este tempo, logo se não fazem ligações é porque NÃO QUEREM.

  14. Ja imaginaram o AECIO DO PO eleito Presidente da Republica do Brasil?Meu Deus……..o jud moro ja estria na Presidencia da Republica das Bananas!

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