Trabalhadores de Apps Em Cena: Livio, o uber de esquerda, por Daniele Barbosa

A construção desta coluna tem o propósito de colocar na cena principal as trabalhadoras e os trabalhadores, que aqui serão os entrevistados

Arquivo Pessoal

Trabalhadores de Apps Em Cena

por Daniele Barbosa

Com o avanço da precariedade politicamente induzida no Brasil, estamos assistindo à uberização se transformar em um modelo para as relações de trabalho. Diante dessa grave situação, precisamos encontrar maneiras de resistir a esse projeto neoliberal de destruição de direitos, que se acelerou com a reforma trabalhista de 2017. Dentre as formas possíveis de resistência, a construção desta coluna, que intitulei Trabalhadores de Apps Em Cena, busca “reconsiderar as formas restritivas por meio das quais a “esfera pública” vem sendo acriticamente proposta por aqueles que assumem o acesso pleno e os plenos direitos de aparecimento em uma plataforma designada.”[1]

Considerando o alerta da filósofa Judith Butler de que a mídia seleciona o que e quem pode aparecer[2] e que “o campo altamente regulado da aparência não admite todo mundo, demarcando zonas onde se espera que muitos não apareçam”[3], a construção desta coluna tem o propósito de colocar na cena principal as trabalhadoras e os trabalhadores, que aqui serão os entrevistados.

Após uma pesquisa[4] publicada no ano passado, na qual busquei fazer um diagnóstico acerca do projeto político em curso no Brasil para os motoristas de plataformas digitais, propus, neste ano, a um grupo de relevantes acadêmicos brasileiros que elaborassem uma única pergunta para compor essa série de entrevistas com os motoristas e os entregadores de Apps. Foram convidados os professores Joel Birman, Luis Carlos Fridman, Márcio Túlio Viana, Pedro Cunca Bocayuva, Ricardo Festi, Simone Oliveira e Wilson Ramos Filho. Cada um deles, conforme as suas respectivas áreas de conhecimento, formulou uma questão com base nos seguintes campos temáticos: “condições de subjetivação”; “solidariedade social”; “cooperativismo e relação de emprego”; “cidade e questão racial”; “luta dos movimentos sociais”; “gênero” e “pandemia e trabalho”. Coube a mim o tema do “empreendedorismo de si mesmo”.

A ideia foi colocar a Academia na construção das perguntas e na escuta das vozes daquelas e daqueles que trabalham, no dia a dia, em condições uberizadas. A opção foi pela publicação de uma única entrevista por semana. Afinal, querermos ouvir atentamente cada um dos entrevistados nas suas vivências singulares. É imprescindível que essas vozes circulem em uma afirmação de que suas vidas importam. Acredito que agir, não de maneira isolada, mas juntos, nos coloca em solidariedade uns com os outros, além de possibilitar uma maior capilaridade do debate acerca da uberização, que cada vez mais vai dizendo respeito a todos nós. As alianças, portanto, se fazem necessárias.

Entrevista com Livio, o uber de esquerda

Carioca de Realengo. Bacharel em Relações Internacionais. Motorista Uber e 99 desde 2017. Dirigente da Associação de Profissionais por Aplicativos, Plataformas Digitais e Geral e Afins (APP). Militante antiprecarização. Na luta por uma regulamentação que garanta direitos, renda mínima e segurança.

DANIELE BARBOSA: As recentes decisões judiciais do Tribunal Superior do Trabalho, ao negarem o vínculo de emprego entre os motoristas e as empresas de plataformas digitais, contribuem para que os motoristas e os entregadores se enxerguem como empreendedores de si mesmos?

Não, não, não. Na verdade, é, atrapalha um pouco, no nosso caso, a nossa luta, mas não impede de continuar na mesma toada. Então, as decisões, elas causam frustração, mais frustração do que a sensação de empreendedorismo, porque nós que acreditamos que não somos empreendedores temos nessas decisões um norte para seguir na luta pela nossa regulamentação, pelo reconhecimento da categoria, por uma formalização dos nossos vínculos. Porque, assim, quem já se vê como empreendedor não joga nenhum tipo de expectativa nessas decisões. Então, acaba que, assim, para nenhum dos lados, melhora ou piora essa sensação. E sim o que acontece, muitas das vezes, é quem já acredita que esse não é o caminho meio que tem nisso uma confirmação. Mas quem acredita no caminho tem uma frustração, mas acredita que tem que continuar batalhando, porque uma hora, essa hora chega, entendeu. Uma hora, esse reconhecimento de vínculos, uma hora esse reconhecimento de que existe sim uma questão de subordinação, uma hora isso acaba acontecendo. Então, assim, eu não vejo que fortalece essa questão do empreendedorismo não. Até porque é algo que não é tão corrente na categoria quanto se imagina de fora. A pressão para que a gente acredite nisso é muito grande. A pressão para que, de fato, a gente se perceba enquanto empreendedor é grande, mas não é o corrente da categoria, sabe. Boa parcela dela deposita sim esperanças que a Justiça possa vir. E depois, no caso, uma legislação também específica possa vir resolver a nossa situação enquanto trabalhadores e trabalhadoras.

JOEL BIRMAN: Quais foram os impasses na vida laboral e social que conduziram os motoristas e os entregadores para esse tipo de trabalho tão depreciado socialmente e como a incursão do sujeito na condição de motorista e de entregador, ao lado de sua condição precarizada anterior, seria a fonte interminável de culpa, vergonha, angústia e depressão, como pedras angulares de suas condições de subjetivação?

A pergunta é bastante complexa, né, porque ela trata de várias questões. Então, assim, tentando responder a primeira que foi colocada. É, a categoria, ela é muito recente, né. A gente pega de 2014 pra cá, que é quando a Uber chega no Brasil, você tem todo tipo de pessoas fazendo uber. No começo, é até um pouco mais seleta a coisa, porque tinha, pagava melhor. Os carros tinham que ser carros mais de luxo. Então, você tinha uma casta aí bastante seleta de quem podia fazer o trabalho, né. Então, no começo, foi meio que uma ilusão de que aquilo pudesse servir. Aí, depois com o agravamento da crise política, o agravamento da crise econômica, veio o golpe, vem todas as retiradas de direitos e um desemprego galopante, acaba que mais gente entra na, para dirigir os aplicativos. E, assim, eu não posso falar sobre a questão de precarização antes. E o que eu observo no meu caso particular e o que eu observo na categoria é também gente que vive de empregos formais, a maior parte. Tem muita gente que já era motorista antes, seja taxista ou seja motorista particular com algum tipo de vínculo. Então, assim, a questão da precarização acaba que é uma bomba nas nossas cabeças. É algo que a gente não percebe no começo. Depois que a gente se percebe nisso já é tarde. Porque acaba que você já gastou sua vida pra aquilo, né. Então, tentando responder a outra pergunta, isso desencadeia um processo em quem tem um pouco mais de noção do que está acontecendo ou conforme você vai tomando noção do que vai acontecendo, isso desencadeia um processo de depressão, desencadeia um processo de desestímulo mesmo, sabe. É um processo de degradação da vida familiar, né. Você tem pouco tempo para passar com esposa, com filhos. Você tem pouco tempo para visitar pai e demais familiares, irmãos. Tem irmãos, minhas irmãs, por exemplo, eu não vejo, por exemplo, tem mais de um ano, né. Somando tudo, pandemia, trabalho e tal. Elas também têm uma vida louca. Então, assim, acaba que a gente sacrifica bastante da nossa vida privada. O tempo de lazer, por exemplo, é algo muito restrito, leitura, o tempo para a leitura que nós temos. Eu sou uma pessoa que lê bastante. É um tempo muito curto, um tempo muito escasso. E aquela troca com amigos também é tudo por WhatsApp. Não tem condições das pessoas se encontrarem, apesar da pandemia, entendeu. Mesmo fora de pandemia, é difícil a gente conseguir encontrar as pessoas. Então, isso impacta muito na saúde psicológica, na saúde mental das pessoas, né. A gente tem motoristas que estão caindo doentes, sem ter doença alguma. Porque é a cabeça mesmo sabotando ou tentando se preservar, né. É como costumam dizer: “O corpo precisa parar.” Você não para, a cabeça começa a te dar umas sabotadas para você poder parar aquele tempo, que está precisando, para se resguardar. Então, assim, o que a gente vive hoje é este processo, sabe.  Você se percebe na precarização. A maior parte não vem da precarização. É claro que tem gente que tinha empregos bem ruins antes, mas a maior parte não vem da precarização. O motorista de uber, isso não é a maioria, mas, assim, uma parte considerável, é gente que tem nível superior. Gente que vem de bons empregos antes. Gente que tem até pós. Nós temos mestras, nós temos doutores. Eu costumo dizer que eu só não vi ainda médicos fazendo pista, mas arquitetos, engenheiros, advogados têm um monte, um monte. Advogados mesmos, com OAB. Não é só bacharel. Gente com OAB fazendo pista tem muito, muito. E assim você não se percebe. Eu vou contar a minha questão pessoal. Eu vim de bons empregos antes. Engatei uma série de bons empregos. Empregos que tinham direitos assegurados. Empregos que tinham bons acordos coletivos. Tinham participação em lucros, plano de saúde, vale-alimentação, vale-escola. O salário era bom. Então, assim, eu tinha vários benefícios e, de repente, você perde tudo isso e se percebe num mundo em que você está sozinho, lutando consigo mesmo, em que você se percebe sem nenhum apoio dos aplicativos. Sem nenhum suporte. E, quando eu fui assaltado, eu percebi, eu já vinha, já tinha bastante consciência da precarização, mas você percebe ainda mais que você está só, porque o aplicativo nada faz. Em momento algum, ele faz alguma coisa. Você precisa implorar para o aplicativo, por exemplo, ele bloquear ou a viagem acaba sendo feita para que o passageiro não continue pagando. Então, assim, esse é o tipo de coisa que você vai se percebendo. Você não chega assim e fala: “Eu vou ser explorado. Eu vou entrar aqui para ser mal pago”. Não. Você se percebe nesse meio, entendeu. Quando você se percebe que você já está nesse processo, você acorda e dá um estalo assim, caceta: O que que eu estou vivendo aqui? O que que é isso, sabe? O que estou passando? E aí começa a ter um monte de gatilhos, né. Aí vem o processo da depressão, vem o processo do corpo o tempo todo te sabotando, pedindo para você parar. Você não tem o suporte dos seus amigos, não tem o suporte da família. Você não consegue dar o suporte que você precisa dar a família. Não consegue dar o suporte a seus pais. Estar mais próximo das pessoas. Então, isso tudo vai se acumulando e a saúde mental vai pro cacete, a saúde emocional vai pro cacete. A saúde financeira, você não tem. Ou porque você roda ou você morre de fome. Então, assim, é algo bastante complexo. Como a pergunta foi complexa, então, eu espero ter conseguido pelo menos encaminhar alguma coisa para responder.

LUIS CARLOS FRIDMAN: Como combater um patrão que é uma tela e como despertar a solidariedade para a luta por melhores condições de trabalho entre os companheiros submetidos à mesma situação?

É bastante complexo, né, porque a gente tem duas questões aí que precisam ser observadas com muita calma, né.  A primeira, nosso patrão é uma tela. E isso é algo que a gente já percebe de cara, né. Na primeira relação que você tem com os aplicativos, você só fala com aplicativos. Você não fala com ninguém. Você manda os seus documentos e tal. Então, assim, essa é uma percepção que a gente tem de começo. Agora o que mais irrita a gente no dia a dia, o fato do patrão ser uma tela, a gente consegue entender, porque infelizmente o patronato brasileiro, até as chefias, né, que trabalham como lacaios de patronatos costumam tratar os seus subordinados de forma sempre muito, me perdoe a palavra aqui, porque não acho palavra melhor, mas escrota, sabe, de forma muito escrota. De chegar, às vezes, a humilhar. O assédio moral é algo, assim, é regra. O assédio moral é a regra. E eu falo isso com muita tranquilidade, porque eu já trabalhei com recursos humanos por algum tempo da minha vida. Então, é algo, é uma prática que a gente precisava sempre estar fazendo campanha de cima para tentar amenizar isso, sabe. Então, assédio moral já é algo muito comum. Na tela, pelo menos, você não tem esse assédio moral. Por outro lado, a quem você presta serviço é sempre muito complicado, certo. Porque as pessoas se apropriam do fato de você não ter um chefe ali, né, intermediando aquela relação. Se apropriam do fato de você não ter alguém fazendo aquela mediação pra descontar em você todas as suas frustrações e toda aquela vontade de ser chefe para humilhar alguém, entendeu. Então, assim, a gente hoje, se a gente reclamar disso, sabe, o fato do chefe ser uma tela, ser um algoritmo, irrita menos a gente do que o fato de pessoas que pagam cinco reais, seis reais, ainda que a humilhação não tenha preço, mas gente que paga por uma viagem de um quilômetro e a pessoa passa a viagem inteira te humilhando, entendeu. Isso é algo muito comum e contribui também bastante, né, pra a sua percepção de que você não é ninguém. Então, essa, e, às vezes, a gente prefere até passar batido, passar, como diz mesmo, na invisibilidade mesmo, do que ter essas pessoas querendo tirar de maiores que a gente, porque estão pagando por uma viagem. Então, assim, isso é bastante complicado. E a categoria, ela é muito fluida. Então, a gente não consegue, às vezes, e os aplicativos fazem tudo para dificultar isso, a gente não consegue, às vezes, trocar um papo olho no olho. Por que o que constrói a categoria, né? O que constrói a camaradagem? O que constrói aquele senso de corpo? É o olho a olho, né, cara. É você poder, eu estou aqui conversando com você, a gente poder trocar uma experiência olho no olho. A gente poder, a gente compartilhar alguma experiência que a gente teve. E isso vai criando laços, né. Isso vai fazendo a gente ter pertencimento. A gente entender o lado da outra pessoa, entendeu. A gente poder demonstrar solidariedade a ela e criar aquele laço, sabe, de, pô, é minha camarada, entendeu. A pessoa que eu preciso manter junta. A pessoa que eu preciso respeitar. A pessoa que eu tenho que ouvir. E infelizmente a gente só consegue se encontrar nos nossos fóruns virtuais. Não tem jeito. E aí um grupo de motoristas de WhatsApp é como um grupo comum de amigos, sabe. Só que é um grupo de amigos de gente que não se conhece. Então, assim, rola todo tipo de assunto possível. Desde a gente começa o dia com uma oração ou com um pornô, entendeu. E termina o dia dessa mesma forma. E, nesse meio tempo, passa gente com a cabeça cortada. E aí quando você, literalmente. Não estou falando em sentido figurativo, não. Literal. E, nesse meio tempo também, você tem gente ali, que você, passando com um pouco mais de paciência, percebe que a pessoa está desabafando. Aí você tenta um jeito de chamar no privado para tentar dar uma ajuda, porque tem o máximo que você pode fazer naquela correria dos grupos. Porque a correria dos grupos, ela retrata muito da nossa correria do dia a dia. Então, aquele fluxo constante de informação, 90% disso é besteirol e baixaria. E o pouco que tem ali de humanidade a gente tenta, eu sou muito cuidadoso, né, com grupos e tal, até com o que eu vou postar ali, o que eu vou colocar. Porque eu não sei quem está do outro lado, né, que tipos de gatilhos podem disparar em alguém. Então, assim, aí a gente tenta, dessa forma, criar algum laço e aí ir evoluindo essa relação, tornando ela um pouco mais próxima e tentando também tornar um pouco mais política. Menos na questão partidária, porque a gente vai sempre dividir. Não vai ter jeito, mas, assim, fazer o cara entender, fazer o cara entender que ele é dotado de capacidades. E que essas capacidades têm que ser respeitadas, porque o aplicativo não respeita a gente. Então, assim, é muito difícil, sabe, porque pela fluidez, porque são pessoas de diversas matizes intelectuais e de diversas matizes ideológicas e diversos interesses também. Então, tem gente que está no aplicativo. porque está sem emprego. Tem gente que está no aplicativo, porque já está aposentada e quer só ganhar dinheiro, algum dinheiro a mais. Tem outras pessoas que estão ali só para poder pagar a faculdade ou só para poder ir para a night ou viajar e tal. E tem gente que leva aquilo ali a sério. Então, assim, tem muitos interesses, ao mesmo tempo. Vários tipos de pessoas, ao mesmo tempo. E cada uma delas com uma disposição diferente para se engajar na luta. Então, é muito trabalho sim, porque acaba que a gente tem que partir de um geralzão para um pessoal e isso demanda tempo, sabe. Demanda um tempo que, às vezes, até a gente não tem, porque a rotina nossa é uma rotina totalmente louca, né. Eu vou te dizer que eu estou há um mês sem carro, porque eu fui assaltado e peguei o meu carro agora. Na segunda-feira, eu vou colocar o gás. Então, na terça, eu devo voltar para a pista. Eu não vou ter tempo para mais nada. Eu sei que a minha esposa também roda e eu vou rodar. Então, assim, as dívidas e as tarefas de casa a gente divide e depois divide o carro. Então, assim, o custo é para os dois. Eu moro com ela, durmo com ela na mesma cama e a gente não consegue conversar, por conta dessa questão. Então, assim, você imagina com terceiros, com pessoas de fora, com pessoas que compartilham uma rotina tão louca quanto a minha rotina, entendeu. Então, o fato do chefe ser uma tela e da gente só viver dentro do aplicativo, dentro de aplicativo, né. Porque ou no nosso aplicativo de trabalho, em que a gente se comunica, não tem nenhum tipo de comunicação entre nós ali dentro. Ou nos nossos grupos, que é por onde a gente consegue conversar, é muito difícil a gente conseguir montar esse senso de corpo. Porque as pessoas acabam não tendo o rosto. E não tem olho no olho, não tem o tête-à-tête. Dificulta bastante, mas a gente está tentando. A gente está tentando, está conseguindo, rumo a algum progresso. Está conseguindo cada vez mais que mais camaradas se entendam enquanto camaradas, de fato, enquanto classe, enquanto trabalhadores. Não somos empreendedores. E isso está cada vez, né, caminhando mais. Claro que o que facilita muito também é o fato dos aplicativos estarem piorando muito nossa vida. Parece que eles ficam o dia todo pensando “como vamos ferrar com eles amanhã”. Acho que é isso o que eles fazem todos os dias, né. Mas é isso. A dificuldade que nós temos são essas aí.

MÁRCIO TÚLIO VIANA: É melhor ser cooperado do que empregado e, se for, por quê?

Assim, eu nunca fui cooperado, né. Então, eu não sei. Mas eu acho que depende muito da perspectiva de cada um. Porque eu gosto muito de ter o salário no fim do mês, né. Trabalhar o mês todo e saber que vou receber “X” no final do mês. Mas é claro que ser cooperado, acredito eu que seja melhor do que ser precarizado, né. Porque o cooperado, pelo menos, tem recolhimento de previdência. Tem algum tipo de vínculo reconhecido. E tem com certeza uma renda no final do mês, né. Porque ele sabe que ele produzindo “X”, a cooperativa dando aquele retorno, ele, no fim do mês, ele vai tirar um valor “Y”. Então, eu acho que seja melhor. Agora, assim, depende muito da perspectiva de cada um, né. Eu gosto, eu volto a dizer, eu gosto muito, eu não me motivo por ganhar muito dinheiro, sabe. Eu me motivo por fazer bem aquilo que eu sei fazer. Então, eu tendo um salário no final do mês para fazer aquilo que eu sei fazer, pra mim, tá bom. Mas, de toda forma, ainda assim, eu acho que cooperativa é infinitamente melhor, né, do que precarização, como os aplicativos fazem. É claro que, observado o fato de ser, de fato, uma cooperativa, né. E não essas empresas mandrake aí que cooperam você, mas você é meramente um cooperado entre aspas, né. Você tem uma participação mínima, que é um salário na verdade. Se estropia todo. Não tem direito nenhum no fim das contas e acaba resgatando algum dinheiro no finalzinho, mas que é muito pouco pelo que você produz. Então, acaba que reproduz ainda, a cooperativa vem para quebrar com isso, mas acaba que você reproduz ainda a mais-valia, né. E a mais-valia à brasileira, que é ainda mais perversa do que aquela que Marx pensou. Então, é isso. Eu prefiro parcialmente ser celetista por todas as garantias que isso me traz. Mas o cooperativismo é uma alternativa válida e que deveria até ser estimulada, né, pra que mais motoristas, entregadores e tal conseguissem competir de igual para igual com os aplicativos, né. Seria muito melhor uma cooperativa do que uma precarização. Isso sem dúvida.

PEDRO CUNCA BOCAYUVA: Como você vê os muros, as divisões, os diferentes lugares na cidade e a questão racial marcando sua atividade?

Ah, é demais. É demais. Eu falo da perspectiva de quem é nascido e criado na Zona Oeste, em Realengo. Então, eu falo de um lugar suburbano, de um lugar em que a violência policial é algo muito marcante. E a briga por territórios, seja do tráfico, milícia, milícia com tráfico, tráfico com milícia e milícia entre milícia, é algo muito, assim, nosso. É muito natural, né. Qualquer pessoa que nasce no subúrbio do Rio de Janeiro principalmente. Eu nasci e fui criado na boca de uma favela, né. E a favela acaba fazendo parte da sua vida, porque você tem amigos lá dentro. Você entra pra brincar e você depois entra para ir às festas. Namora as meninas do morro e os rapazes do morro namoram o pessoal de baixo também, né. Então, assim, acaba que você se relaciona com as pessoas, né. Então, está sempre frequentando. É você percebe que existe uma, você aprende, desde novo, a perceber a guerra, né, a disputa. Você aprende muito, por exemplo, a perceber os calibres de bala. Quando é tiro, quando é longo e qual tiro que uma arma dispunha. Isso para uma criança é algo muito marcante. Você aprende a conviver com corpos de pessoas pelo chão e passar por cima daquilo e continuar a sua vida. Não porque você seja indiferente, mas porque ou é isso ou você não faz mais nada. E aí você, quando começa a frequentar outros lugares, lugares mais centrais, lugares um pouco mais, digamos, um pouco maior, você começa a perceber que esses muros existem. Você começa a perceber que, o fato de você não morar em uma área que, para eles, é adequada, as portas se fecham, os muros sobem. E você tem que, você precisa aprender a contornar determinadas situações. Muitas vezes, você é humilhado. Colega de faculdade, por exemplo, fazem questão de marcar em lugares que sabem que você não pode ir, mas, como não podem deixar de te convidar, te comunicam da pior forma, porque sabem que você não consegue acessar aquilo. E a questão racial, pra mim, é muito presente, né, apesar de eu não ser negro, não tem como deixar de observar, né, que, dentro dos ambientes em que a gente chega, é sempre difícil, né. É sempre complicado. Eu já fui salvo por não ser negro. Já fui salvo, porque, apesar de ser de Realengo e tal, eu já tomei porrada de polícia também, como qualquer outra pessoa, mas aquilo, né, a gente percebe que a porrada na gente é sempre mais fraca, né. A gente apanha menos. E aí, dentro dos aplicativos, por exemplo, os entregadores sofrem até mais, né, porque as batidas policiais são sempre em cima dos caras que são negros, né. Pode passar um maluco branco lá e o cara estar com um saco cheio de drogas dentro da moto, do carro e tal, e não vai ser parado. E o cara negro, sim. Eu já tive arma apontada na minha cabeça há pouco tempo, aqui mesmo, pela polícia. E foi num susto, que eu não vi a polícia, a polícia não me viu. Então, foi uma coisa meio assustada assim dos dois lados. E eu tenho certeza que eu não morri, eu estava dobrando, ao pé do Morro do Cajueiro, eu tenho certeza que não morri, porque não sou negro. Então, assim, você se percebe, né, se percebe nesse ambiente, se percebe nesse mundo. Começa a ver a vida pela perspectiva de quem é suburbano e percebendo que você precisa rebolar pra conseguir abrir algumas portas, rebolar para pular alguns muros. Rebolar pra, é, e, do fato de você não ser negro, te ajuda bastante nessa, te colocar. Não dentro da comunidade, dentro da comunidade em si, na relação entre as pessoas e tal, essa questão racial é menos marcada. As pessoas se respeitam bem mais, apesar do racismo ser algo muito arraigado, algo muito estrutural, né, mesmo, muito claro. Tanto a comunidade em si e as pessoas se respeitam muito mais do que fora dela, sabe. Especialmente a polícia, mesmo policiais negros, eles costumam ser bastante racistas nas suas abordagens. E, mas, enfim, claro que eu não tenho como negar que eu fui salvo, várias vezes, pelo fato de eu não ter a pele escura, né. Então, assim, é muito, é algo muito complexo, cara, porque a comunidade também, sabe, a pobreza, no Brasil, ela é bastante diversa. Claro que a negritude é maioria evidentemente, né. Mas a pobreza, e você só se percebe, às vezes, né, como uma pessoa suburbana, não em mim, porque eu sempre tive essa consciência, desde muito novo, mas tem gente que só se percebe suburbano, tipo o brasileiro. O brasileiro só se percebe mestiço quando vai para fora, né. Quando chega lá fora, é chamado de macaco. É chamado de cabeça preta. É chamado de moreno e tal. E você só se percebe mestiço quando você está lá fora. O brasileiro infelizmente tem essa mania. E muita gente do subúrbio também só se percebe suburbano quando precisa frequentar as regiões mais centrais. Zona Sul, Barra da Tijuca, sabe. E aí você consegue, você começa a perceber que existem sim alguns muros que se propõem, de fato, intransponíveis. Você percebe que as portas se fecham, porque você mora mais longe do que todo mundo, sabe. Ainda que, às vezes, você esteja mais perto do Centro, você mora mais longe, digamos, daquele centro ali, né. Então, é algo bastante complicado. Aí você pega para os aplicativos. Motoristas de aplicativos estão morrendo dentro de comunidade. Simplesmente pelo fato de serem negros e estarem num carro saindo, às vezes, de uma comunidade e a polícia aguarda embaixo e já aborda como se fosse bandido, né. Então, infelizmente, a questão racial, é algo que perpassa assim, perpassa a nossa categoria de forma bastante significativa. E tem alguns códigos também de motoristas, sabe, que são bastante racistas mesmo. E motoristas negros, entendeu: “Ah, quando vem dois negões, eu não pego”. É algo muito comum que você ouve os caras falando, entendeu. São dois negros. Necessariamente são bandidos? Entendeu? E os aplicativos não fazem nada para mudar isso, tá. Não fazem nada, inclusive, passageiros xingam os motoristas direto no carro. Isso são relatos que a gente recebe toda hora. E xingam de negro, de macaco, sabe. “Ah, fiquei com medo porque achei que você era bandido”. É algo ouvido o tempo todo, entendeu. Algo ouvido o tempo todo. Então, assim, o racismo, dentro do aplicativo, é um negócio impressionante. Mas como o machismo, como a misoginia, como a homofobia também, sabe. A gente ia ficar horas aqui, né, falando. E aí eu vou falar agora daquilo que eu tenho propriedade para falar, que é o fato de eu ser uma pessoa periférica, morar no subúrbio. Eu não gosto de viajar pela Zona Sul. Eu não gosto de fazer viagem pela Zona Sul, porque é ter certeza de que você vai ouvir alguma gracinha escrota, sabe. É ter certeza que você vai ouvir alguém querendo te colocar no seu lugar. É ter certeza que você vai se sentir desrespeitado. É ter certeza que você, naquele dia, vai fazer uma viagem de merda, porque é uma viagem pra um lugar horrível de entrar. Condomínio mesmo. Condomínios bons entre aspas, né, bons, mas, você que tem dificuldades, vão te humilhar para você entrar. Quando você entrar, você é humilhado. Você é humilhado, quando você deixa, pega a pessoa ou quando você vai deixar a pessoa. Então, assim, para ganhar, às vezes, cinco reais, só porque a pessoa vai pegar álcool em gel, por exemplo. Aí pede um carro só pra subir. E, assim, você é escrotizado o tempo todo no caminho. Quando não é absolutamente ignorado no “bom dia”, no “boa tarde”. Já começa aí. Já começa aí, nessa questão social bastante marcada, para ganhar cinco reais, às vezes, entendeu. Então, assim, eu tô falando aqui da experiência que eu tenho como uma pessoa que não é moradora de áreas nobres, né, entre aspas. Agora, assim, se pegar o motorista negro, as relações são bem piores, porque tem a questão do racismo ainda, né. E é algo que a gente ouve muito. Motoristas mulheres. Minha esposa é motorista e tal. E o que ela ouve de machismo, quando entra no carro, é algo impressionante. Tem um camarada nosso que é negro e gay, ao mesmo tempo. E ele é aquele gay, assim, que não tem vergonha nenhuma de ser gay, né. Ele se assume. É um cara assim, que tem isso muito marcado na personalidade dele até. E, assim mesmo, ele ouve bastante coisa também, entendeu. Então, é isso, infelizmente, a nossa sociedade, ela faz o tempo todo questão de diferenciar, de demarcar territórios e tentar marcar as castas onde devem estar, marcar as pessoas por suas cores e pelo aquilo que elas são. Então, é bastante complexo.

RICARDO FESTI: Quais são os desafios para efetivar a articulação de uma luta unificada entre os trabalhadores de plataformas digitais (entregadores, motoristas de aplicativos etc.)?

Então, o principal desafio que eu entendo é aquilo que a gente estava falando um pouquinho antes aqui, que é o fato de a gente não ter convivência, né. A gente não convive. A gente não tem olho no olho. Não tem essa questão de se entender enquanto camaradas, se entender enquanto colegas de trabalho, enquanto pertencente à mesma classe. Então, eu acho que o primeiro desafio é esse, né. O outro desafio que a gente tem, e aí a gente tem tentado trazer esse debate de forma bastante ampla, é que o camarada que faz, seja motorista, seja entregador, seja diarista, seja, sei lá, pedreiro, aqueles aplicativos de marido de aluguel são, na verdade, pedreiros, encanadores, que estão ali, à disposição dos aplicativos também, né, é que esse camarada se entenda enquanto uma classe única, né. E isso aí é só conversando, porque tem alguns fatores que diferenciam essas categorias também, né. O fato do cara trabalhar com o carro, ele se acha melhor, né. Ele se acha melhor do que o cara que trabalha na bicicleta. Então, o primeiro desafio que a gente tem é fazer esse cara entender que não, que, na verdade, tá todo mundo no mesmo barco da precarização. E que, por muitas vezes também, o cara que trabalha na bicicleta pode ter custos muito menores do que a gente e lucrar mais, né. Ele pode ganhar menos, às vezes. Quanto um cara desse ganha por semana? Vamos ver. Qual custo que esse cara tem? Vamos colocar que ele ganhe duzentos reais a quatrocentos reais, né, por semana, entregando por bicicleta. Qual o custo dele? Se o pneu não furar e uma corrente não arrebentar e o freio também não, que é algo que assim, usando bastante a bicicleta, vamos colocar que, uma vez por semana, algo disso arrebente, mas ainda assim é muito barato para consertar, né. O carro é muito mais caro. O carro ainda tem, ele não está livre de um monte de outras coisas, então, como seguro, combustível, manutenção pesada, né. Então, assim, quando o cara perceber, mas é só com muita conversa, perceber que o entregador de bicicleta é tão camarada dele quanto a diarista que trabalha por aplicativo, quanto o cara que faz carpintaria, quanto o cara, os instaladores de tv a cabo também, né, que estão todos sendo plataformizados. Quando ele perceber isso, a gente vai ter muito mais facilidade para unir a categoria. Mas assim, por enquanto, o fato de não ter o tête-à-tête, a gente não poder se comunicar, vou pegar um exemplo muito prático. Vou pegar um exemplo meu. Eu trabalhava na Light. Na Light, nós éramos, convivíamos todos no mesmo ambiente. Todo mundo se vendo todo dia, almoçando, muitas vezes, juntos, tomando café juntos, mas cada um fazia uma coisa. Tinha arquiteta, tinha engenheira, tinha eletricista, administradora, jornalista. Todo tipo de formação. Cada um fazia um tipo de serviço diferente. E todo mundo se entendia enquanto camarada. E o seguinte, ao contrário do que muita gente imagina, são três empresas diferentes. Então, assim, muitas vezes, no mesmo ambiente, empregavam três empresas diferentes. Todos ligados à Light. São três empresas diferentes. E todo mundo se via como camarada, que tem o fator cara a cara. Tem o fator olho no olho. Cada um recebendo um salário diferente, ocupando funções diferentes, com formações diferentes. Gente com nível fundamental com gente com nível com pós-graduação, mas todo mundo se entendia enquanto camarada. Todo mundo se respeitava. Todo mundo ouvia um o conselho do outro, ouvia um o que o outro tinha a dizer sobre determinada questão, porque tinha um cara a cara. A gente hoje tem a nossa dificuldade de não ter o cara a cara. E, mesmo quando eu, por exemplo, eu não peço Ifood, eu não peço, sabe, mesmo quando o motorista pede Ifood, ele não vê aquele camarada que está entregando para ele como um camarada. Ele vê como um entregador. Ele não consegue enxergar na luta daquele cara a sua própria luta. E esse é um trabalho, que a gente tem construído aos poucos, que agora já tem aumentado bastante essa visibilidade, né. Essa questão de um se ver no outro. Mas o fator carro, sabe, ainda é algo que pesa muito. O cara acha que, se ele tem um carro, ele é o cara. E, assim, eu falando como homem agora, o fato de ter um carro, pro homem, faz parte assim do imaginário do homem ideal, né, dele no caso. Eu vou crescer, eu vou trabalhar e vou comprar um carro. Ele nem pensa em ter uma casa, em construir. Ele quer crescer, trabalhar e comprar um carro. Então, o carro dá, para esse cara, uma sensação de poder, uma sensação de ser, sabe, de uma constituição masculina, que ele tem dificuldade de enxergar que existem outros camaradas também e outras camaradas na mesma situação que ele, mas que estão trabalhando de bicicleta ou de moto ou pegando ônibus pra prestar serviço na casa de alguém, entendeu. Então, eu vejo que, na categoria de motoristas, e eu falo isso com muita propriedade, porque acaba que eu tenho sido um dos cabeças ali, existe mais dificuldade do que nas outras. O pessoal das entregas procura mais a gente para organizar as coisas, para estar junto com eles nas ações do que nós procuramos a eles, entendeu. Isso é uma realidade, porque falta o tête-à-tête, falta o olho no olho, falta tomar um café juntos, mas também falta essa noção de que o carro não é nada, sabe, que o carro não te diferencia de ninguém. Então, tem esses pequenos aspectos que tornam a tarefa, uma tarefa bastante trabalhosa. Mas, assim, não é inglória. Eu não acredito que é inglória. Eu acredito que a gente vai conseguir sim, mas é muito trabalhosa, sabe. Trabalhosa mesmo de tomar muito tempo, mas é necessário, né.

SIMONE OLIVEIRA: Como se dão as relações de gênero no trabalho por aplicativo no que tange à adesão e admissão à plataforma, relação com os clientes, cooperação, segurança e exposição à violência e assédios?

Então, a questão de acesso a plataformas, isso aí não tem nenhum tipo de restrição não. Você preenchendo os requisitos lá, que a plataforma coloca, de que tipo de carro que é, do tipo de carteira, tem que ser a Carteira da B com EAR, né, que é a que exerce atividade remunerada, qualquer pessoa pode fazer, independente de gênero, independente de identidade de gênero, independente de cor e tal. Isso aí não é tão problemático. Agora eu vou falar pra vocês, aí eu vou pedir desculpas aqui, porque eu vou estar falando de algo que não é da minha realidade direta, mas que é a questão das mulheres. Mas que é algo que eu converso com a minha esposa, que é motorista, e eu conversando com outras motoristas e que eu observo em algumas situações também. Nos grupos, por exemplo, de motoristas, as mulheres não são bem-vindas. Não são. De forma alguma é bem-vinda. Primeiro, pelo conteúdo das coisas que acontecem nos grupos, né. É algo assim que eu me constranjo e, para as mulheres, acaba sendo algo mais pesado ainda, né. A outra questão é que elas não são respeitadas enquanto motoristas, enquanto camaradas. Então, elas cansam de levantar questões no grupo, questão assim que eu posso colocar. Eu colocar uma questão e você colocar a mesma questão que eu, eu vou ter resposta para o que eu coloquei, nem que seja uma brincadeira, mas respondem. E você vai só ouvir insultos. Algo muito comum de acontecer, sabe. Muitas das vezes, eu percebo que fazem isso no grupo, sabe. A mulher perguntar qualquer coisa: “Ah, como é que está o trânsito em tal lugar?” Ou ignoram. O mais comum é ignorarem. O segundo é responderem: “Ah, abre a”, desculpe, “abre a porra do aplicativo, abre a porra do navegador easy para ver como é que tá.” E a terceira é só xingar. Essas são as respostas mais padrão. Aí eu vou e pergunto, sabe. Em cima da pergunta dela, coloco lá a pergunta. E eu sou respondido, inclusive com prints. “Ah, eu tô aqui agora e tal.” E tira um print, me manda um print de como é que está o trânsito naquele momento, naquele lugar, porque a pessoa está lá, entendeu. É um ambiente muito masculinizado, muito, sabe. Aquela coisa de homem bombadão. Sabe aquela coisa do homem másculo, macho alfa e tal. É esse o ambiente e as mulheres não são nem um pouco bem-vindas nele. Nem um pouco. E isso infelizmente reflete no carro também, né. O machismo é algo que está muito incruado na categoria, mas na sociedade como um todo. Eu acredito que eu não preciso te falar isso, né. Então, acaba que, para as motoristas também, elas sofrem uma pressão muito grande dentro dos carros. Além delas não terem o suporte que elas precisam ter, e, a cada dia é mais comum, elas saem dos grupos gerais e entram num grupo só de mulheres, para tentar ter algum aporte, algum suporte, algum apoio no dia a dia delas e tal. Até indicação boba, que para nós é boba, mas pra vocês é importante. Que banheiro é acessível, sabe? Que banheiros vocês conseguem usar, sem precisar se humilhar no caixa, porque está quase fazendo as coisas nas calças? Ou ter que se sujeitar a um banheiro sem a menor condição de uso? Até esse tipo de assunto rola nos grupos de mulheres. Porque se se faz uma pergunta dessas, no grupo geral, é avacalhação, entendeu. É esculacho, sacanagem. Então, assim, pra se proteger, as mulheres estão fazendo grupos só delas. Também do assédio no carro. Porque muitas são assediadas e não é só assédio sexual, né. Não é só aquele assédio: “Ah, você é muito bonita, não sei o quê?” Essas coisas, essas escrotices, mas um assédio também moral. Porque, assim, eu, como homem, sou bom motorista e posso errar. Você, como mulher, não. Então, é muito comum os relatos e eu pego da minha esposa, por exemplo, que roda também, de ter ouvido piadinhas dentro do carro. Então, assim, essa questão de gênero é algo bastante, bastante complicado. Uma coisa muito simples, como a lei, por exemplo, agora o projeto de lei que quer implementar os pontos de apoio, né. Em um primeiro momento, a gente já falou sim para os pontos de apoio, porque é uma forma de garantir que as mulheres tenham acesso a um banheiro decente, porque a gente não tem como negar que a dificuldade de vocês é muito maior que a nossa. A gente precisa de algum lugar, qualquer lugar basta, que tem algum buraco lá, que a gente consegue fazer. Vocês têm muito mais dificuldades. Então, assim, mas é difícil a categoria entender isso. Até esse tipo de coisa a gente precisa sentar com o cara e falar: “Olha só! Pensa na sua mãe.” Eu sei que é escrotíssimo você fazer isso. Eu não gosto nunca de pensar dessa forma, mas, assim, eu sou obrigado a sentar com o cara e falar: “Pensa na sua mãe, pensa na sua filha, pensa na sua esposa ou na sua irmã que tem que se humilhar num caixa para tentar fazer xixi”. Só isso que ela quer. Então, até essa dificuldade, para as motoristas, se o nosso ambiente é muito ruim, para as motoristas, para as entregadoras, é muito pior, muito pior, porque coisas que parecem naturais e básicas, para elas, é negado o tempo todo. É o tempo todo. Eu me sinto constrangido quando as mulheres saem dos grupos, falando: “Eu não tenho condições de ficar aqui, porque eu sou o tempo todo desrespeitada, sabe.” E, se a mulher manda dicas de trânsito, vai para tal lugar, não vai para tal lugar não, nego fala: “Você acha que eu não sei dirigir? Tu acha que eu não sei dirigir, sua puta?” Por que você chamou ela de puta? Ela é sua amiga para você tentar brincar? Vamos supor que é uma brincadeira. Ela é sua amiga para você tentar brincar dessa forma com ela? Entendeu? Então, assim, é muito difícil, sabia. É algo bastante, bastante assim, o machismo todo do universo retratado no nosso microcosmo também. Não muda muita coisa, não. Na verdade, eu acho que é até bastante pior, né, pra vocês ali dentro, porque é um ambiente que não quer vocês, não quer. E as plataformas não fazem nada. Elas não fazem nada para combater racismo, homofobia. Não fazem nada para combater o machismo. Nada, nada. Vocês podem reclamar lá dentro do aplicativo, dizer que está sofrendo atitude machista (…) nada mesmo.

WILSON RAMOS FILHO: Quais são os impasses que os motoristas e os entregadores de plataformas digitais têm enfrentado durante a pandemia da Covid-19?

O maior impasse de todos é você precisar ganhar dinheiro, você precisar colocar dinheiro dentro de casa e não ter nenhuma segurança sanitária para fazer isso. E você fica naquele impasse de eu vou, não vou, sabe. Vou pra rua ou não? Porque você não tem nada que te garanta que você vai estar seguro, entendeu. Então, o grande impasse que a gente tem hoje é: eu vou sair para trabalhar, garantir o meu dinheiro e garantir o sustento da minha família e me pondo em risco e colocando a família em risco? Ou eu fico sem nada e não corro esse risco, mas vou ter que me arriscar de alguma outra forma? Então, o grande impasse que a gente tem hoje, por conta da covid, é esse, né. É não saber o que é melhor. Continuar trabalhando e se arriscando? É, parar de trabalhar e se arriscar mesmo assim? Porque não tem nenhum tipo de apoio, nenhum tipo de suporte. Os aplicativos não se importam que a gente caia doente. Eles simplesmente bloqueiam e pagam aquele valor mínimo e depois não pagam mais nada. Então, assim, o nosso grande impasse hoje é exatamente se expor à covid ou não se expor? Mas, se você não se expuser, como é que você vai ganhar dinheiro? Então, essa é a nossa relação hoje com o aplicativo nesses tempos de covid, né. A gente precisa rodar e acaba se expondo. Não tem muito. O impasse é esse.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DE LIVIO, O UBER DE ESQUERDA: Na verdade, é agradecer o interesse. Agradecer a Academia estar ouvindo a gente, estar preocupada em entender o que está acontecendo, compreender o novo momento da classe trabalhadora do século XXI. É. Compreender e denunciar que esse movimento não se encerra na gente. E, na verdade, nós somos apenas a ponta de lança de uma grande estratégia do capital para a precarização do trabalho, que, além de precarizar o trabalho, precariza também as relações sociais. Então, assim, a gente não se vê, a gente não se comunica, a gente não sente olho no olho. Importante para a classe transformar nesse corpo. Então, é isso. Agradecer demais a oportunidade de poder participar com vocês aqui. E agradecer a oportunidade de vocês estarem nos ouvindo, ouvindo a categoria. E entendendo os nossos dilemas e compreendendo que, assim, infelizmente nós somos apenas o começo. A tendência é que, se ninguém se mexer, se a Academia não fizer o seu trabalho de forma, de pesquisa mesmo, de investigação e de estar juntos, denunciando isso, junto com a gente, a gente não vai chegar a lugar nenhum. E daqui a pouco está todo mundo precarizado, inclusive, quem? A Academia e, inclusive, todo mundo que trabalha com o saber, que precisa desse contato mais, mais com as pessoas do debate. Inclusive, esse pessoal vai estar precarizado também daqui a pouco. Então, muito obrigado pela oportunidade de poder participar dessa pesquisa e me colocar sempre muito à disposição de todo mundo.

PROFESSORES PARTICIPANTES:

Daniele Barbosa: Professora na pós-graduação lato sensu em Direito do Trabalho e Previdenciário (CEPED/UERJ). Autora do livro A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. Advogada.

Joel Birman: Professor Titular no Instituto de Psicologia da UFRJ. Professor aposentado no Instituto de Medicina Social da UERJ. Psicanalista.

Luis Carlos Fridman: Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFF.

Márcio Túlio Viana: Professor no programa de pós-graduação em Direito na PUC Minas. Professor aposentado da UFMG. Desembargador aposentado do TRT 3.

Pedro Cunca Bocayuva: Professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH/ UFRJ).

Ricardo Festi: Professor Adjunto do Departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da UnB.

Simone Oliveira: Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da ENSP/FIOCRUZ.

Wilson Ramos Filho: Professor Adjunto de Direito do Trabalho da UFPR. Professor Convidado na Universidad Pablo de Olavide. Professor Titular da Faculdade Integradas do Vale Iguaçu. Presidente do DECLATRA.


[1] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 1ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2018, p. 14.

[2] Ibidem, p. 62.

[3] Ibidem, p. 42.                                                

[4] BARBOSA, Daniele. A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. RJ: Lumen Juris, 2020.

Redação

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