Ainda somos todos Charlie?, por Paulo Alexandre Amaral

Da RTP

Quando o Charlie Hebdo estica a corda ainda “somos todos Charlie”? 

Paulo Alexandre Amaral, RTP

O instrumento pode até ser a ironia, mas a instrumentalização do pequeno Aylan Kurdi está a ser o suficiente para condenar este cartoon do Charlie Hebdo. O semanário satírico francês – há um ano alvo de um ataque bárbaro de um comando muçulmano do Estado Islâmico – publica agora um desenho em que usa o pequeno sírio de três anos que apareceu morto numa praia da Turquia depois do naufrágio de um barco de refugiados. E diz: se não tivesse morrido, Aylan seria quando mais velho um violador de mulheres.

A reboque da polémica sobre o que fazer com os refugiados recebidos pela Alemanha depois de uma série de ataques sexuais perpetrados por refugiados na cidade de Colónia, o Charlie Hebdo pegou no pequeno Aylan Kurdi para o transformar num Aylan Kurdi adulto abusador de mulheres.

“O que teria sido o pequeno Aylan Kurdi se tivesse crescido? Um apalpador de rabos” – é este o texto, em tradução literal, que acompanha o desenho de um rapaz a perseguir uma jovem e depois um adulto a perseguir uma mulher.

Na verdade, Aylan, de três anos, afogou-se no final do ano passado na travessia para a Europa juntamente com a sua família: morreu a mãe e o irmão. Apenas o pai sobreviveu. Aylan Kurdi rapidamente passou a ser a imagem da tragédia dos sírios que procuram escapar à morte e a uma guerra que está a destruir o país.

O Charlie Hebdo está habituado aos ataques e defende-se sempre com a ideia de que no humor e na arte tudo vale e de que ceder um milímetro à censura seria desde logo ceder em toda a linha. E, como ninguém, o Charlie Hebdo pagou o preço da liberdade.

A redacção do semanário foi devastada pelo ataque do grupo terrorista que a 7 de janeiro de 2015 pôs a França sob o signo do horror, um ataque que 11 meses depois se repetiria numa sala de espectáculos e por vários pontos da cidade de Paris. 

Morreram oito membros do jornal: os cartonistas Charb, Cabu, Tignous, Honoré e Georges Wolinski, o economista Bernard Maris, a colunista Elsa Cayat e o editor Mustapha Ourrad.

O risco de desagradar parece portanto ser uma das linhas editoriais por que se regem as criações do semanário.

Na última semana, o cartoon de um deus assassino e “ainda a mexer” valeu ao Charlie Hebdo novas críticas de vários sectores, inclusive da igreja.

Uma pergunta com resposta

“O que teria sido o pequeno Aylan Kurdi se tivesse crescido? Um apalpador de rabos”. Com a questão dos abusos e das violações na ordem do dia de uma Europa que não tem grande ideia sobre o que fazer com os refugiados que chegam do Norte de África e do Médio Oriente, principalmente da Síria, o assunto acabou por não passar ao lado da equipa do Charlie.

A Alemanha enfrenta neste momento a possibilidade de fazer marcha atrás na sua política para os refugiados e enviar de volta uma boa parte destes migrantes forçados, aproveitando a onda de críticas que estão a provocar os abusos da noite de fim do ano em Colónia.

Face a este elemento, o desenho e a inscrição relativa a um Aylan Kurdi mais velho no papel de abusador pode ter outra interpretação: o jornal adverte para a classificação cega dos refugiados, como se qualquer um fosse à chegada à Europa um violador em potência (ou um terrorista em potência).

Entretanto, fazer aquela pergunta e fornecer a resposta está a valer ao Charlie Hebdo uma reacção negativa no Twitter, acusando a redacção de racismo e xenofobia.
 

Há ainda aqueles que entendem que não será bem assim. Continuam a valorizar mais a liberdade de expressão, doa a quem doer.

 

Redação

19 Comentários

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  1. Vão continuar?

    É mais honesto que os modernosos do blog reconheçam a péssima qualidade da charge discutida anteriormente, e pronto!

    Teremos uma sucessão de holofotes acima dessa discutível revista, que nem brasileira é.

    1. Conservador

      Por que pronto? Isso é coisa de quem não entende, não gosta e não aceita a diversidade de opinião, ainda que dela divirja.

      A charge até pode ser cruel para a familia de Aylan, mas ela põe, na Europa, o dedo na ferida.

      1. Dedo na ferida, que eu saiba,

        Dedo na ferida, que eu saiba, dá infecção.

        Charlie Hebdo parece mais querer chocar que fazer rir, que querer reflexão.

        Coisas assim, só aumentam o ódio, e a França (como nós) precisamos é de paz, por mais piegas e “classe média” que possa parecer essa colocação.

        Charlie Hebdo é a caricatura que os povos radicais fazem do ocidente (uns fanfarrões e falastrões).

  2. Santa hipocrisia!

    Um comentário meu, com semelhante grosseria ao charlie hebdo, foi excluído da postagem inicial sobre o assunto. Embora de extremo mau gosto, por fazer referência à mãe do Diogo, em nada diferia das publicações do semanário francês. Indigente em igual nível, também necessitava de explicação para que fosse devidamente entedido. A minha dúvida é: se foi excluída a pedidos dos esquerdistas moralmente avançados, para quem nos olhos dos outros é refresco, e livres das mesquinharias sentimentais; se por iniciativa discricionária do dono do espaço ou por seus prepostos querendo agradar ao público alvo do GGN?

     

    1. Inacreditável Jorge!
      Inacreditável Jorge!

      E cadê os defensores de CH e das “liberdades individuais intocáveis” que não protestaram contra a retirada do teu comentário? Não colocaram num contexto? Não entenderam que você estava somente “se expressando livremente”?

      Eu o vi no post original e perto da charge era só um bolinho de chuva!

      E depois batem no peito e reclamam de hipocrisia…

  3. A charge é um tipo de arte

    A charge é um tipo de arte que pode ser vista por diversos ângulos. As vezes o que se desenha de uma forma pretende mostrar outra. A sátira está sempre presente. Será que o cartunista não pensou em dizer extamente o contrário do que alguns observaram? Será que não quiz mostrar que os conservadores não aceitam as migrações usando como cobertura o que aconteceu na Alemanha? Será que a idéia do chargista não foi mostrar essa aberração interpretativa? Como descobrir o que passou pela cabeça do artista no momento de sua criação?

  4. Atentados de Paris

    Curiosidade apenas já que não conheço todo o trabalho desta revista e, o pouco que conheço, acho dispensável.

    Quantas charges foram feitas sobre os atentados em Paris , com as vitimas e seus familiares? Conheço a charge – ali não existe nenhuma critica ideologica – com as vitimas civis do avião russo, também civil, explodido pelo ISIS.

    Resumindo: alguém  poderia expor neste blog as charges feitas pelo Charlie Hebdo sobre os atentados de Paris? Se houverem, que continue a discussão. Se não existir prova que essa conversa de que o trabalho deles é critico e posicionado ideologicamente a esquerda é apenas conversa mole.

  5. O Pasquim tinha uma linha de

    O Pasquim tinha uma linha de humor semelhante ao CH (me lembro bem das piadinhas sobre a filha do Geisel) mas nunca avançou o sinal como eles. Esta charge do Aylan é um monumento a insensibilidade e ao mau gosto. Pior, ela não conduz à reflexão nenhuma. Ela é simplesmente preconceituosa. Muitos sírios estão no Brasil e tem se mostrado excelentes pessoas.

  6. Je ne suis pas Charles Hebdo

    A charge não nos faz pensar e ainda é sem graça.

    Não melhora a vida dos refugiados e provoca apenas sentimentos ruins contra a própria revista. Apenas isso.

    Com certas coisas não se brinca. Usar um menino refugiado morto para fazer “humor” é algo que não se faz.

    Pondera-se: o desrespeito é bem maior que a reflexão ou mesmo o riso ou qualquer comoção de bons sentimentos causado pela piada.

    Será que os melhores cartunistas do CH não morreram ou pediram para sair?

     

    Aos esquerdoides de plantão: Fascistas são sempre os outros, né?

     

  7. Revista de pequena circulação
    Revista de pequena circulação na França coloca na capa uma charge sobre um comentário recorrente da extrema direita francesa sobre as crianças refugiadas sírias na Europa.
    A charge, e não os comentários extremistas viram polêmica (apenas entre os não franceses, diga-se). Ou seja, quem critica esse comportamento, (seja com bom ou mal gosto) é que é atacado.
    Do jeito que estamos logo uma publicação estrangeira ficará escandalizada com os posts “reacionários” do Professor Hariovaldo.
    Eu é que não vou tentar explicar.

  8. Nunca

    Minha solidariedade às vítimas e parentes das vírtimas de terrorismo. Isto não significa que eu apóie ou tenha apoiado eta revistinha fascista.

  9. A questão não é se a

    A questão não é se a publicação é boa ou má.

    E sim que ninguem tem o direito de pautar publicação nenhuma em nome de fé alguma.

    E neste aspecto que as pessoas se solidarizaram com a revista, isso é DIFERENTE de concordar com o conteudo da mesma desde sempre… 

  10. Ainda

    O comprtamento frances de hoje, mostra que o racismo e a intolerãncia, se afastam muito do lema, da Igualdade, Irmandade e Liberdade da revoluçao francesa. O jornal não tem, em nome do humor, um pingo de ética ou respeito aos outros povos não franeses e, ainda possam vítimas quando atacados. 

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