Amorim: “Assinei pedindo o cancelamento das dívidas da América Latina com o FMI”

O ex-chanceler Celso Amorim conversou com GGN sobre a narrativa bélica do Trump, a proposta de lideranças da América do Sul para cancelar as dívidas, e o vírus do “ideologia fanatizada”

Amorim: “Assinei pedindo o cancelamento das dívidas da América Latina com o FMI”

por Santiago Gómez

Especial para o GGN

O governo Trump sustenta a narrativa de que a pandemia que estamos vivendo é culpa da falta de liberdade de informação na China, por isso informaram tarde ao mundo. O governo Trump começou falar de “vírus chinês” ou de “vírus de Wuhan” e o ministério de relações internacionais da China respondeu que os americanos agindo assim só alimentam a xenofobia contra o povo asiático. Lideranças da América do Sul pediram o cancelamento das dívidas dos países da região com o FMI. Entrevistamos ao ex-chanceler Celso Amorim para conversar sobre esses assuntos. 

SG: Estados Unidos começou com uma narrativa de guerra, dizendo que estão em guerra contra um inimigo invisível, além que o mundo inteiro está falando de uma guerra. Estamos vivendo em guerra?

Celso Amorim – É um termo excepcional, se você fala de pandemia grande parte da população vai dizer “mas já teve outras, o H1N1, o Ebola, e acha que a maioria da humanidade vai sobreviver. O acho que quando o presidente Macron fala, que foi o primeiro a falar, em um guerra, eu acho que ele quer trazer às consciência das pessoas que o nível de destruição é o nível de destruição equivalente a uma guerra, e que a intensidade das medidas também têm que ser semelhantes a uma guerra. Claro que uma coisa dessas tem riscos em relação às liberdades democráticas, os direitos humanos, então tem que prestar atenção em como realiza.

Por outro lado, sim você precisa tomar atitudes algumas de quarentena, de quarentena forçada em alguns lugares, que são medidas muito excepcionais. Nós tivemos H1N1, gripe aviária, Ebola foi mas localizada, mas nenhuma delas implicou quarentena. Estou no Rio de Janeiro, olho pela janela, e tem muito pouca gente na avenida Atlântica. Há uma indução a não sair, mas tal vez seja preciso mais do que isso. É preciso que as pessoas todas se conscientizem, é uma luta absoluta, porque não é só as pessoas se protegerem individualmente, é uma questão de que com seu comportamento você contribuir para a proteção da sociedade como um todo.

SG: O ex-vice-presidente da  Bolívia Álvaro García Linera, Rafael Correa, Gustavo Petro, ex-candidato progressista na Colômbia, pediram em uma carta o cancelamento das dívidas dos países da América Latina  com o FMI. O que pensa sobre o assunto?

Assinei essa carta, concordei em apoiar.  Acho que nós vamos ter que fazer um exame sério no futuro, com relação ao sistema econômico, às desigualdades, porque isso que nos dificulta lidar com problemas de saúde pública. Tal vez isso não impeça que surjam outras pandemias, mas tal vez nós sejamos mais capacitados de atuar. O que está assustando muito, até nos Estados Unidos, mas seguramente no Brasil e outros lugares, é a falta de testes, falta de dinheiro para testes, falta de leitos, coisas que se resolveriam se houvesse um orçamento maior. Tal vez não resolver inteiramente, mas estariam muito minimizadas se você tivesse orçamentos adequados para saúde, com cobertura universal, que até o Brasil tem, que é o SUS, mas conta com poucos recursos. Todo isso vai nos obrigar a relativizar a questão da dívida. Acho que num momento que tem uma situação como essa, você não pode ficar querendo esganar e arrancar dinheiro de países que estão tendo muitas dificuldades de lidar com o problema. No mínimo teria que fazer uma moratória por um tempo grande. Acho que seja o cancelamento é melhor. 

Podemos pensar que assim como após a segunda grande guerra poderia acontecer um novo ordenamento financeiro nessa situação?

Tudo tem que ser acompanhado com tranquilidade mas com seriedade. Acho que temos que enfrentar o tema da saúde. Uma coisa que me preocupa muito, que não tem sido comentada, claro que isso agora na parte emergencial não sei se funcionará, mas é preciso aprender a organizar o papel da cooperação internacional e da Organização Mundial de Saúde. Acho que ao longo dos anos em vez de haver um fortalecimento da cooperação internacional, fortalecimento da OMS se passou ao contrário. 

Eu acompanhei de perto, porque participei de um painel do Secretario Geral da ONU, Ban Ki-moon, sobre o ebola. Eu me lembro várias recomendações, algumas específicas sobre o ebola, a busca de uma vacina, fortalecimento dos sistemas de saúde em todos os países. Porque nós não vimos ainda o que pode ser o efeito em países em desenvolvimento como os nossos ou na África, não sei como será.

Sobretudo se falava do reforço orçamentário da OMS, que em aquela época que era época do Obama, já vinha se reduzindo porque os estadunidenses, principalmente, davam cada vez menos dinheiro. Era preciso reforçar a OMS, era preciso reforçar os sistemas de alerta, de cooperação internacional, mas acho que isso não ocorreu. Essa é uma coisa também importante. 

Não vamos conseguir resolver esse problema sem uma grande cooperação. Dentro dos países, por exemplo, é fundamental que acha entre estados, municípios, governo federal, isso não tem nada a ver com ideologia. E também tem que ter uma cooperação internacional muito grande. Por exemplo que tenha havido uma reunião dos países sul-americanos, mas é absurdo que não tenham convocado o governo que controla Venezuela, não vou nem entrar no mérito. Você não gosta do governo? Chama de governo de fato, chama do que quiser, mas ele que pode cooperar. Você precisa cooperar, você precisa trocar informações, com quem senão que vai trocar, com Guaidó? Não, tem que trocar informações com o ministro da saúde do Maduro.

É preciso entender que a cooperação internacional, a cooperação dentro de um país, numa situação como essa, estão acima de qualquer ideologia. Depois você vai discutir sobre qual é o programa econômico, se vai ser mais isso ou mais aquilo, claro que eu tenho as minhas ideias, mas a cooperação internacional é fundamental para vencer a pandemia. Brasil é o país de maior comercio com a China na América Latina, teria tudo para numa situação em que precisasse da ajuda chinesa, inclusive com equipamento, com produtos necessários, teria tudo para ser o país que teria a mais intensa troca. Aqui o que acontece é uma coisa contraria, atuamos contra. Por quê?

Porque o defeito principal disso, o outro vírus, é o vírus de uma ideologia fanatizada. Você tem direito de preferir um governo, preferir outro, mas você não pode de maneira alguma romper a cooperação internacional. Nós estamos vendo a China cooperando com a Itália, com Alemanha, e o Brasil está se privando dessa cooperação. Ao longo prazo temos que fortalecer a OMS, mas como disse Lord Keynes, vamos ver se estaremos vivos no longo prazo. 

SG: O que você pensa da narrativa do governo Trump, respeito que o que o mundo está vivendo é consequência da falta de liberdade na China?

CA: Acho que é uma bobagem dizer que foi por falta de informação na China. A China tinha todo o interesse, eles contiveram. Fizeram o trabalho, se teve falha no sistema médico, isso pode acontecer em qualquer lugar do mundo, mas acho que é totalmente falso e ideológico atribuir isso ao sistema chinês, que inclusive conseguiu reagir com rapidez. Infelizmente, que é um país que também amo muito, a Itália, tem um número maior de mortes que a China, e Itália recebeu ajuda chinesa, como está recebendo Alemanha. Acho que esse discurso é uma coisa falsa, mentirosa, e que não nos coloca no caminho de resolver o problema. 

É a primeira vez que os países do mundo fecham as fronteiras assim? 

Não sei com foram as fronteiras durante a segunda guerra mundial, porque nunca li mais profundamente sobre o assunto, mas acho que não houve fechamentos das fronteiras aqui na região. É uma situação excepcional então os países não estão sabendo muito bem como lidar, acho que a primeira reação é essa. É claro que a médio e longo prazo essa não é a solução, porque você vai ter que cooperar, vai ter que cooperar com equipes médicas, eventualmente com vacinas, ou algum medicamento encontrado, porque você vai ter que ter uma atitude humanitária respeito aos outros países. 

Infelizmente, na América do Sul, nós tínhamos uma instituição muito preparada, claro que não para lidar com uma emergência como essa, mas sim para ajudar nessa cooperação que era o Instituto Sul-americano de Governança em Saúde, que dependia da UNASUL. Tudo destruído por essa sanha ideológica, que infelizmente continua a reinar a pesar dessa ameaça muito maior para toda a humanidade. Eu vejo que os países europeus têm muita mais maturidade nisso, e estão aceitando ajuda. Ninguém está perguntando se a ajuda que veio da China contamina com vírus comunista, estão lá se ajudando, estão procurando salvar vidas. 

Para finalizar, deixa-me cumprimentar ao presidente da Argentina pelo trabalho que estão fazendo. 

Redação

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