Democracia, tiros e orações, e o dia do juízo final, por Rogerio Arantes

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Democracia, tiros e orações, e o dia do juízo final

por Rogerio Arantes

Prever os votos dos ministros do STF na matéria de amanhã é até fácil, mas prever se eles efetivamente a julgarão e qual será o posicionamento do tribunal como instituição nem tanto. Já fiz a análise dos primeiros, mas não arriscarei palpite sobre o segundo. Antes, dou um passo atrás para entender porque parece que estamos diante do dia do juízo final.

Embora a Lava Jato não vá terminar nessa quarta-feira (e digo isso independentemente do resultado), por que este julgamento é considerado tão decisivo? Por que enquanto alguns dão tiros, outros rezam e prometem jejum em prol da decretação da prisão de Lula, outros ocuparão as ruas e farão vigília em sua defesa? Como um processo judicial cuja função é reduzir provas e incertezas à convicção de culpa ou inocência de um acusado pode entrar na reta final cercado de tamanha controvérsia, insegurança e até violência, a ponto de a presidente do tribunal pedir na véspera “serenidade” e “respeito às opiniões diferentes”?

De fato, os ministros enfrentarão amanhã o desafio de fazer um elefante passar pelo buraco da fechadura, mas não sabemos se de dentro pra fora, ou de fora pra dentro. Seja como for, Lula-preso ou Lula-livre-por-mais-um-tempo não colocará fim a essa quadra histórica, embora ambas decisões tenham potencial para estourar de vez o portal dos tempos.

Penso numa moldura mais ampla.

Democracia é um regime no qual partidos perdem eleições (Przeworski, 1991). Essa é uma forma mais crua de dizer que a alternância no poder é o principio fundamental da democracia. O foco é a competição política. A derrota eleitoral e/ou alternância no poder são indicadores da democracia porque representam efeitos concretos da competição política: indicam que um partido no governo não é capaz de impedir sua própria derrota, que o eleitorado é soberano no que diz respeito à escolha de quem irá governá-lo e que os jogadores estão submetidos a uma dinâmica capaz de impor limites à sua vontade de conquista e permanência no poder.

Podemos aprofundar essa ideia se olhamos para as condições que sustentam a democracia competitiva. A principal delas é que o partido no poder não consiga (mesmo que tente, e ele tentará) acumular poderes excepcionais a ponto de distorcer os termos da eleição seguinte. A eleição que venha confirmar ou retirar um partido do poder (E2) deve ocorrer nas mesmas condições da eleição que o levou até lá (E1).

A manutenção das condições de competição é tarefa ou função, basicamente, do arranjo institucional da democracia, especialmente dos mecanismos de checks and balances, dos órgãos de controle e fiscalização e da mãe de todas as regras, a constituição. Juntas, e no dia a dia do regime político, essas instituições asseguram aos competidores que as condições da disputa política não estão se alterando significativamente entre E1 e E2. Não digo que uma ou outra instituição em particular seja a grande responsável por este feito. Em geral, nenhuma delas está à altura e pode se considerar exclusiva no desempenho de tão grandiosa tarefa. Se houvesse uma instituição assim, ou um conluio delas, é para essas que nossos temores deveriam se dirigir, pois estariam acumulando poder em excesso.

Na verdade, tais instituições de controle são sempre incompletas e é bom que sejam assim, de modo que o resultado de suas ações se dê pela interação entre elas e não por obra e graça de uma delas em particular, ou pelo conluio de todas fora dos autos. Em outras palavras, tanto haverá quebra do principio democrático quando um partido no poder subverter as condições de disputa em seu favor, como quando uma instituição de controle ou um consórcio delas assumirem feição absolutista (se seus membros chegarem ao ponto de orar e jejuar por resultados então é porque estaremos no absolutismo de direito divino).

Nestes termos, a derrocada da democracia pode ocorrer tanto pelas mãos de partidos que tentam subverter as condições da competição política em seu favor, quanto pelas mãos daqueles que existem para controlar os primeiros.

Esta parece uma descrição acurada do Brasil recente?

Um partido no governo pode tentar prolongar sua estadia por meio do acúmulo de cinco tipos de poder: institucional, militar, ideológico, econômico e estrangeiro.

Há duas formas de acúmulo de poder institucional. A primeira, e mais direta, diz respeito a alterações nas regras do jogo político e da interação entre os poderes, tais como, por exemplo, a introdução da possibilidade da reeleição do presidente quando este ainda está no poder (e a regra vigente não permite um segundo mandato), mudanças nas regras do sistema partidário e eleitoral que favoreçam o poder do executivo, ou mesmo mudanças na forma de composição da suprema corte que aumentem a influência do presidente (I1).

A segunda, mais indireta, diz respeito à indicação, por prerrogativa constitucional do presidente, de nomes para cargos estratégicos como ministros de tribunais superiores, chefia do ministério público ou ainda deixar de emprestar poder a órgãos subordinados à presidência, responsáveis pela fiscalização externa e o controle interno, tais como controladorias, polícia federal etc (I2).

A associação com os militares é um fenômeno bastante conhecido e dispensa maiores comentários. Quando bem sucedida, confere ao partido no governo um reforço extraordinário, em que pese paralelo, de poder (M). O ideológico diz respeito principalmente aos meios de comunicação de massa, e o controle da mídia ou a montagem de uma própria também é uma fórmula conhecida e importante de acúmulo de poder (Id).

Quanto ao econômico, o controle das principais decisões relativas à economia confere ao governante um poder incrível e ele saberá usá-lo para atrair o mercado em seu apoio, até mesmo golpeando a democracia para beneficiá-lo, se for o caso (Ec).

Por fim, mas não menos importante, do estrangeiro podem vir ondas ideológicas de peso, intervenções soft na forma de programas e recomendações de organismos internacionais, o rebaixamento de graus de investimentos, passando pelo apoio militar, de órgãos de inteligência até o financiamento de carros de som e patos em manifestações na avenida paulista (Es).

A democracia é a expressão de um equilíbrio contingente, dependente do comportamento de todos esses fatores. Em 2014, ou talvez um pouco antes disso, eles iniciaram no Brasil uma trajetória de desarranjo completo, a ponto de iniciarmos uma desinstitucionalização da própria democracia. O resultado das eleições não foi aceito pelos derrotados que acusaram o partido governista de ter acumulado recursos e poder em excesso, derivados de esquemas paralelos de corrupção.

Até aí a reação poderia ser considerada racional, pois aceitar a distorção do jogo e seu resultado representava um custo insuportável, maior do que o de subverter o resultado e de arcar com ônus de uma ordem não-democrática na sequência. Mas logo o script Jucá-Machado nos revelou que a verdadeira intenção dos derrotados (e até de aliados à presidente eleita), igualmente envolvidos em esquemas de corrupção, era fazer frente não ao partido vitorioso, mas ao inimigo maior representado pelas instituições de controle, que conduziam a jatos poderosos a lavagem do sistema político como um todo. Até a extinção, por via de ação judicial, de partidos políticos envolvidos em corrupção fora cogitada no início da operação. “Estancar a sangria” passaria pela destituição da presidente eleita, pela posse do Michel e daí por diante pela possibilidade de passar leis de anistia no Congresso e pela ingerência sobre as instituições de controle, senão um pacto com elas, “com Supremo, com tudo”.

Considerando as formas de acúmulo de poder mencionados acima, verdade seja dita: não foi o PT quem inventou a regra de reeleição, nem foi ele quem fez aprovar a PEC da Bengala, aumentando o tempo de permanência de ministros do STF para evitar que Dilma nomeasse novos integrantes durante seu segundo mandato (as duas alterações constitucionais mais contundentes feitas no topo do edifício institucional brasileiro de 1988, isto é, no tipo I1 de poder institucional mencionado acima).

Sob os governos petistas, é verdade que muitos novos ministros foram nomeados para a suprema corte, mas não se pode dizer que o partido tenha tido êxito em montar uma sólida bancada governista no tribunal, algo longe disso, diga-se de passagem. Foi na presidência petista que a prática de nomear o candidato mais votado em lista tríplice pela associação nacional dos procuradores federais para assumir a chefia do Ministério Público Federal foi inaugurada e mantida, até que Michel alterou essa prática.

Foi na presidência petista que a Polícia Federal conheceu seu maior desenvolvimento e autonomia, e que um de seus diretores gerais permaneceu no cargo por quase oito anos, enquanto todos os cargos relevantes da República haviam sido renovados ou substituídos. Até que Michel trocou por duas vezes o comando da PF e, numa medida ainda mais incisiva, diante da dificuldade de controlar suas ações, desviou o seu foco ao transferi-la por canetada do ministério da Justiça para o de Segurança Pública (tipo I2 de poder institucional).

Do PT não se pode dizer que tenha recorrido aos militares, ao passo que Michel os trouxe de volta para um lugar que não ocupavam desde 1964, ao decretar a intervenção federal no Rio de Janeiro – algo que não se via nos marcos de um regime constitucional desde a primeira república – e entrega-la ao Exército (no momento em que publicava este post, o general da ativa e comandante do exército pressionava o STF na decisão do caso Lula, no que foi seguido por outros comandantes armados) (M).

O cavalo de pau da agenda governamental, que em 72 horas abandonou a reforma da previdência (tida como tábua de salvação do país) para incorrer na intervenção federal no Rio marcou igualmente o fim da artimanha presidencial de recorrer ao “mercado” como âncora de uma ordem institucional ilegítima (Ec). Promessas foram feitas ao mercado, para depor Dilma e para instaurar um governo capaz de realizar o ajuste fiscal.

E o mercado acreditou que um partido que tem o DNA do gasto público nas veias cumpriria essa promessa. Bobinho. Do poder estrangeiro teremos que aguardar o tempo regulamentar de abertura de arquivos confidenciais para dimensionar a presença internacional na presente crise brasileira, mas investigações preliminares sobre as fontes de financiamentos de certos movimentos que vão pra rua e/ou  querem o Brasil livre já indicam algo de podre nesse sentido (Es). Do poder ideológico, creio que poupo o leitor de eparema ao deixar de examinar o evidente e escandaloso viés de apoio da grande mídia à deposição de Dilma, sua ojeriza ao PT e sua afinidade com as bandeiras do mercado, mas sou forçado a reconhecer que seu papel sob e sobre Michel não tem sido menos ostensivo (Id).

Em resumo, o acúmulo excessivo de poderes que tem levado ao desarranjo da democracia brasileira se deu menos pelo partido governista e vitorioso em 2014, e mais pelos que o sucederam, interessados em se livrar de um mal maior, a turma de investigadores, procuradores e juízes empenhados em lavar a jato a corrupção do país.

Aqui outra digressão de cientista político é necessária. Creio que o conflito entre as forças do sistema político e as forças de controle mergulhou o país numa espécie de “chicken game”. Em teoria dos jogos, o “chicken game” costuma ser apresentado na forma de uma corrida de carros um em direção ao outro, ou ambos em direção ao penhasco (os mais antigos aqui se lembrarão de James Dean no clássico Juventude Transviada). Aquele que resistir até o final leva o prêmio, desde que o outro desista a tempo e arque com o ônus de se passar por “galinha”, covarde na gíria inglesa. Embora o melhor resultado para ambos seja que um deles desista, ou os dois ao mesmo tempo, a maximização do interesse individual pode leva-los ao crash ou ao abismo, letal para os dois.

Acumulando velocidade e senso de direção desde operações anteriores, a Lava Jato não tirou o pé do acelerador desde que pôs em prática, com grande êxito, uma nova forma de aplicação do direito penal à classe política e a seus operadores financeiros. Nessa corrida, o juiz da prova – o STF – não colocou qualquer freio importante na condução do veículo desde que ele partiu de Curitiba e chegou ao TRF4. Nesse processo, ficou evidente em powerpoint qual motorista do outro veículo os procuradores gostariam de ver saltando de seu carro e assumindo o papel de galinha – ou líder de um galinheiro inteiro – entregando os pontos e cordeiramente, e para a glória dos senhores, se entregando ao cárcere.

Mas a Lava Jato também foi uma operação tecnicamente política, abrindo flancos e contradições que tem sido explorados por seus opositores. Por tecnicamente política, tenho em mente as máximas de que a política se legitima pelos fins que alcança, enquanto a escolha dos meios é discricionariedade do ator político; e a justiça se legitima pelo respeito aos meios pelos quais toma suas decisões, e menos pelos resultados que alcança.

Pois a Lava Jato sempre teve os fins à frente dos meios, e seu êxito em manipular os segundos para alcançar os primeiros se deve ao fato de que as instituições de controle agiram em consórcio, coordenadas e se corrigindo mutuamente ao longo do processo, a fim de evitar sua saída prematura da corrida. Dessa vez, parecem querer ir até o fim e, nem que levem o Estado de Direito ao desfiladeiro, podem até fazer o papel de ovelhas do Senhor, mas não o de “galinhas” covardes.

Embora sejam várias as lideranças políticas alvejadas pela Lava Jato, o alvo central, como se disse, é Lula. Quase o foi no escândalo do mensalão, mas a justiça penal per saltum só conseguiu chegar por inferência – a teoria do domínio do fato – à sua antessala, elegendo Jose Dirceu como o líder da quadrilha. Seria necessário aguardar uma nova oportunidade, e ela surgiu quando o esquema de corrupção na Petrobrás foi revelado, agora mediante equipamentos e expedientes mais sofisticados.

O episódio da revelação das gravações ilegais das conversas de Dilma com Lula, por Moro, constitui uma das demonstrações mais cabais do “chicken game” no qual essas forças mergulharam. E Lula resistiu e tem resistido o quanto pode. Diz-se que sua defesa, nos processos do Triplex do Guarujá ou do Sitio de Atibaia (que está por vir, dentre outros) deveria ter sido mais técnica do que política, como foi. Mas isso representaria, voltando ao chicken game, a pular do carro e abandonar a disputa pelo prêmio maior. Politizar sua defesa técnica foi uma forma de denunciar a técnica politizada da Lava Jato.

Nessa estratégia, lançou-se candidato novamente à presidência da República, se não galvanizou o partido impediu que outros tomassem seu lugar, sobreviveu à possibilidade de prisão temporária em 2016 e 2017 e entrou em 2018 condenado, mas liderando as pesquisas de intenção de voto e desafiando a lei da ficha limpa e a criação constitucional por jurisprudência do STF da execução provisória de pena após condenação em segunda instância. Pisou no acelerador, não saltou do carro mesmo levando tiros na caravana, e a grande dúvida é se irá até o derradeiro abismo.

Nessa corrida, o juiz é o STF, e caberá a ele amanhã dar a bandeirada final, ou algo próximo disso. A corte está dividida por vários motivos: se não impediu o desenrolar da Lava Jato antes, como poderia agora dar uma decisão capaz de comprometer negativamente o trabalho da justiça que preside? Por outro, como levar à prisão um ex-presidente que, embora tenha sido submetido à justiça dos comuns – na falta de foro que lhe conferisse prerrogativas – foi condenado com base em argumentos de crime de responsabilidade?

Nenhum tribunal conhece melhor esses dilemas e é sensível às possibilidades de decisão que envolvem direito e política como o STF, mas seus ministros não têm demonstrado estatura para encarar o desafio e nos livrar de um fim trágico neste jogo da galinha. Ademais, tem contra si mesmo um rol de decisões erráticas tomadas nos últimos tempos, que pouco colaboram para a esperança de que amanhã saberão fazer algo melhor. Certamente vão se dividir na decisão, mas creio que todos gostariam que o elefante que se veem forçados a passar pelo buraco dessa fechadura desaparecesse num passe de mágica.

O que fazer com Lula, na pororoca das forças do sistema político com as forças das instituições de controle é o grande desafio que eles têm pela frente, não apenas no julgamento de amanhã, mas numa sequência de passos de uma estrada que ainda não terminou, e que nos aproxima cada vez mais de um abismo inevitável que ameaça nos dragar a todos.
 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Democracia.

    1964. Outra Batalha da Maria Antonia?! Mas desta vez o Exército não servirá de Bode Expiatório para salvação de Medíocres, Corruptos e Incompetentes. Deixará que se ‘explodam’ entre eles. O Povo finalmente enxerga sua única saída. A si próprio. Liberdade que foi roubada num golpe civil-militar que se prolonga por 88 anos. Um morde-assopra conveniente e interminável, que se iniciou no conluio entre dois Ditadores Vargas e Prestes. E toda Elite que os apoiaram. A farsa finalmente vai se extinguindo. Quase um século de atraso e assalto do País mais rico do planeta, que deveria possuir a População como tal. “Do Povo, pelo Povo, para o Povo”. De forma Livre, Soberana, facultativa. E isto assombra demasidamente nossa única Elite. Elite Parasitária Estatal. Se socorrer com quem, se agora só restaram fanáticos e fundamentalistas? “Liberdade, Liberdade…Abra asa Asas sobre Nós.   

  2. Lula preso e depois?

    Quem sabe seria melhor que prendessem o Lula? Talvez essa injustiça seja a chave para abirir os olhos e ecancarar ao mundo a injustiça e que impera no Brasil, mostrar ao mundo que somos dominados por uma quadrilha de golpistas protegidos por quem exatamente deveria estar do nosso lado. 

    O problema é que outros Lulas virão, e  também serão presos, infelizmente naõ sabemos até quando o povo esclarecido vai tolerar essa situação.

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